Sandra Maria Batista Silveira e Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro
ÁGUAS DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO
Está comprovado que o nosso semiárido é o mais chuvoso do mundo, apresentando uma média de precipitações de 750 mm/ano. Todavia, apesar de estar claro que o volume de chuvas não é escasso, muitas pessoas, mais especificamente, muitas famílias agricultoras pobres, não têm acesso digno à água. Essa situação compromete a segurança hídrica, a produção de alimentos e a saúde dessas famílias, sobretudo de mulheres e crianças que, nos períodos de estiagem, são as principais responsáveis pela obtenção desse recurso em cacimbas e poços distantes.
Nesse sentido, o debate sobre a insegurança hídrica no semiárido deve se ater mais a questões de ordem social e política do que a condicionantes ambientais.
Ao enfocar a ausência prolongada de chuvas como catástrofe exclusivamente natural, os governos brasileiros privilegiaram, por muitos anos, ações emergenciais para combater a seca. A estratégia mais utilizada foi a construção de obras hidráulicas, a distribuição de água via carros-pipa e, por um determinado tempo, as Frentes de emergência, programas acionados em caráter de urgência após longos períodos de estiagem.
De acordo com Duque e Cirne (1998), esses programas foram estruturados para dar respostas essencialmente emergenciais e assistencialistas, sem perspectivas de superação das principais dificuldades enfrentadas pelas famílias. Apesar disso, por se repetirem a cada seca, as autoras apontam que esses programas acabaram se tornando as principais estratégias de desenvolvimento para a região no século XX.
Há também vários autores, como Malvezzi (2007), que têm defendido que, mesmo nos períodos de seca, é possível ter uma vida digna e produtiva na região, desde que sejam desenvolvidas políticas adequadas ao meio ambiente e que se estruturem a partir do armazenamento de água das chuvas para consumo das famílias.
O posicionamento desses autores é compartilhado por muitas organizações da sociedade civil que vêm executando ações e defendendo políticas públicas concebidas segundo o princípio da convivência com o semiárido. Por meio da articulação de muitas dessas organizações sociais, surgiu, em 1999, a Articulação do Semiárido (ASA).
A ASA defende que a água é um direito de toda cidadã e todo cidadão, assim como aponta a necessidade de promover o desenvolvimento sustentável na região tendo como base a boa convivência com o meio ambiente. Para alcançar esses objetivos, propõe o Programa de Formação e Mobilização social para a Convivência com o semiárido, que abrange os dois grandes programas da asa: O Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). O primeiro visa garantir a segurança hídrica das famílias, enquanto o segundo orienta-se para assegurar água para a produção de alimentos. Ambos os programas têm implementado tecnologias simples, de baixo custo e construídas a partir da mobilização da comunidade.
Segundo uma das entrevistadas, moradora do município pernambucano de Flores, a cisterna de 16 mil litros trouxe significativas melhorias para a qualidade de vida de sua família:
“Para mim, foi uma saúde, porque também aquelas cacimbas não davam água de beber, não existia cloro na época, muito menos água sanitária. A gente apanhava, lavava o copo bem lavado, coava aquela água, tinha já um pano próprio para aquilo, mas ela não era uma água de boa qualidade, de maneira alguma. Agora, já hoje, a gente bebe uma água de qualidade, porque antes a gente pegava água de barreiro em época de chuva”. (Moradora de Flores/PE)
Em nossa pesquisa de mestrado, analisamos três aspectos centrais: a água como direito das populações do semiárido; a água como elemento de construção da cidadania para as famílias rurais; e a água como elemento articulador da sociedade civil no semiárido. Como fonte de pesquisa, utilizamos documentos oficiais produzidos nos Encontros Nacionais da ASA (Enconasas), fóruns nacionais da rede, realizados a cada dois anos, e entrevistas com alguns integrantes da asa.
A ÁGUA COMO DIREITO DAS POPULAÇÕES DO SEMIÁRIDO
A ASA define que: No semiárido, o acesso à água é um direito humano básico que necessita ser urgentemente efetivado para toda a população, em especial os agricultores familiares. Essa posição em relação à prioridade que as famílias agricultoras devem ter no acesso à água define a percepção da rede quanto às verdadeiras causas da pobreza na área rural. Ou seja, reflete o questionamento do viés determinista que atribui aos fatores climáticos e ambientais a responsabilidade pelos problemas da agricultura e pela pobreza das populações rurais.
Pode-se dizer, portanto, que a grande luta das organizações que compõem a asa consiste em fazer com que as famílias agricultoras do semiárido tenham seus direitos concretizados por meio do acesso não só à água, como também à terra. Para tanto, a asa se posiciona contra o monopólio e a lógica de privatização desses recursos naturais, defendendo, em contrapartida, a adoção das tecnologias sociais descentralizadas e implementadas pelo P1MC e pelo P1+2.
Sabemos, no entanto, que um direito proclamado no plano formal não implica sua efetivação (BOBBIO, 1992; MONDAINI 2006) e que o elemento que tem a possibilidade de tornar um direito constituído em direito garantido é a luta social. Nesse sentido, temos como principal pressuposto os resultados significativos que as lutas dos movimentos sociais no semiárido têm obtido. Acreditamos ainda que a asa, de modo particular, tem cumpri- do um papel de extrema importância nesse processo, ao exercer forte pressão sobre os setores governamentais, buscando a efetiva democratização do acesso à água.
A ÁGUA COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA PARA AS FAMÍLIAS RURAIS
Em nossa análise, consideramos que o exercício democrático não ocorre apenas quando o estado responde às reivindicações populares, mas, como indica Dagnino (1994), quando há construção dos próprios sujeitos políticos, agentes fundamentais para a conquista de direitos. Assim, acreditamos que as lutas dos movimentos sociais pelo acesso à água para as populações do semiárido contribuem na construção da cidadania dos moradores da região. Esse processo cidadão se expressa, principalmente, na quebra da configuração histórica das relações de dependência que subjugam as famílias rurais e na sua ativa participação política.
Historicamente, o abastecimento de água, principalmente nos períodos das longas estiagens, foi desenvolvido por meio de mecanismos que reforçaram a dependência política das pessoas em relação aos governos locais, tais como os carros-pipa e as obras hidráulicas mal planejadas e inviáveis. Esse tipo de relação não gerava autonomia para as famílias, nem as fortalecia enquanto sujeitos sociais que lutam pela garantia de direitos. Apenas as tratava como receptoras de doações governamentais e que, portanto, deviam gratidão e obediência a seus benfeitores.
Com a possibilidade de ter água em suas próprias terras, as famílias rurais não ficam sujeitas às manobras que mantêm muita gente nessa situação de submissão. O acesso à água proporciona às famílias a experiência de pensar seus projetos de vida, visualizando as alternativas de viver bem na região e de ter novas perspectivas de trabalho e de organização comunitária.
A ÁGUA COMO ELEMENTO DE ARTICULAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NO SEMIÁRIDO
A ASA, enquanto rede de movimentos sociais, é formada por centenas de organizações sociais que, embora tenham bandeiras de lutas diversas, estão mobilizadas pelo interesse comum de democratizar o acesso à água no semiárido. A sociedade civil organizada, entretanto, não tem reduzido as discussões com as famílias e comunidades rurais ao aspecto do armazenamento da água, tratando-o como fator imprescindível à convivência com o semiárido. O direito à água é central, mas a abordagem é ampliada de modo a abarcar outras temáticas, que favorecem uma compreensão mais abrangente das características, limitações e possibilidades encontradas no semiárido e que subsidiam o debate sobre as melhores estratégias de convivência com o meio ambiente da região.
E essa visão abrangente é muito importante por permitir que a intervenção da ASA não se resuma à construção das cisternas. As famílias participam de discussões sobre cidadania e direito à água, convivência com o semiárido e os cuidados e a responsabilidade com a água e com a tecnologia implementada. Nesse sentido, são envolvidas em todas as etapas dos programas, desde a mobilização, passando pelos processos formativos, pela construção das cisternas até o aprendizado sobre como as políticas públicas devem ser propostas, monitoradas e construídas junto com a sociedade civil.
Acreditamos que essa é a direção que as organizações da asa apontam. Se, por um lado, admitem que garantir o acesso à água de modo universal para as populações do semiárido é dever das políticas públicas estatais, também defendem que essas políticas têm que partir das experiências reais dos agricultores e agricultoras. Além disso, devem ser construídas democraticamente, de modo que as famílias beneficiárias estejam envolvidas no processo de constituição de seus direitos e aprendam a exigi-los.
Nessa discussão, há um aspecto importante a ser considerado: as lutas pelo acesso à água não podem ser desassociadas daquelas que reivindicam a garantia dos demais direitos e da cidadania. Portanto, têm a ver com as lutas pela consolidação e ampliação da democracia, nas quais os movimentos sociais desempenham um papel fundamental, ao hastear bandeiras que são de toda uma população.
Sandra Maria Batista Silveira
mestre em serviço social pela UFPE; assistente social; assessora da Coordenação do P1MC/asa Brasil.
[email protected]
Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro
doutora em Psicologia social pela PUC/SP; professora do Departamento de serviço social e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE
[email protected]
Referências Bibliográficas:
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: editora Campus, 1992.
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. Iin: ________. Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: editora Brasiliense, 1994.
DUQUE, Ghislaine; CIRNE, Maria Nilza Ramalho. Pobreza Rural no Nordeste semiárido: cidadania ou exclusão social. In: FERREIRA, a. D. D.; BRANDENBURG, a. (Org). Para pensar outra agricultura. Curitiba: UFPR – editora Universitária, 1998.
JOHN, Liana. Água como objeto de disputas mundiais. Disponível em: <http://www.estadao.com.br>. Acesso em: 7 fevereiro 2007.
MALVEZZI, Roberto. Semiárido: uma visão holística. Brasília: Confea, 2007. (série Pensar o Brasil e Construir o Futuro da Nação).
MONDAINI, Marco. Direitos Humanos. são Paulo: editora Contexto, 2006.
TUNDISI, José Galizia. Água no século XXI: enfrentando a escassez. 2 ed. são Paulo: editora Rima, 2005.
Baixe o artigo completo:
Revista V7N3 – A cidadania que chega com a cisterna: a Articulação do Semiárido e a conquista da água pelas famílias rurais