Moacir R. Darolt, Claire Lamine e Alfio Brandemburg
A partir dos anos 1990, os supermercados, ícones dos circuitos longos, suplantaram os canais curtos de comercialização, inclusive no setor de alimentos de base ecológica (GUIVANT, 2003). Nas principais capitais do Brasil, a maio- ria dos consumidores de produtos orgânicos (72%) ainda compra em supermercados, mas boa parte já complementa suas compras em pequenos varejos: 42% recorrem a lojas especializadas e 35% a feiras do produtor (KLUTH et al., 2011). Na França, 47% das vendas de alimentos orgânicos (bio) acontecem em supermercados, 36% em lojas especializadas e 17% em canais de venda direta (AGENCE BIO, 2011).
Já existem sinais de crescimento da comercialização em circuitos curtos no Brasil. Pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) identificou 140 feiras ecológicas certificadas em 22 das 27 capitais brasileiras.
O estudo aponta que onde a agricultura familiar está presente as vendas diretas são mais pronunciadas. A mesma pesquisa mostra ainda que os consumidores comprariam mais alimentos ecológicos se houvesse um maior número de feiras próximas às suas residências.
No Brasil ainda não há uma definição oficial para circuitos curtos (CC), mas o conceito aponta para uma proximidade entre produtores e consumidores. Na França, o termo CC é utilizado para caracterizar os circuitos de distribuição que mobilizam até, no máximo, um intermediário entre produtor e consumidor (CHAFFOTE; CHIFFOLEAU, 2007). Dois casos de CC podem ser distinguidos: a venda direta (quando o produtor entrega diretamente a mercadoria ao consumidor) e a venda indireta via um único intermediário (que pode ser outro produtor, uma cooperativa, uma associação, uma loja especializada, um restaurante ou até um pequeno mercado local). Trata-se de uma definição útil institucionalmente, mas discutível na medida em que um supermercado também poderia comprar diretamente de um produtor, sem oferecer uma comercialização justa. É por isso que outras denominações, como circuitos de proximidade (AUBRI; CHIFFOLEAU, 2009) ou circuitos locais (MARECHAL, 2008), têm sido utilizadas, reforçando a noção de proximidade geográfica e aludindo ao aspecto social/relacional presente na ligação entre consumidor e produtor, nos processos de desenvolvimento local e na territorialização da alimentação. Alguns autores preferem utilizar ainda o termo circuitos alternativos (DEVERRE; LAMINE, 2010), numa perspectiva de questionar o modelo convencional, propor novos princípios de troca e relações mais justas entre produtores e consumidores.
Independente da denominação, esses tipos de circuito de comercialização reforçam a noção de autonomia e conferem um maior peso e participação de consumidores e produtores na definição dos modos de produção, troca e consumo. Para Dubuisson-Quellier et al. (2011), os movimentos sociais podem adotar diferentes estratégias para tornar os cidadãos mais ativos, como a construção de formas alternativas de compra e troca; investimentos em educação do consumidor; campanhas de conscientização; e lobby político. Da mesma maneira, o aprendizado proporcionado pelos sistemas alternativos, considerando os benefícios sociais e ambientais trazidos por essas práticas agrícolas e culinárias, enquanto expressões democráticas envolvendo pessoas e instituições, constitui fonte de empoderamento (empowerment), tornando-os cidadãos conscientes de sua alimentação ou consumidores cidadãos (WILKINS, 2005; LEVKOE, 2006).
Mesmo tendo consciência dos limites das definições, utilizaremos o termo circuitos curtos (CC) para designar, com base em experiências brasileiras e francesas, modos de troca e circulação de mercadorias de forma justa e solidária para ambas as partes: produtores e consumidores. O objetivo deste texto é analisar algumas questões relativas aos circuitos curtos, como: Quais as modalidades de circuitos curtos? Como funcionam? Quais as características e benefícios de cada tipo de CC? Os CC são viáveis para as propriedades familiares? Em que condições?
TIPOLOGIA, CARACTERÍSTICAS E BENEFÍCIOS DOS PRINCIPAIS CIRCUITOS CURTOS
No Brasil e na França, já existe uma diversidade de experiências de vendas de alimentos ecológicos em circuitos curtos (Figura 1).
Segundo Darolt (2012), a maioria dos produtores de base ecológica com bons resultados de comercialização tem utilizado dois a três canais de venda (feiras do produtor, entrega de cestas em domicílio e, mais recentemente, compras governamentais), embora exista uma gama de alternativas, que são descritas no Quadro 1.
Essa multiplicação dos circuitos curtos e de formas inovadoras de acolhida na propriedade pode potencializar a agricultura de base ecológica, aproximar agricultores e consumi- dores e reconectar o mundo rural e o urbano.
CARACTERÍSTICAS E ORGANIZAÇÃO DAS UNIDADES PRODUTIVAS EM CIRCUITOS CURTOS (CC)
Nos dois países, um dos pilares de sustentação das unidades produtivas de pequena escala é o trabalho familiar, que tem uma carga intensa e deve aliar diferentes competências (produção, transformação e comercialização) no intuito de diminuir custos e agregar valor aos produtos. Nesses sistemas, a autonomia do agricultor em termos de gestão, planejamento e comercialização é maior quando comparada à dos circuitos longos. Segundo Lamine (2012), a autonomia não significa isolamento, sendo baseada na troca formal ou informal entre produtores e sua rede de contatos, tanto no âmbito da produção como da transformação e da comercialização.
As propriedades em CC são mais diversificadas, trabalhando simultaneamente com uma ampla gama de produtos vegetais (olericultura e fruticultura, na maioria) e de origem animal (ovos, queijo, leite e derivados, embutidos, mel). Se, por um lado, essa alta diversificação é desejada, por ser coerente com os princípios do manejo agroecológico, por outro, torna o planejamento produtivo mais complexo. Observa-se ainda que essas unidades produtivas tendem à pluriatividade, com investimentos em agroturismo, gastronomia, lazer, alojamentos e atividades pedagógicas (DAROLT, 2012).
A organização do trabalho para quem escolhe vender via circuitos curtos se torna mais ou menos complexa em função dos recursos humanos e econômicos disponíveis na propriedade (DEDIEU et al., 1999). Em unidades familiares de pequeno porte, é fundamental agregar valor ao produto (com a transformação), vender sempre que possível de forma direta e potencializar os serviços na propriedade (vendas no próprio local, acolhida com restaurante e alojamento, turismo rural).
Já a forma de comercialização mais adequada para cada tipo de produtor pode variar em função da organização do sistema de produção e da disponibilidade de trabalho e infraestrutura. Em CC, as práticas agrícolas utilizadas, a organização do trabalho, os volumes de produção e os tipos de produtos devem ser adaptados para responder às demandas dos consumidores.
UM MODELO DE DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR SUSTENTÁVEL
A crise do modelo agroalimentar dominante abre espaço para a discussão de novas proposições de desenvolvimento local que incorporem não apenas variáveis técnico-produtivas, econômicas e ambientais, mas também valores sociais, éticos e culturais. Princípios como autonomia, solidariedade, segurança alimentar, justiça social, respeito à cultura e tradição locais, assim como a reconexão entre produtores e consumidores, são observados nos circuitos curtos.
As iniciativas bem sucedidas em CC acontecem, normalmente, em locais onde se verifica a formação de uma rede com estreita parceria entre o poder público, entidades não governamentais, organizações de agricultores e consumidores. Isso nos levou a pensar um conceito de sistema agroalimentar territorial, que podemos definir como um conjunto de todos os atores de um território e das estruturas do setor de produção, processamento, distribuição e consumo, incluindo ainda a pesquisa, assistência técnica, ensino, políticas governamentais, órgãos reguladores, consumidores e sociedade civil (LAMINE, 2012).
As políticas públicas podem também ser direcionadas para a criação de campanhas informativas permanentes que enfatizem as qualidades intrínsecas do alimento ecológico, valores éticos e processos produtivos envolvidos, bem como os impactos positivos de sua produção para o meio ambiente e para a saúde dos consumi- dores, o que pode ajudar a influenciar atitudes e percepções dos consumidores. As experiências brasileiras e francesas mostram que um sistema alternativo de comercialização em CC pode contribuir para a adoção de hábitos de consumo mais saudáveis e um melhor conhecimento das dificuldades na produção agrícola.
Tem-se demonstrado que a combinação de circuitos curtos com as características da produção ecológica (pequenas áreas, trabalho familiar, produção diversificada em menor escala, autonomia dos agricultores, ligação forte com o consumidor, preservação da biodiversidade, valorização da paisagem, qualidade alimentar e saúde dos produtores e consumidores) está em sintonia com o conceito de sustentabilidade. Existem algumas controvérsias em relação à sustentabilidade ambiental, sobretudo em função dos baixos volumes transportados. Já a sustentabilidade social é questionada pelo baixo número de pessoas atingidas (REDLINGSHOFER, 2006).
À GUISA DE CONCLUSÃO
A cada ano, inovações em circuitos curtos criam diferentes formas de distribuição (cestas diversificadas; feiras de produtores noturnas; lojas virtuais por internet; vendas e degustação na propriedade; restaurantes com cardápios orgânicos; merenda escolar ecológica; acolhida na propriedade), o que demanda cada vez mais treinamento e informação qualificada para produtores e consumidores.
Essa multiplicação de formas de comercialização direta em circuitos alternativos deve ser constantemente acompanhada e avaliada para que sejam garantidos os princípios de equidade, solidariedade e sustentabilidade das propriedades. Na França, proliferam sistemas de cestas ecológicas entregues para os consumidores, mas em muitos casos não existe uma aproximação entre produtores e consumidores, assim como não há garantia de maior sustentabilidade para os produtores. O desafio de manter os princípios de um comércio justo e solidário pressupõe, portanto, o desenvolvimento de ferramentas de monitoramento e análise que permitam avaliar a conformidade dos produtos ecológicos comercializados em circuitos curtos.
Cada vez mais o consumidor consciente busca nos mercados locais produtos ecológicos, de época e com preços justos, mas também quer adquirir produtos com a cara do produtor, em que sejam ressaltadas as características locais das comunidades, como as tradições, o modo de vida, a valorização do saber-fazer, o cuidado com a paisagem, etc. Esse conjunto de características singulares pode ser a marca local que os consumidores procuram. Não se trata apenas de um ganho em escala (quantidade), mas em qualidade. Isso cria novas relações sociais e novos valores, promovendo o resgate da autonomia dos agricultores. Nesse sentido, as políticas públicas têm um papel fundamental para formar e informar os consumidores menos esclarecidos.
Moacir R. Darolt
Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento Agrônomo do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar)
[email protected]
Claire Lamine
Doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess)
Pesquisadora do Institut National de la Recherche Agronomique (Inra), Avignon, França
[email protected]
Alfio Brandenburg
Doutor em Ciências Sociais
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
[email protected]
Referências Bibliográficas:
AUBRI, C.; CHIFFOLEAU, Y. Le développement des circuits courts et l’agriculture périurbaine: histoire, évolution en cours et questions actuelles. Innovations Agronomiques, v. 5, p. 53-97, 2009.
CHAFFOTTE, L. ; CHIFFOLEAU, Y. Vente directe et circuits courts : évaluations, définitions et typologie. Cahiers de l’Observatoire CROC, Montpellier, n. 1-2, fev.mar. 2007. 8 p.
DAROLT, M.R. Conexão Ecológica: novas relações entre agricultores e consumidores. Londrina: IAPAR, 2012. 162 p.
DEDIEU,B.; LAURENT, C.; MUNDLER, P. Organisation du travail dans les systèmes d’activités complexes: intérêt et limites de la méthode BT. Economie rurale, n. 253, p. 28- 35, set.out. 1999.
DEVERRE, C.; LAMINE, C. Les systèmes agroalimentaires al- ternatifs: Une revue de travaux anglophones en sciences sociales. Economie Rurale, n. 317, p. 57-73, mar. 2010.
DUBUISSON-QUELLIER, S; LAMINE, C.; LE VELLY, R. Is the consumer soluble in the citizen? Mobilization in alternative food systems in France. Sociologia Ruralis, v. 51, n. 3, p. 304-323, 2011.
GUIVANT, J. S. Os supermercados na oferta de alimentos orgânicos: apelando ao estilo de vida ego-trip. Ambiente e Sociedade, Campinas, v. 4, n. 2, p. 62-82, 2003.
IDEC. Rota dos Orgânicos. Revista do IDEC, São Paulo, n. 162, p. 20-23, fev., 2012.
KLUTH, B.; BOCCHI JR., U.; CENSKOWSKY, U. Pesquisa sobre o comportamento e a percepção do consumidor de alimentos orgânicos no Brasil – 2010. München: Organic Services/ Jundiaí: Vitalfood, 2010. 38 p.
LAMINE, C. Les Amaps: un nouveau pacte entre producteurs et consommateurs? Gap: Ed.Yves Michel, 2008. 140 p.
LAMINE, C. Changer de système: une analyse des transitions vers l’agriculture biologique à l’echelle des systèmes agri-alimentaires territoriaux. Terrains et Travaux, v. 20, p. 139-156, 2012.
LEVKOE, C. Learning democracy through food justice movements. Agriculture and Human Values, v. 23, p. 89-98, 2006.
MARECHAL, G. Les circuits courts alimentaires: bien manger dans les territoires. França: Ed. Educagri, 2008. 216 p.
MUNDLER, P. (Org.). Petites exploitations diversifiées en circuits courts. Soutenabilité sociale et économique. Lyon: Isara Lyon, 2008. 34 p.
REDLINGSHOFER, B. Vers une alimentation durable? Ce qu’enseigne la littérature. Le courrier de l’environnement de l’INRA, n. 53, p. 83-102, 2006.
WILKINS, J. Eating Right Here: Moving from Consumer to Food Citizen. Agriculture and Human Values, v. 22, n. 3, p. 269-273, 2005.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N2 – A diversidade dos circuitos curtos de alimentos ecológicos: ensinamentos do caso brasileiro e francês