É da terra que vêm as soluções para a Terra. No semiárido brasileiro, no território do Sertão do São Francisco, a agroecologia e o trabalho em rede em conexão com a paisagem têm demonstrado essa vitalidade. Durante atividade realizada em fevereiro de 2025 para discutir o tema do monitoramento e avaliação de políticas públicas que apoiam a agroecologia, representantes de organizações da sociedade civil, de movimentos sociais e do Estado caminharam pelo território sobre a orientação do Instituto Regional de Pecuária Agropecuária Apropriada (IRPAA) aprendendo sobre convivência com o semiárido e a interconexão de práticas quando o assunto é agroecologia.
Se as margens do São Francisco trazem vida e água fresca, a história do rio e das populações que ali habitam também é marcada por violência e perdas. O represamento do rio ainda em 1973 trouxe modificações profundas para a região. Fez desaparecer as cidades de Pilão Arcado e de Sobradinho, como cantado nos versos de Sá e Guarabyra, e levou junto também muitas práticas tradicionais, como a pesca artesanal, áreas comuns de cultivo e de criações de animais, sonhos e memórias que vão sendo grafados na terra. As alterações profundas foram também marcadas pela chegada do agronegócio, principalmente, da fruticultura irrigada, que utiliza grandes quantidades de água e de agrotóxicos. Estes últimos não estão somente presentes nas frutas, mas vão sendo carreados para o solo, para a água e para o ar.
Em tempos de mudanças climáticas parece, ou ao menos deveria ser, assustador imaginar o uso de um bem comum – a água – como um recurso privado que, além de favorecer um setor muito específico da agricultura, orientado principalmente pela exportação de frutas, destina ao rio agrotóxicos. Sim, água – de beber, de cozinhar, de cultivar, onde vivem os peixes que são também alimentos – cheia de agrotóxicos. Sim, terras de ribeiras, as mais férteis do semiárido, dominadas por uma fração ínfima da elite agrária. Processo histórico e presente nos dias de hoje.
Tal compreensão coloca em evidência que as mudanças climáticas não são somente um problema atmosférico, associado à quantificação dos chamados Gases de Efeito Estufa (GEE). No caso do Brasil, a pecuária, a agricultura e o uso da terra correspondem a mais de 70% da emissão destes gases. Olhar para baixo é fundamental se queremos compreender as causas e promover reais transformações para enfrentar os desafios provocados, evidentemente, pelas alterações do clima, mas indissociáveis do modelo agroalimentar dominante.
A agroecologia combina princípios que envolvem a harmonia entre as pessoas e a natureza. É isso que têm demonstrado agricultores e agricultoras familiares, quilombolas e comunidades de Fundo de Pasto no território do Sertão do São Francisco. A água da chuva é armazenada em cisternas, quando em nuvens se vê o prenúncio da chegada das chuvas. A chamada água de primeiro uso é a água de beber e de cozinhar, água para se fazer também chás com as plantas medicinais cultivadas e identificadas nas matas da Caatinga. A de segundo uso, é a água para o cultivo – hortas, quintais e roçados – e para as criações animais. Tem ainda a “água do meio ambiente”, que cai na terra e nos cursos da água e pertence à mata e aos animais. Tecnologias que transformaram as possibilidades de convivência com o semiárido e que anunciam caminhos de aprendizado fundamentais para adaptação às mudanças climáticas. Mudanças climáticas são sobre terra e também sobre água.
A manutenção dos ciclos da natureza integrados à agricultura camponesa e tradicional se dá pelos conhecimentos desenvolvidos pelos povos em paisagens específicas ao longo de gerações. Ao mesmo tempo, novas possibilidades vão sendo criadas pelo aprender junto. Se o armazenamento de água é fundamental, o tratamento delas também. As ações associadas ao saneamento, além da prevenção de doenças e estratégico para a saúde das pessoas e do ambiente, é parte do cuidado com os territórios. No Sertão do São Francisco, o IRPAA e as famílias agricultoras têm atuado no desenvolvimento de tecnologias sociais de saneamento básico apropriado ao semiárido. Estas combinam o Bioágua para tratamento das águas cinzas; a Bacia de Evapotranspiração para tratamento da água proveniente dos sanitários; e o reator UASB para o tratamento total do esgoto.
Este arranjo dinamiza uma série de conexões. Primeiramente, coloca em evidência o cuidado com as águas e com o solo, garantindo a saúde integral e o retorno de água tratada para os ciclos ecológicos. Segundo, associa-se diretamente à produção. A parte sólida do esgoto tratado é utilizada na adubação de árvores frutíferas, como a acerola e o umbu; não sendo adequada para horticultura. Terceiro, o tratamento de esgoto adequado é um dos critérios para a certificação orgânica. Através do debate da comercialização, temas que podem ser sensíveis para as comunidades, como a destinação adequada de esgotos, têm sido arejados. E, por fim, não menos importante, é que o tratamento de esgotos está associado diretamente à higiene, à saúde e à estética dos quintais, o que é muito importante para as mulheres, já que este é um dos seus principais sistemas de produção.
Não há agroecologia que não seja coletiva é o que ensinam os fazeres no Sertão do São Francisco. É com essa orientação enraizada nos territórios que foi aprovada no Parlamento Latino-americano e Caribenho (Parlatino), em dezembro de 2024, a Lei Marco da Agroecologia. Encomendada à AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, que integra a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Lei contou com a colaboração também de docentes do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e da organização Terra de Direitos.
Trata-se de um reconhecimento internacional sobre a agroecologia, pois a orientação é que esta lei seja referência para implementação de políticas de agroecologia na América Latina. A Lei Marco reúne um conjunto de conceitos e mecanismos de governança que orientam para transformações radicais do sistema agroalimentar, muitas delas em curso, mas com pouco ou nenhum apoio. Com os pés nos territórios, o referencial legal aponta caminhos possíveis para a habitabilidade na Terra, como ensinam os povos do Sertão do São Francisco.