Katia Karam, Mª Fernanda de A. C. Fonseca, Vainer Grizante Jr. e Yara M.C.Carvalho
As normas e procedimentos para regular os mercados de produtos orgânicos no Brasil foram inicialmente estabelecidos pelas próprias organizações dos movimentos orgânicos nacionais no início da década de 80. Já os debates sobre a necessidade da instituição de uma legislação nacional sobre a matéria se iniciaram somente nos anos de 1988/89 e foram intensificados em 1991, com a publicação do regulamento técnico EC 2092/91 da Comunidade Econômica Européia, o maior mercado importador de produtos orgânicos do mundo na época.
A certificação de produtos é reconhecida internacionalmente como garantia da conformidade orgânica, sendo a norma internacional ISO/IEC Guide 65 a base para a acreditação de organismos certificadores. No Brasil, antes mesmo de outros países da América Latina, a pressão pelo estabelecimento de normas oficiais para a certificação orgânica por parte de instituições que visavam o mercado exportador encontrou resistência de grupos e organizações preocupados com a exclusão de agricultores (as) familiares dos mercados e dedicados ao fortalecimento de relações mais próximas entre produtores e consumidores. Essa posição foi marcada em 1992, durante a 9ª Conferência da Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica (Ifoam), em São Paulo. O Movimento de Agroecologia da América Latina e Caribe (Maela) se formou a partir desse momento, aglutinando defensores de processos de “Certificação Participativa”, tais como o que já vinha sendo praticado pela Rede Ecovida de Agroecologia, no sul do Brasil.
Desde 1994, os movimentos orgânicos brasileiros vêm participando ativamente dos debates relacionados à regulamentação dos mercados dos produtos orgânicos, juntamente com representantes do setor privado e dos poderes executivo e legislativo. Na concepção desses movimentos, a escolha pela adoção de um critério único de avaliação da conformidade orgânica (a certificação), análogo ao sistema empregado na União Européia, seria inadequada aos agricultores (as) familiares brasileiros. Além dos altos custos pelo serviço de certificação, o sistema não se fundamenta nos vínculos de confiança estabelecidos entre produtores(as) e consumidores, desestimulando relações comerciais de longo prazo e as trocas de experiências, conhecimentos, saberes e sabores. Por outro lado, avalia-se que os sistemas participativos de garantia (SPGs), defendidos pelo movimento agroecológico, asseguram a conformidade segundo os princípios e as normas da agricultura orgânica tão bem ou melhor que o mecanismo de certificação convencional, baseado numa visita anual de um inspetor às propriedades para a simples conferência de notas fiscais de compra e venda e de outros registros das unidades produtivas.
Existem no mundo várias modalidades de sistemas participativos de garantia. Embora metodologias e processos variem, há grande convergência nos princípios centrais que orientam esses sistemas. A virtude deles está no fato de que são criados pelos próprios produtores e consumidores para atender às suas necessidades. Os SPGs são desenvolvidos segundo os contextos geográficos, políticos e de mercado em que seus criadores estão inseri- dos. Em face dessa convergência de princípios, os SPGs podem vir a favorecer o comércio dos produtos orgânicos entre países do Terceiro Mundo, desde que critérios flexíveis sejam adotados e regras claras sejam definidas.
A CRIAÇÃO DO GAO E A REGULAMENTAÇÃO DOS ORGÂNICOS NO BRASIL
O Grupo de Agricultura Orgânica (GAO) foi criado a partir do I Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), em 2002, com o objetivo de acompanhar, debater e influenciar a evolução do processo de definição do marco legal da agricultura orgânica no país. Composto por representantes de organizações e movimentos de agricultura orgânica no Brasil, o grupo se dedicou inicialmente ao acompanhamento do projeto de lei que propunha a regulamentação da agricultura orgânica e que tramitava no Congresso Nacional desde 1996.
No segundo encontro do grupo, o II ENGAO, realizado em abril de 2003, em Campinas (SP), foram elaboradas propostas ao texto original do projeto de lei. Essas propostas, encaminhadas ao relator do projeto na Câmara dos Deputados, foram quase integralmente incorporadas e se consagraram em dezembro de 2003, com a promulgação da Lei 10.831.
Em 2004, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) criou a Câmara Setorial de Agricultura Orgânica (CSAO), um órgão consultivo do ministro que teve como atribuição inicial elaborar proposições para a regulamentação da Lei 10.831. A Câmara se organizou na forma de subgrupos temáticos que ficaram com a responsabilidade de formular propostas sobre suas respectivas áreas: produção vegetal; produção animal; processamento da produção; extrativismo sustentável; certificação; comercialização; estruturas governamentais; justiça social e certificação participativa. Os dois últimos temas, entretanto, só foram tratados no âmbito do GAO.
A partir disso, o GAO pactuou um cronograma de trabalho conjunto com representantes do Mapa e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Em um primeiro momento, as propostas sobre os diferentes temas foram elaboradas separadamente. Posteriormente, as sugestões dos subgrupos do GAO foram apresentadas e discutidas com representantes dos ministérios envolvidos.
A admissão legal da não obrigatoriedade da certificação em caso de venda direta dos produtos orgânicos por agricultores(as) familiares oficializou as diferentes práticas de avaliação de conformidade existentes no país e viabilizou o acesso aos programas de compra governamental a grupos de agricultores que optam por SPGs. As reflexões que perpassaram as discussões no GAO mostram que
“(…) a lógica da certificação enquanto declaração de conformidade forma- lizada é, em alguma medida, estranha aos processos agroecológicos históricos, dos quais a geração de credibilidade é apenas um aspecto. Isso não significa a rejeição da certificação em si, por parte dos agricultores, dos agro-extrativistas, de suas organizações e das entidades de assessoria; mas significa, sim, que pensar a certificação isolada- mente, como exige a regulamentação da lei, demanda um outro tempo, que não se ajusta aos prazos negociados.” (Ribeiro, 2004).
Em 2005, uma comissão de sistematização trabalhou a minuta de regulamentação da lei, apresentando textos (decreto e instruções normativas) para discussão na Câmara Setorial de Agricultura Orgânica. Os principais pontos de desacordo foram votados e o texto final entrará em consulta pública, por 90 dias, em 2006.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desafio dos movimentos orgânicos brasileiros, do setor privado e dos órgãos governamentais é o de promover amplo debate com a sociedade para aprimorar, na regulamentação da lei, o texto existente, considerando:
- o estabelecimento de critérios científicos, sociais, culturais, econômicos e políticos para as normas orgânicas de produção, que devem ser adaptadas a países tropicais e de baixa renda e tomar como base os princípios da agricultura orgânica e as diferentes normas internacionais (Codex, Ifoam). Não obstante, há de se ter como meta o aprimoramento contínuo no âmbito nacional e internacional, particularmente no que se refere à não exclusão da agricultura familiar e à proteção dos agroecossistemas;
- a aceitação no âmbito nacional dos diferentes mecanismos de avaliação da conformidade, em especial aos SPGs;
- a efetiva transversalidade entre as diferentes redes, os setores privados, os órgãos e ministérios, garantindo assim a regulamentação adequada dos sistemas participativos de garantia e do extrativismo sustentável, o apoio aos mercados locais, ao comércio justo, ético e solidário e ao consumo consciente;
- os compromissos estabelecidos entre os movimentos orgânicos nacionais e os representantes governamentais, no intuito de garantir a participação efetiva brasileira nos fóruns internacionais, levando posições que estejam de acordo com os consensos obtidos no país;
- a participação dos consumidores nas discussões e práticas de regulamentação, mas também o favorecimento da aliança produtores-consumidores, além da conscientização quanto às qualidades (sensoriais, de origem, sanitárias, biológicas, sociais, ambientais) dos produtos orgânicos.
Assim, levando em conta os pontos expostos, deve-se ter como meta conseguir estabelecer políticas que se coloquem para além dos regulamentos que normalizam as atividades ligadas à produção e comercialização dos produtos de qualidade diferenciada, como os orgânicos e os do comércio justo. Vale lembrar também a necessidade de aprimoramento das políticas educacionais, agrícolas e agrárias, de crédito, compras governamentais, pesquisa, assistência técnica, entre outras.
A capacidade de articulação e mobilização já demonstrada pelo GAO e sua inserção nos espaços institucionais servem como estímulo e lhe dão credenciais para permanecer atuando no processo de regulamentação da agricultura orgânica no país. Na institucionalização dos SPGs, a colaboração efetiva dos movimentos sociais e das empresas junto aos ministérios e outros órgãos públicos será fundamental para dar seqüência ao processo de transformar as práticas em políticas públicas.
No âmbito latino-americano, os desafios consistem em socializar e estimular a troca de experiências e informações para facilitar o comércio orgânico entre países que utilizam os SPGs. Uma estratégia a ser implementada é a interface entre as ações do Maela e do Grupo da América Latina e Caribe (Galci) da Ifoam na busca por uma agenda comum.
Katia Karam:
colaboradora independente da Rede Cerrado [email protected]
Mª Fernanda de A. C. Fonseca:
Empresa de Pesquisa Agropecuária do Rio de Janeiro PESAGRO-RIO/EENF
[email protected]
Vainer Grizante Jr.:
União Certificadora para o Controle de Conformidade de Produtos, Processos e Serviços [email protected]
Yara M. Chagas de Carvalho:
Instituto de Economia Agrícola – SP
[email protected]
Referências
MEDAETS, JP.; FONSECA, M. F. de A. C. Produção orgânica: regulamentação nacional e internacional. Brasília; NEAD, 2005. 99 p. Série NEAD Estudos 9.
RIBEIRO, C. de B. Certificação participativa em rede: uma proposta para o Brasil. Relatório Parcial. Proposta a ser submetida ao Grupo de Trabalho de Certificação Participativa. Niterói: GAO – GTCPR/ ABIO, 2004. Disponível em: [email protected]. Acesso em: 20 out. 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V3N1 – A institucionalização da agricultura orgânica no Brasil