João Carlos Costa Gomes, Carlos Alberto Medeiros , Gustavo Crizel Gomes e Lirio José Reichert
Uma questão que tem se mantido aberta na Agroecologia é a necessidade de base científica apropriada. Nos ambientes acadêmicos, e mesmo fora deles, existe um certo consenso de que a Agroecologia está amparada apenas em conhecimentos empíricos.
Desde seu início, o movimento que vem construindo a Agroecologia no Brasil e no mundo não é diferente: esteve relacionado aos movimentos sociais, organizações não-governamentais e representações dos agricultores. Somente nos últimos anos, instituições de pesquisa e universidades iniciaram programas no tema, a maioria a partir de ações individuais e poucos resultantes de políticas institucionais
Muitos conhecimentos e tecnologias produzidos seguindo uma concepção científica disciplinar ou reducionista são úteis para processos de transição agro- ambiental ou para as agriculturas de base ecológica. Entretanto, projetos específicos em Agroecologia são recentes, dado o longo período de execução de projetos organizados a partir de enfoques reducionistas. Este artigo relata parte da história da Estação Experimental Cascata, da Embrapa Clima Temperado, em Pelotas (RS), apresentando sua experiência voltada para a pesquisa em agricultura familiar de base ecológica.
A ESTAÇÃO EXPERIMENTAL CASCATA E AS MUDANÇAS NO CONTEXTO AGRÍCOLA
A Estação Experimental Cascata (EEC) foi criada em 1938, durante o governo de inspiração nacionalista de Getúlio Vargas. Dos relatórios do início dos anos 40, constam observações ainda hoje relevantes para a Agroecologia. Uma delas dizia respeito à necessidade de estudar espécies arbóreas de rápido crescimento e aptidão para produção de celulose e energia: “Talvez no futuro sejam coisas muito demandadas e não podemos correr o risco de acabar com florestas nativas, principalmente de araucárias”. Outra apontava que era preciso fazer pesquisa com hortaliças que produzissem “da semente a semente”, para não submeter os agricultores à dependência das companhias internacionais. Uma terceira afirmava a necessidade de diversificação da matriz produtiva, relatando trabalhos com 123 espécies. Algumas delas só recentemente voltaram à cena, como tungue e mamona, na época cultivadas para a extração de óleo, agora com foco em agroenergia.
O conceito de sustentabilidade estava implícito nesses documentos, embora ele não fosse textualmente citado. Porém, essa preocupação com o longo prazo e com as questões do entorno socioambiental perdeu força com a avassaladora emergência dos valores associados aos princípios científico-tecnológicos da Revolução Verde.
Assim, com o passar do tempo, a agricultura familiar vivenciou a redução de sua diversidade e houve especialização e aumento da dependência a insumos externos. A EEC foi testemunho e reflexo desse processo: da pesquisa em agricultura diversificada passou à especialização, com foco principal em frutas e hortaliças para industrialização. A preocupação inicial com o contexto socioambiental em que está inserida e com o seu futuro sucumbiu à lógica mais imediatista da indústria, cuja ótica coloca em primeiro lugar a produtividade.
Em meados dos anos 80, quando já existiam críticas ao modelo de agricultura intensiva e sua inadequação à agricultura familiar, foram iniciadas ações de diversificação, racionalização ou substituição de insumos. Porém, como não tiveram seguimento, não foram capazes de promover grandes mudanças. Essas só vieram a partir de 1996, com a criação do Fórum da Agricultura Familiar na região.
A CONSTRUÇÃO DO PROTAGONISMO: O FÓRUM DA AGRICULTURA FAMILIAR
A criação do Fórum da Agricultura Familiar ocorreu a partir do interesse de entidades regionais que vivenciam e trabalham na agricultura familiar. O fórum é um espaço de discussão, articulação e implementação de ações voltadas ao desenvolvimento sustentável. Em sua composição, encontram-se instituições públicas, organizações de agricultores, pescadores artesanais, assentamentos de reforma agrária, movimentos sociais e ONGs. Esses grupos têm representantes no núcleo dirigente, formado por cinco pessoas. As reuniões, seminários ou oficinas do fórum, que ocorrem na segunda terça-feira de cada mês, são realizadas na Estação Experimental Cascata.
Entre os objetivos do Fórum da Agricultura Familiar estão a busca de soluções conjuntas para promover o desenvolvimento local sustentável, o apoio à implementação de políticas públicas estruturantes e o encaminhamento de propostas discutidas e aprovadas às instâncias competentes, constituindo-se numa representação política regional reconhecida pelo trabalho desenvolvido. O fórum proporcionou assim novas condições sócio- organizativas para que a EEC voltasse a incorporar a dimensão da sustentabilidade em suas ações de investigação científica. Além disso, permitiu a criação de um ambiente de interação inter-institucional que equilibra as relações de poder entre os diferentes atores sociais envolvidos, assegurando o protagonismo dos agricultores e suas organizações no processo.
O PROJETO PIONEIRO: TECNOLOGIAS PARA OS SISTEMAS DE PRODUÇÃO
Durante quatro anos, pesquisadores e técnicos da Embrapa, da Fundação Estadual de Pesquisa Agro- pecuária (Fepagro-Sul), da Emater/Ascar-RS, do Instituto Riograndense do Arroz (Irga), de ONGs (Capa, Unaic, Coopal, Coopar, ArpaSul, MPA, Cooperativa Sul Ecológica) e agricultores familiares realizaram relevante trabalho na região sul do Rio Grande do Sul, com foco no desenvolvimento sustentável baseado em princípios agroecológicos.
Entre janeiro de 2001 e dezembro de 2004, esse conjunto de instituições colocou em prática o projeto Geração e Adaptação de Tecnologia Para os Sistemas de Produção e Ações Integradas Para o Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar na Região Sul do RS, modalidade de pesquisa contratada – um dos itens dos projetos de suporte do Programa RS Rural, do governo do estado do Rio Grande do Sul.
O projeto foi voltado para os agricultores familiares da região, especialmente para aqueles que se encontravam organizados, dispostos a adotar práticas agroecológicas, mas carentes de suporte técnico-científico para iniciar o processo de transição para a agricultura sustentável. O enfoque metodológico adotado, a pesquisa participativa, teve como objetivo contribuir para a recuperação da cidadania e auto-estima dos atores sociais, muitos deles alijados das decisões sobre políticas públicas.
Entre os resultados alcançados estão:
- identificação de lacunas nos sistemas de produção para orientar ações de pesquisa para a agricultura familiar;
- capacitação de técnicos e agricultores em processos de agregação de valor e acesso a merca- dos, visando o aumento da renda familiar;
- realização de pesquisa em indicadores de sustentabilidade e recuperação da qualidade de solo e água;
- redução da dependência de insumos externos, contribuindo para o processo de transição agroambiental;
- realização de ensaios de síntese nas estações experimentais e em propriedades dos agricultores da Rede de Referência;
- sistematização, validação de tecnologias, produtos e processos desenvolvidos por agriculto- res e parceiros para a solução de lacunas dos sistemas produtivos;
- coleta e seleção de germoplasma adaptado para manutenção da agrobiodiversidade;
- produção de insumos básicos, entre eles biofertilizantes, compostos e fitoprotetores; e
- a consolidação de um arranjo local de pesquisa voltado para a promoção da sustentabilidade da agricultura familiar na região.
PROJETOS E ATIVIDADES EM ANDAMENTO
A articulação do conhecimento científico com o saber dos agricultores têm sido preocupação permanente nas ações do fórum. A sua existência e o arranjo institucional nele presente têm garantido o protagonismo dos diferentes grupos sociais que atuam na agricultura familiar da região. As tecnologias sistematizadas, adaptadas ou geradas promovem maior autonomia dos agricultores e viabilizam economicamente a Agroecologia. Já o enfoque metodológico, baseado nos princípios da pesquisa participativa, proporciona a construção de propostas onde os agricultores, por meio de suas organizações, participam da articulação de políticas públicas.
ENSAIOS DE SÍNTESE
Uma linha de trabalho que vem sendo importante nos processos de inovação tecnológica são os ensaios de síntese. Do ponto de vista formal, esses ensaios trabalham com variáveis que necessitam de controle, o que os difere de outras metodologias de validação e disponibilização de tecnologias que podem abrir mão do rigor científico. Nos ensaios, são utilizadas tecnologias e informações da pesquisa ou da experiência de técnicos e agricultores para a busca de soluções para os problemas tecnológicos detectados nos sistemas de produção. Preserva-se o enfoque sistêmico e a interdisciplinaridade na aplicação conjunta das tecnologias, realizando-se os devidos ajustes, para posterior validação nas propriedades dos agricultores. Esses testes permitem que os agricultores resolvam pontos de estrangulamento nos sistemas de produção. Alguns dos principais ensaios de síntese foram realizados com as culturas da figueira, do pessegueiro e o resgate do sistema milpa.
O cultivo do figo, por exemplo, dispensa o uso intensivo de insumos sintéticos para o controle de pragas e doenças, razão pela qual a transição para um sistema ecológico pode ser feita com certa facilidade. Foi instalado um pomar com a cultivar Roxo de Valinhos, dando especial atenção ao manejo do solo, crucial para o sistema preconizado. O solo foi manejado no sistema de cultivo mínimo, com a implantação da leguminosa feijão-de-porco nas entrelinhas das fruteiras após o inverno e uma consorciação de aveia preta ou centeio com ervilhaca no outono. Foi feita adubação com esterco bovino curtido e o controle da ferrugem foi realizado com a utilização de calda cúprica. Também foi observada a interação de irrigação por gotejamento e aspersão com a utilização de cobertura morta na linha das figueiras. A cobertura nas parcelas irrigadas por aspersão resultou em um aumento de 100% na produção e na redução da incidência de doenças.
Já na cultura do pessegueiro, o ensaio avaliou a transição ecológica em pomar implantado em sistema convencional. No solo, mantido com cobertura vegetal, semeou-se feijão-miúdo na primavera, aveia-preta no outono e milheto com feijão miúdo (caupi) no verão. Nos ciclos seguintes foi semeada aveia-preta consorciada com ervilhaca-peluda no outono. Durante a transição, e pelos sintomas de elevada deficiência do solo, a adubação foi realizada com uma mistura de esterco com fertilizantes solúveis. O controle de doenças foi feito com caldas sulfocálcica e bordalesa, enquanto as pragas foram combatidas com iscas e armadilhas. Os resultados foram satisfatórios, mantendo a produção nos padrões normais, com frutos de boa aparência. No entanto, o ataque da mosca-das-frutas (Anastrepha fraterculus) foi um dos problemas de mais difícil solução na produção ecológica do pêssego. O controle com armadilhas não teve o impacto desejado, ainda que tenha conseguido um grande número de capturas.
O sistema milpa, prática tradicional desde colonizações pré-colombianas no México, consiste na consorciação de milho, feijão e cucurbitáceas. O ensaio foi realizado por dois anos, comprovando o aumento da produção em todas as culturas, com exceção do feijão em ano de forte seca.
PESQUISA PARTICIPATIVA EM REDE DE REFERÊNCIA
A rede é formada por propriedades representativas dos principais sistemas de produção familiar da região, selecionadas com a participação de todos os parceiros do projeto. Para formar a Rede de Referência, foram escolhidas quinze propriedades nos municípios de Pelotas, São Lourenço do Sul, Canguçu, Morro Redondo, Rio Grande e São José do Norte.
A rede tem como pressuposto tornar-se referência técnica e econômica para outras unidades familiares. Um dos objetivos é a identificação de demandas de pesquisa, por meio de diagnóstico participativo e da realização de testes, ajustes e validação de tecnologias. Na sua condução, são desenvolvidas atividades para aumentar a eficiência dos sistemas de produção, disponibilizando informações e orientando os agricultores na gestão da propriedade. Além disso, a rede serve como base pedagógica para capacitação de técnicos e agricultores.
No estabelecimento da rede, além da representatividade, foi considerado o compromisso do agricultor com os princípios da pesquisa participativa em Agro- ecologia ou com a implementação do processo de transição agroecológica, devendo, em ambos os casos, estar disposto a realizar mudanças tecnológicas. Para funcionar como pólo irradiador, foram selecionados agricultores com bom relacionamento com a comunidade e participantes de grupos ou associações.
Depois da escolha, ocorreu a caracterização dos sistemas de produção, tendo a diversidade como um dos princípios da Rede de Referência. A fruticultura, com a produção de pêssego, citros e morango, é um dos sistemas mais importantes. Embora permeie a quase totalidade das propriedades, a olericultura tem maior expressão no sistema produtivo da cebola, concentrado nos municípios da região costeira, Rio Grande e São José do Norte. Outra atividade presente em número significativo de propriedades é a produção de leite. A Cooperativa de Pequenos Agricultores Produtores de Leite da Região Sul (Coopal) e a Cooperativa Mista dos Pequenos Agricultores da Região Sul (Coopar) estão vinculadas a essas experiências.
Com apoio de todos os participantes, foi desenvolvido o Caderno de Caracterização da Unidade de Referência, ferramenta fundamental no diagnóstico que possibilitou conhecer os aspectos técnicos, econômicos, sociais e ambientais de cada unidade, além de apontar alguns indicadores de sustentabilidade.
Como resultado da Rede de Referência, foram criados vários grupos e associações de agricultores ecológicos, feiras de produtos agroecológicos e um departamento específico para tratar de Agroecologia na Coopar.
BIOFÁBRICA: DESENVOLVIMENTO, PRODUÇÃO E VALIDAÇÃO CIENTÍFICA DE INSUMOS PARA A AGROECOLOGIA
A produção de insumos para uso na transição agroambiental na região sul do Rio Grande do Sul ganhou força a partir de 2001, quando foi instalada a Biofábrica, estrutura criada na EEC. Destinada ao estudo e produção de insumos para nutrição e proteção de plantas, a Biofábrica também objetiva a recuperação do conhecimento sobre esses insumos, a pesquisa sobre sua eficiência e a capacitação dos agricultores na sua elaboração e utilização. Objetiva ainda desenvolver novos sistemas de fitoproteção que aumentem a segurança de agricultores e consumidores e que reduzam custos de produção. São priorizados produtos capazes de ativar os mecanismos naturais de resistência das culturas, como é o caso da pesquisa com plantas bioativas. Recentemente, junto à Biofábrica, foi instalado um forno que produz extrato pirolenhoso, usado como fitoprotetor, agora avaliado cientificamente.
Também foi instalada uma central de produção de compostagem e adubos orgânicos, usando basicamente resíduos gerados nas propriedades da região, com a adição de resíduos industriais, como cascas de acácia e eucalipto compostadas, casca de arroz – material abundante na região – e produtos derivados do xisto betuminoso. São utilizados métodos clássicos de compostagem e de vermicompostagem, juntamente com a pesquisa sobre novas tecnologias no tema.
BIODIVERSIDADE COMO FATOR DE SUSTENTABILIDADE NA AGRICULTURA FAMILIAR
As ações conduzidas pela EEC no campo da biodiversidade objetivam coletar, caracterizar e avaliar germoplasmas de hortaliças, grãos e espécies florestais para uso na recuperação de solos e exploração econômica. São vários bancos ativos de germoplasma, englobando grande diversidade de espécies como cucurbitáceas, cebola, cenoura, mamona, batata doce, milho, pimentas, fruteiras nativas, azevém e plantas medicinais.
Merece destaque a recuperação do milho varietal farináceo branco açoriano, oriundo da colonização açoriana, de grãos brancos, aparência cerosa e elevada capa- cidade de produção de farinha, que possui textura equivalente à do trigo. A contaminação do material original ocasionou a perda de grande parte de suas características. Por meio de parceria com a Fepagro e com a Emater, foi possível realizar processo de seleção visando à recuperação dessas características. Houve multiplicação de sementes e repasse aos agricultores familiares, que hoje têm nesse material excelente fonte de produção de farinha.
Ações voltadas para a identificação, reprodução e reintrodução de espécies florestais arbóreas e arbustivas da floresta estacional semidecidual na Serra dos Tapes também mereceram atenção.
QUINTAIS ORGÂNICOS DE FRUTAS CONTRIBUINDO PARA A SEGURANÇA ALIMENTAR
O incentivo à intensificação da produção dos quintais representa a revalorização a uma prática voltada para o consumo familiar, comum no passado. Com a especialização da produção, até mesmo agricultores familiares tinham abandonado a idéia de que, em pequenos espaços, é possível produzir boa parte das necessidades básicas da família. A proposta dos quintais é a de produzir frutas durante o ano todo, com o plantio de 12 espécies, cinco plantas por espécie, totalizando 60 plantas em área inferior a um quarto de hectare. As espécies selecionadas têm propriedades alimentares, mas também de prevenção de doenças e fortalecimento do organismo. Em três anos, foram instalados mais de 300 quintais em propriedades familiares, assentamentos de reforma agrária, áreas quilombolas, escolas rurais, urbanas e peri-urbanas.
NOVOS MÉTODOS DE PESQUISA, NOVAS RELAÇÕES E NOVOS PAPÉIS
Independentemente do tema pesquisado e da metodologia empregada, o conjunto das experiências em realização a partir da EEC representa a oportunidade de renovação de papéis dos diferentes atores envolvidos no processo de investigação científica. Pesquisadores participando de processos organizativos e da discussão de políticas públicas são um exemplo disso, assim como a participação de técnicos dos movimentos sociais e da extensão rural em projetos de pesquisa. Dessa forma, a condução de estudos não-restritos aos campos experimentais e laboratórios tem ensejado o protagonismo dos agricultores no processo e o fortalecimento da capacidade de realizar suas próprias observações.
João Carlos Costa Gomes
pesquisador da Embrapa Clima Temperado
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Carlos Alberto Medeiros
pesquisador da Embrapa Clima Temperado
Gustavo Crizel Gomes
engenheiro agrônomo, colaborador do Programa RS Rural
Lirio José Reichert
analista da Embrapa Clima Temperado
Baixe o artigo completo:
Revista V3N4 – A Estação Experimental Cascata e a construção da base científica da Agroecologia