Se a água é importante para matar a sede humana, dos animais e das plantas, também tem uma enorme serventia para outros usos que remetem ao cuidado com a higiene pessoal, limpeza da casa, roupas e louça. No Semiárido brasileiro, a água destinada a esses fins, há muito, é reutilizada pelas famílias agricultoras. O que há de novo no cenário é o aumento de pesquisas, várias realizadas com a participação de quem vai usar os sistemas, para aperfeiçoar as tecnologias sociais que aumentam a segurança sanitária no reúso.
Na Paraíba, de 2022 para cá, uma parceria da ASA estadual (Articulação Semiárido) com a organização WTT (World-Transforming Technologies), o INSA (Instituto Nacional do Semiárido), uma instituição ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e a UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco, campus de Serra Talhada), tem apresentado resultados promissores.
Além das instituições, a pesquisa tem a participação essencial de nove famílias de três municípios do Semiárido paraibano. Elas moram nas regiões de atuação do Polo da Borborema, Folia e Coletivo, organizações formadas por agricultores e agricultoras, que recebem assessoria da AS-PTA, Centrac e Patac. Todas as seis entidades fazem parte da ASA Paraíba.
A tecnologia em estudo trata-se de um sistema de reuso com dupla filtração da água, recentemente batizado de Siriema – Sistema de Reuso e Manejo Agroecológico. A grande novidade do protótipo é que ele agrega um filtro anaeróbio ao processo de tratamento do líquido, apresentando uma boa capacidade de diminuição das bactérias por falta de oxigênio. Os sistemas desenvolvidos até o momento têm apenas uma etapa para a filtragem que é construída por camadas de pedra e areia, que se alternam para a contenção da matéria orgânica que provoca a turbidez na água.
Dados da pesquisa apontam um potencial do protótipo do Siriema para tratar a água cinza a ponto dela poder ser usada sem restrição na agricultura. Mas, as instituições concordam que é prematuro recomendar esse tipo de uso porque as análises laboratoriais das quase 650 amostras coletadas após a filtração da água apontam uma grande variação na concentração da bactéria Escherichia Coli, considerada o mais específico indicador de presença de organismos patogênicos.
Segundo Lara Ramos, da WTT, essa variação ocorre porque os resultados positivos não dependem só da tecnologia, mas também do manejo e da qualidade da água que está sendo tratada para novo uso. “É um sistema que só funciona com acompanhamento técnico das assessorias e com um monitoramento de longo prazo dos resultados para a construção de aprendizados a ponto de poder se tornar uma tecnologia apta para políticas públicas de saneamento rural”, assegura.
George Lambais, biólogo e pesquisador do INSA, ressalta a importância do monitoramento rigoroso da qualidade da água no projeto: “Realizar análises físico-químicas e microbiológicas, seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o reuso agrícola, é essencial para garantir a segurança sanitária. Isso protege tanto as pessoas que manipulam o sistema quanto os frutos gerados pela irrigação com água de reuso. Além disso, este projeto oferece o suporte necessário para monitorar o sistema ao longo do tempo, o que é especialmente desafiador em contextos de tecnologias sociais e territórios, onde esse tipo de controle é difícil de obter, mas fundamental para o sucesso sustentável.”
O que as famílias têm a dizer sobre o sistema – A apresentação dos dados da última etapa da pesquisa, realizada em seis meses – de março a agosto deste ano – aconteceu nos dias 8 e 9 de outubro, na sede do INSA, em Campina Grande, e no Quilombo Santa Rosa, no município de Santa Rosa, no Cariri paraibano. Três famílias do Quilombo Santa Rosa participaram da pesquisa.
Na conversa que reuniu representantes de todas as organizações envolvidas na pesquisa e sete famílias, vários tópicos foram levantados: desde a avaliação geral das famílias, incluindo resultados e manejo, a questões que podem ser melhoradas. Foram compartilhadas algumas dificuldades no uso e a necessidade de fazer ajustes na instalação do sistema para o seu melhor funcionamento.
Alguns ajustes já foram adotados em uma família e serão estendidos para as demais, como a tampa da caixa de gordura que, a princípio, era feita em alvenaria e bastante pesada. Outra tampa em chapa galvanizada foi desenvolvida e posta em teste para substituição da primeira. A caixa de gordura também deixou de ser quadrada e ganhou um desenho redondo para facilitar a sua limpeza.
Nesta troca entre assessores técnicos, pesquisadores e famílias agricultoras também foram descobertas utilidades, não imaginadas a princípio, para partes do sistema. Um exemplo é que a caixa sanfonada, posta para coleta da amostra da água para análise laboratorial, tem o papel de ser mais uma barreira para impedir a passagem da matéria orgânica. E isso diminui ainda o nível de turbidez da água, cuja aparência se assemelha a da água potável.
Mas aí é onde está um dos riscos para o uso inadequado da água por parte das famílias. Ao ver o líquido tão claro, se não estiverem bem informadas e sensibilizadas, elas podem usar indevidamente a água para molhar hortaliças e tubérculos.
Recomendações fundamentais – Para o bom funcionamento do sistema e a segurança da pessoa que faz o manejo nele, é importante observar algumas recomendações que precisam se tornar hábitos, assim como foi a adoção das máscaras e uso de álcool durante a pandemia.
“Baseado no princípio da precaução e segurança sanitária, o uso de equipamentos de proteção individual, a exemplo de luvas grossas, são essenciais para evitar a contaminação por doenças veiculadas pela água como amebíase, cólera, disenteria bacteriana, esquistossomose, febre tifóide, giardíase, hepatite A, leptospirose”, explica Madalena Medeiros, da ONG Centrac.
Outra recomendação essencial para o bom funcionamento do sistema é a limpeza da caixa de gordura uma vez por semana e o esvaziamento da água tratada deve ser feita sempre que juntar água que dá para ser bombeada. Na média da água produzida pelas famílias que participaram da pesquisa, dá uma média de um bombeamento a cada três dias. Isso diminui a proliferação das bactérias uma vez que a água tem grande quantidade de nutrientes que são resíduos de matérias orgânicas.
Benefícios e desafios da irrigação com água de reúso – “Observei que as plantas se desenvolveram mais”. “O meu quintal tá mais rico, mais verdinho”. Essas observações compartilhadas por praticamente todas as famílias agricultoras têm a ver com a concentração de fertilizantes da água do reúso.
Mas, por outro lado, como toda irrigação, o processo de salinização do solo também acontece por conta do nível de sais presente nas águas já utilizadas. Uma parte desses sais são provenientes dos materiais de limpeza, mas também podem já vir na água reutilizada, caso seja retirada de poços e/ou barreiros.
Com o tempo, a tendência é que a quantidade de sais na terra aumente a ponto de prejudicar a planta e tornar o solo infértil. Aí reside mais um ponto de atenção das pesquisas sobre uso de água de reúso para irrigação. “Nós temos que cuidar de diminuir o impacto sobre o solo. Uma das medidas para isso é adicionar muita matéria orgânica na área de cultivo – um esterco curtido, uma compostagem, que retém muita água. Outra coisa é manter o solo coberto para diminuir a evaporação. E, ainda, se tiver uma água na propriedade que não tiver salinidade e puder ser usada para irrigar as plantas, é interessante que se misture com a água cinza para dissolver a salinidade desta última”, recomenda o professor Genival Barros Junior, professor do curso de Agronomia e coordenador do Núcleo de Agroecologia da UFRPE, no campus Serra Talhada.
Segundo ele, que também é coordenador do Núcleo de Agroecologia da universidade, esse acúmulo de salinidade é um desafio que está sendo acompanhado na pesquisa, mas que precisa de mais tempo para conhecer o nível de sais que o solo vai alcançar a partir da absorção da água cinza.
Desdobramento da pesquisa – Unindo as duas etapas da pesquisa de campo, o tempo alcança apenas nove meses, um período curto para monitoramento dos resultados e continuidade dos ajustes necessários para melhorar a tecnologia. Por isso, todas as organizações envolvidas reconhecem a necessidade da continuidade na pesquisa e da necessidade de aumentar a escala de teste, ampliando o número de famílias que fazem uso do sistema.
Para tanto, é preciso sistematizar as informações geradas, difundi-las e buscar fontes de financiamento. A sistematização das informações e a difusão estão sendo providenciadas, a partir da produção de um folder sobre o sistema e um manual técnico.
Pesquisa a serviço do povo do Semiárido – “Essa pesquisa representa um embrião do Comitê Técnico Popular que a ASA vai instituir para fazermos proposições de políticas públicas com tecnologias adequadas para o reúso das águas na região”, assegura Glória Batista, da coordenação executiva da ASA Brasil e Paraíba, que participou da cerimônia de entrega dos certificados a todos os participantes da pesquisa.
“As tecnologias sociais que a ASA difunde nasceram de iniciativas populares. E a ASA quer tecer redes de pesquisa para desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias para uso social. E que essas redes sejam formadas pelas famílias agricultoras, organizações de assessoria técnica e política às entidades de base comunitária e territorial e instituições de ensino e pesquisa. Isso é extremamente importante para que as tecnologias não penalizem as famílias, principalmente, as mulheres por serem pesadas e de uso complicado”, defende Glória que faz parte da ONG Patac.