Sofía Monsalve Suárez e Philip Seufert
Em caso algum poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Art. 1º)
A falta de acesso adequado e seguro à terra e aos recursos naturais por parte da população pobre das zonas rurais e urbanas é uma das principais causas da fome e da pobreza no mundo. No decorrer de seus 25 anos de existência, a Rede de Ação e Informação pelo Direito de se Alimentar (Fian – Food Information & Action Network –, em inglês) documentou mais de 500 casos de violações do direito à alimentação adequada. Destes, 80% estão relacionados com a falta de acesso aos recursos. Nesse sentido, garantir a posse da terra e dos recursos naturais é um tema que deve ser urgentemente abordado, afim de assegurar de imediato os meios de vida das populações rurais e urbanas.
No entanto, ainda são enormes as desigualdades na distribuição da propriedade da terra – da América Latina à África Austral, passando pelo Sudeste Asiático –, sendo este um motivo de profunda preocupação da comunidade internacional. Da fato, nas zonas rurais podemos observar uma tendência à reconcentração da posse da terra e à reversão dos processos redistributivos promovidos por reformas agrárias ocorridas no século passado. Uma das principais causas dessa reconcentração de terras e de recursos naturais é um fenômeno que se intensificou durante os últimos anos: a grilagem de terras, que consiste no estabelecimento de acordos entre Estados e investidores estrangeiros privados ou públicos para tomar posse ou assumir o controle de grandes extensões de terra.
O QUE É A GRILAGEM MASSIVA DE TERRAS?
Os conflitos agrários e as lutas para manter ou obter acesso e controle sobre a terra não são fenômenos novos na África, Ásia e América Latina. Há muito tempo, mulheres, povos indígenas, camponeses, pequenos produtores e criadores veem suas terras passarem para as mãos de atores poderosos, sobretudo dos seus governos, das elites nacionais ou de investidores empresariais. Nesse sentido, infelizmente a grilagem de terras não é uma novidade, representando algo recorrente na história. Nos últimos anos, porém, a pressão sobre as terras de famílias camponesas e populações tradicionais se acentuou em função do aumento das transações por parte de investidores estrangeiros (governos ou companhias multinacionais) que se apropriam de áreas cada vez maiores.
Nos últimos quinze anos, diversos fatores contribuíram para a intensificação desse processo de usurpação em muitos países: a adoção de políticas de desregulamentação, os acordos de comércio e investimento e as reformas na governança orientadas para satisfazer o mercado. As recentes crises alimentares e financeiras aumentaram o ímpeto dessa onda de investimentos em terras por parte de governos e investidores financeiros. De fato, há cerca de três anos, surgiu uma nova forma de grilagem de terras: investidores públicos ou privados tomam controle de grandes superfícies férteis destinadas à produção agrícola, o que afeta especialmente os países mais pobres, mas também outros países do mundo.
Podemos apontar ainda outras razões para esse novo fenômeno de grilagem massiva de terras. A pressão cada vez maior para que se produza agrocombustíveis como alternativa às energias fósseis está criando uma demanda artificial sem precedentes na história dos cultivos de renda. Outros fatores importantes são a crise alimentar mundial e a crise financeira. A crise dos preços dos produtos alimentícios de 2007-2008 gerou um aumento de compras e arrendamentos de terras em países em desenvolvimento. Vários países que dependem de importações de alimentos estão buscando externalizar sua produção adquirindo terras cultiváveis em outros países, com o objetivo de garantir sua segurança alimentar a longo prazo. Ao mesmo tempo, e como consequência da recente crise financeira, investidores privados descobriram nas terras agrícolas estrangeiras uma nova fonte para obter lucro.
Ainda não se pode dimensionar a magnitude exata do processo atual de grilagem de terras, uma vez que não é fácil conseguir detalhes sobre os diversos projetos. Segundo uma publicação recente do Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional (HLPE, sigla em inglês), entre 50 e 80 milhões de hectares de terra boa para cultivo – quantidade suficiente para alimentar 50 milhões de famílias na Índia – foram transferidos das mãos dos agricultores para as corporações nos últimos anos. As empresas implicadas calculam que até o momento já tenham sido comprometidos cerca de 25 bilhões de dólares em nível global e ainda fazem alarde com relação à previsão de que essa cifra triplicará num futuro muito próximo.
GRILAGEM DE TERRAS E DIREITOS HUMANOS
Desde sua criação em 1986, a Fian pesquisou centenas de casos sobre conflitos de terra e tem apoiado as comunidades em suas lutas por seus direitos. A Fian foi uma das primeiras organizações a aplicar sistematicamente um enfoque baseado nos direitos humanos para abordar as questões agrárias. Também inovou ao conceituar o acesso à terra como uma obrigação fundada nos direitos humanos que, segundo essa lógica, estariam sendo violados pela grilagem de terras.
Em primeiro lugar, a grilagem de terras ameaça o direito à alimentação adequada garantido pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc). Em sua Observação Geral n. 12, o Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Cdesc) define que esse direito é exercido quando todo homem, mulher ou criança, individual ou coletivamente, tem acesso físico e econômico à alimentação adequada ou aos meios para obtê-la a qualquer momento. Essa definição inclui o acesso a uma terra produtiva ou a outros recursos necessários para garantir a alimentação adequada. Entretanto, esse acesso encontra-se ameaçado pela grilagem, que impede que vastas extensões de terra sejam uti- lizadas agora e no futuro por indígenas, camponeses, criadores, pescadores artesanais e povos nômades. A grilagem de terras também detém o controle sobre todos os recursos hídricos que existem no solo, no subsolo ou no entorno dessas terras, o que, na prática, constitui uma privatização da água. Nesse sentido, a grilagem de terras ameaça seriamente os direitos à alimentação e ao sustento seguro das comunidades afetadas.
De fato, a violação das leis internacionais de direitos humanos é intrínseca à grilagem de terras. Afinal, esse processo de apropriação indevida de terras é levado a cabo por meio de expulsões, da repressão das vozes críticas e da introdução de modelos não sustentáveis de agricultura e uso do solo que destroem o meio ambiente e esgotam os recursos naturais. Além disso, o acesso à informação é terminantemente negado e não há participação local significativa nas decisões que afetam a vida das comunidades. Nesse sentido, a Fian e outras organizações de direitos humanos documentaram um grande número de deslocamentos forçados de comunidades rurais e urbanas ao longo dos últimos anos.
AS RESPONSABILIDADES DOS GOVERNOS E DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
Diante dessa situação de violações acarretada pela grilagem massiva de terras, é importante lembrar aos governos suas obrigações de respeitar, proteger e garantir os direitos humanos. As ações e decisões que ignoram tais obrigações figuram entre as principais causas pelas quais a fome não só persiste, como inclusive está aumentando em nível mundial. Em vez de facilitar o acesso de investidores nacionais ou estrangeiros a imensas extensões de terras, os governos de- veriam suspender de imediato todas as formas de grilagem atuais e futuras. Deveriam rescindir os contratos já firmados, devolver a terra usurpada e tornar ilegal a grilagem de terras. Além disso, os governos devem implementar ações de acordo com a Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR), de 2006 – a referência multilateral de maior consenso e autoridade em relação à terra e aos recursos naturais –, assim como acatar as conclusões da Avaliação Internacional sobre Ciência e Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento (IAASTD, sigla em inglês), de 2008. Além disso, os governos devem ainda deixar de oprimir e de criminalizar quem defende suas terras.
Ao mesmo tempo, as organizações internacionais devem reconhecer as desastrosas consequências da grilagem de terras para as comunidades, os ecossistemas e o clima, em vez de tentar legitimá-las, concedendo-lhes uma fachada de investimentos responsáveis.
Diversas instituições internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, sigla em inglês) e a FAO, propuseram adotar alguns princípios que converteriam esses investimentos em uma oportunidade benéfica para todas as partes implicadas, incluindo as comunidades locais. Segundo seus proponentes, esses princípios para um investimento agrícola responsável evitaram desatrosas consequências para as comunidades, os ecossistemas e o clima. Porém, o que acabam fazendo é desviar a atenção do fato de que é necessário estabelecer uma regulamentação obrigatória e rigorosa para a atuação dos investidores em diversos âmbitos, como nos mercados financeiros e na agricultura. Um grande número de organizações camponesas e de criadores, junto a outras organizações da sociedade civil, já manifestaram sua firme oposição a tais princípios.
Com a grilagem massiva de terras, a globalização atinge os setores-chave das economias nacionais e de segmentos essenciais para a livre determinação dos países e dos povos. A grilagem aumenta a tendência de mercantilização dos recursos naturais e da agricultura. O sistema alimentar resultante ameaça sistematicamente a concretização do direito à alimentação não só dos camponeses, mas de todos os seres humanos. Portanto, todos temos o dever de resistir à grilagem de terras e seguir lutando por reforma agrária. Durante o Fórum Social Mundial de Dakar, Senegal, em fevereiro de 2011, movimentos sociais, organizações de pequenos produtores e outras organizações da sociedade civil lançaram um apelo coletivo contra a grilagem de terras. Mais de 650 organizações já aderiram. A defesa de um acesso justo à terra e aos recursos naturais é um elemento fundamental na luta pelo direito à alimentação e representa a essência de uma agricultura sus- tentável baseada na soberania alimentar e na justiça.
Sofía Monsalve Suárez
coordenadora do Programa Acesso a Recursos Naturais – Fian Internacional
[email protected]
Philip Seufert
Programa Acesso a Recursos Naturais – Fian Internacional
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Revista V8N4 – A grilagem massiva de terras e recursos naturais: violações do direito à alimentação adequada