O chamado Mapa do Caminho foi a proposta brasileira sobre o futuro dos combustíveis fósseis e conta com duas rotas: a transição dos combustíveis fósseis de maneira justa, ordenada e equitativa; e a interrupção e reversão do desmatamento. É fundamental compreender que os sistemas alimentares estão implicados em ambas as rotas, seja pela alta dependência de produtos petroquímicos, como é o caso dos fertilizantes químicos, seja pelas emissões de gases de efeito estufa decorrentes da conversão de áreas de mata em monocultivos baseados no uso de agrotóxicos e sementes transgênicas. Ao se enraizar nas práticas dos territórios e na conexão entre conhecimentos populares e científicos, a agroecologia tem demonstrado caminhos possíveis e já trilhados, não apenas no Brasil, mas em muitos lugares do mundo.
A Cúpula dos Povos, realizada em Belém de forma autônoma durante a primeira semana da COP30, foi um desses espaços de convergência e de anúncios constituídos a partir dos territórios. Mais de 1.200 organizações de diferentes países assinaram a Carta da Cúpula. Entre os dias 12 e 16 de novembro, a Universidade Federal do Pará (UFPA), espaço de resistência à ditadura civil-militar nas décadas de 1960 e 1970, foi a casa de mais de 50 mil pessoas. Em plenárias, atividades enlaçadas, na feira, na programação cultural, na Marcha Global pelo Clima e nos momentos de alimentação, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e redes demonstraram como é possível garantir uma transição justa. Isso se dá pelo reconhecimento das desigualdades entre o Sul e o Norte globais, bem como do racismo e das desigualdades de gênero que operam em nossa sociedade e fazem com que determinados sujeitos estejam mais expostos às mudanças do clima, ainda que pouquíssimo tenham contribuído para tal fenômeno.
As denúncias colocaram em evidência que são falsas as soluções baseadas na mercantilização e na financeirização da natureza, uma vez que apenas reforçam a concentração de mercados e de poder nas mãos de grandes corporações — tanto do sistema alimentar quanto do sistema energético. A soberania foi uma das palavras-chave durante a Cúpula: a soberania dos territórios, de uma vida digna e livre de violência; a soberania popular, por meio da democratização do acesso aos bens do país; e a soberania alimentar, entendida como a possibilidade de produzir e consumir alimentos saudáveis e adequados às diferentes culturas.
No dia 13 de novembro, a pesquisa-ação “Agroecologia, Território e Justiça Climática”, coordenada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em parceria com a Associação Agroecológica Tijupá, a Fase – Educação e Solidariedade, a AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi lançada em duas atividades construídas de forma coletiva. Durante a manhã, na Tenda Berta Cáceres, a parceria se deu com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a organização internacional Grain e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
O objetivo foi apresentar os riscos relacionados ao Programa Caminho Verde Brasil, do governo brasileiro, que propõe a recuperação ambiental e do solo e a descarbonização, mas se baseia, contudo, na ampliação da financeirização e de monocultivos florestais e de grãos. Na contramão dessa lógica, as mais de 500 experiências identificadas pela pesquisa contribuíram para apontar estratégias já em curso que têm garantido, por meio, por exemplo, de práticas de conservação do solo, compostagem e agroflorestas, a adaptação e a mitigação das mudanças climáticas. No debate, reafirmou-se que florestas não são monocultivos e que solo também é terra. A diversidade é o que permite a vida de todas as espécies, inclusive dos encantados, que, para muitos povos, são aqueles que cuidam para que estejamos por aqui. Ainda assim, mais de 70% dessas experiências não contam com apoio de políticas públicas.
Na tarde do mesmo dia, as experiências identificadas dialogaram com as estratégias de agroecologia tecidas na Ásia, especialmente em Bangladesh, na Malásia e nas Filipinas. Em parceria com a Pesticides Action Network Asia (PAN Asia), a World Animal Protection Brasil (WAP BR) e a Peoples Rising for Climate Justice (PRCJ), o momento contou com um intercâmbio de experiências de agroecologia no enfrentamento das mudanças climáticas no Brasil e em países asiáticos. Isso possibilitou uma leitura conjunta de como o sistema alimentar industrial tem aprofundado as mudanças do clima em uma perspectiva internacional.
O uso de agrotóxicos, transgênicos e monocultivos — no Brasil, especialmente de grãos, e, na Indonésia, de palma — tem minado possibilidades reais de enfrentamento, como aquelas construídas por agricultoras e agricultores familiares. Nas Filipinas, agricultoras organizadas na Federação Nacional de Agricultoras se uniram contra a pulverização aérea e realizaram ações diretas contra campos experimentais de berinjelas transgênicas. Na Indonésia, comunidades têm demonstrado, por meio da agroecologia, que o cultivo diverso é mais rentável, inclusive economicamente, do que a conversão de áreas em monocultivos de palma. A publicação resultante da pesquisa-ação, “No Clima da Agroecologia”, em português, espanhol e inglês, contribui para a troca de experiências e para que muitos outros países conheçam o que vem sendo feito no Brasil.
Na COP30, a transformação dos sistemas alimentares também ganhou voz. Nos corredores e nas trocas, foi possível perceber a expressividade desse debate, diferente de outras COPs, nas quais o tema era tratado de forma muito mais tímida e, sobretudo, capturado por corporações. A agroecologia, a agricultura familiar e o Direito Humano à Alimentação Adequada estiveram presentes em inúmeras atividades envolvendo gestores, pesquisadores e representantes de comunidades e territórios. Seja para discutir redes territoriais de agroecologia ou comunidades resilientes, os resultados da pesquisa-ação contribuíram para a reflexão, chamando atenção para soluções já em curso em todos os biomas e estados brasileiros.
A Campanha Agricultura Familiar na COP30 também encontrou ressonância. A designação inédita de um Enviado Especial para a Agricultura Familiar possibilitou a abertura de espaços de debate em diferentes instâncias, inclusive no âmbito da própria presidência da COP30, além de potencializar a reverberação de demandas que não se limitam a uma categoria identitária específica, mas se relacionam com os desafios enfrentados por comunidades e territórios. Ao tensionar a narrativa de que “Agro é tudo”, a Campanha reafirmou: “A gente é diferente. A gente é Agricultura Familiar” — uma agricultura que se propõe a democratizar os sistemas alimentares, conectando produção e consumo, saúde e alimentação, economia e meio ambiente.
Definitivamente, as negociações da COP30 não resultaram em acordos que garantam uma transição justa, e nem mesmo o Mapa do Caminho foi citado na versão final do texto. Ainda assim, foi bonito ver a presença de tantas vozes em defesa da transformação dos sistemas alimentares e de como inúmeras soluções vêm sendo tecidas por povos do campo e da cidade. Reconhecer e apoiar as iniciativas de agroecologia é, antes de tudo, compreender que os caminhos já existem, o mapa já está traçado, e que, com o apoio adequado, o Brasil pode se tornar referência no enfrentamento às mudanças climáticas.