Fernanda Testa Monteiro, Claudenir Fávero
A preocupação ambiental vem se traduzindo, nas últimas décadas, em políticas ambientais codificadas por leis. Um dos marcos da temática ambiental na modernidade diz respeito à criação de áreas naturais protegidas, entre elas, as Unidades de Conservação (UCs). Forjadas no imaginário urbano, tendo como referência a dicotomia sociedade/natureza, aparecem, em especial, as unidades de conservação de proteção integral, que demandam a retirada de antigos moradores de seu interior para a preservação da natureza. Em várias partes do mundo, o início dessa prática foi marcado pela implantação de parques – unidades de proteção integral da natureza. Comumente, essas unidades são materializadas em espaços rurais, sobrepondo-se a territórios materiais e imateriais (HAESBAERT, 2007) constituídos historicamente pelas comunidades tradicionais que ali habitam.
Inicialmente, os parques tinham um caráter preservacionista ainda incipiente. Posteriormente, o número de parques foi ampliado, em um contexto de fortalecimento dos movimentos ambientalistas e de questionamentos acerca da importância da natureza para a manutenção da vida no planeta; ao mesmo tempo em que os remanescentes florestais nativos diminuíam em função da intensificação da produção capitalista e da ocorrência de acidentes industriais, atraíam as atenções internacionais. A criação de parques passou a gerar conflitos entre ambientalistas preservacionistas e a presença/uso nos/dos espaços de/por comunidades camponesas (MONTEIRO, 2011). A proteção integral das áreas naturais, como forma de se manter remanescentes de áreas nativas livres da ação humana tornando-se intocáveis, vem sendo colocada como uma necessidade da modernidade (MARTÍNEZ ALIER, 2007) e a iniciativa inspirou outros países, como o Brasil.
Em 2000, ao se regulamentar o artigo 225 da Constituição Federal brasileira, foi criado o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), que foi influenciado pelo preservacionismo estadunidense. Uma das inovações do SNUC foi justamente a de instituir a obrigatoriedade de realização de consulta pública aos moradores locais para a criação de unidades de conservação. Essa determinação teve por objetivo evitar a repetição de conflitos, já ocorridos em várias partes do país, que envolveram processos tumultuados de criação e implantação dessas unidades, entre elas, parques nacionais e estaduais.
Na atualidade, verifica-se o acirramento de conflitos em torno da implantação de parques em áreas habitadas por comunidades tradicionais. Tais unidades passaram a ser vinculadas a processos de compensação ambiental à degradação ambiental causada por extensas áreas de monocultivo de eucalipto, desmatamento provocado por atividades realizadas pelos latifúndios do agronegócio, construção de grandes barragens para geração de hidroeletricidade, atividades de companhias transnacionais mineradoras, dentre outras. Nesse arranjo, empreendedores valem- se da criação dessas unidades ou investem em seus projetos de implantação (por meio do paga- mento pela elaboração de planos de manejo e gestão, projetos de sinalização, etc.), como uma compensação pela degradação causada por suas atividades em outro local – realizando assim a modernização ecológica (ACSELRAD, 2004) de suas empresas, não enquanto tecnologia limpa, mas como solução técnica para a questão ambiental na modernidade, através do deslocamento geográfico de danos/pressões/conflitos.
A compensação ambiental compreende, pois, uma transferência geográfica de passivos ambientais. Dessa forma, a exploração capitalista/proteção integral da natureza configura-se como uma dualidade em uma contraditória relação de interdependência, que não se mostra capaz de frear o padrão de produção e consumo hegemônicos, sendo que ambas as faces, opostas complementares, incidem sobre territórios tradicionais.
Outro mecanismo similar, os selos verdes, também vêm agregando valor econômico aos produtos postos no mercado, com oportuna divulgação nas propagandas feitas pelas empresas. Além disso, em Minas Gerais, proprietários de extensas áreas de terra também passaram a se valer de UCs de proteção integral para compensação social de reserva legal. Recentemente, o Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM) permitiu a averbação de reserva legal de propriedades rurais dentro dos parques (Deliberações Normativas 132 e 138, de 2009), desde que sejam áreas de tamanho equivalente, localizadas no mesmo bioma e bacia hidrográfica – uma anistia pela degradação ambiental causada em determinada área. A partir dessas performances, governos estaduais e governo federal estipularam metas ambientais, atendendo a uma agenda ambiental global de aumento de UCs em todo o país, entre elas, os parques.
A LUTA DOS(AS) APANHADORES(AS) DE FLORES SEMPRE-VIVAS NA PORÇÃO MERIDIONAL DA SERRA DO ESPINHAÇO
A porção meridional da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, foi classificada como área prioritária para a conservação da biodiversidade, processo que contou com a participação de gestores ambientais públicos, técnicos de organizações não-governamentais ambientalistas e cientistas. Posteriormente, o Zoneamento Ecológico Econômico de Minas Gerais (ZEE/MG) também considerou essa área como prioritária para a conservação da flora no estado. A região tornou-se, assim, foco de políticas ambientais, sobretudo a criação de UCs.
Nos últimos 16 anos, foram criados uma estação ecológica e seis parques – dos quais cinco são estaduais (Rio Preto, Serra Negra, Pico do Itambé, Biribiri e Serra do Cabral); e um é federal (Sempre-Vivas). A extensão total das sete unidades de proteção integral chega a 197.396 hectares, que agregados às zonas de amortecimento (ou zonas tampão), em alguns casos se sobrepondo, atingem 865.100 hectares, o que representa 1,47% do território do estado. Além das unidades já referidas, a região conta com sete áreas de proteção ambiental (APAs), sendo seis municipais (Rio Manso, Felício dos Santos, Serra do Gavião, Serra do Cabral, Serra Mineira e Serra de Minas) e uma esta- dual (Águas Vertentes), integralizando 260.807 hectares; e duas reservas particulares do patrimônio natural (RPPNs) estaduais (Fazenda Arrenegado e Campo São Domingos). Ao final de 2010 o Ministério do Meio Ambiente reconheceu o Mosaico de Unidades de Conservação do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – Serra do Cabral que abrange 14 municípios e objetiva integrar a gestão das UCs, criando entre elas corredores ecológicos. O total da área ocupada por todas as UCs mencionadas e por suas respectivas zonas de amortecimento, também condicionadas a restrições de uso, chega a 919.800 hectares – excluindo-se as áreas de sobreposição (MONTEIRO, 2011).
Nas áreas do Mosaico, a coleta das flores sempre-vivas – plantas cujas principais espécies comercializadas pertencem aos gêneros Comanthera e Syngonanthus – constitui importante fonte de renda para as famílias das comunidades locais. Os conflitos entre os órgãos ambientais e as comunidades foram evidenciados em 2007 após a proibição da coleta no interior dos parques, onde se encontram os principais campos de coleta.
Nessa região, encontram-se comunidades, dentre elas algumas quilombolas, que tradicionalmente utilizam os ambientes dos campos como áreas de uso comum localizados sobre a serra. Antes da criação dos parques, as famílias permaneciam na serra durante longas jornadas, na época da seca, especialmente para a apanha, ou coleta de flores sempre-vivas, e para o manejo do gado rústico e de animais de carga nos campos. Eles costumavam arranchar, ou seja, dormir em ranchos, construídos em geral com matérias-primas que lá encontram com facilidade, como madeira e folha de palmáceas. Também era comum dormirem nas lapas (grutas nas formações rochosas), utilizando colchões feitos com capins nativos da serra. Algumas lapas, inclusive, recebem os nomes das famílias que tradicionalmente ali se estabeleciam para a apanha das flores, atividade que podia recrutar todos os membros de uma mesma família. Costumavam levar parte do ali- mento e complementar com o que lá encontravam. Esses momentos oportunizavam encontros, festas e enlaces entre famílias de diversas comunidades. A abundância de água é ressaltada pelos moradores como importante riqueza e patrimônio herdado.
As territorialidades dessas comunidades combinam diversos agroambientes contidos na serra e no pé-da-serra – onde geralmente a agricultura tradicional (roças, quintais, criação de animais de pequeno porte) para consumo familiar é praticada próximo às moradias, e que, dependendo dos ambientes, vale-se do uso de rotação com pousio para a reposição natural da fertilidade dos solos. Foram desenvolvidas estratégias de vida e saberes complexos, permeados por significações e compreensões contextualizadas pelos lugares onde se encontram – saberes agroecológicos, transmitidos e reinventados ao longo de muitas gerações que vêm garantindo o sustento das famílias ao longo do tempo. Contam ainda com uma organização do trabalho, de natureza familiar, para o autossustento e a obtenção de renda, por meio da comercialização do que produzem; com representações e práticas sociais de interação com a natureza, a qual é vista como criadora da vida e como um todo do qual fazem parte; e com códigos de apropriação e uso da terra, em que as relações de parentesco são marcantes. Os usos desses agroambientes são organizados por códigos próprios, desenvolvidos e reelaborados ao longo dos séculos de história, uso e interação com esses ambientes, referem-se a terras tradicionalmente ocupadas (ALMEIDA, 2006). A maior atenção dada a uma ou outra atividade pode variar de acordo com a necessidade de aumento da renda familiar, preços de mercado, condições de execução do trabalho e mesmo preferências. A pluralidade de atividades confere maior flexibilidade perante os contextos internos e externos à família.
A criação dos parques se deu sem consulta pública ou qualquer forma de participação social local. A implantação dessas unidades de proteção integral vem sendo realizada desconsiderando-se as formas tradicionais de uso e apropriação territorial e violando os direitos referentes a comunidades tradicionais previstos na legislação brasileira. Essas comunidades iniciaram o debate sobre seus direitos como uma possibilidade de se redefinir a configuração territorial na qual estão inseridas atual- mente. Há uma dimensão territorial que as comunidades apresentam, traduzida pela garantia de acesso aos recursos e modos de vida tradicionais.
Em ação responsiva, os(as) apanhadores(as) realizaram uma manifestação pelas ruas de Diamantina/MG, em 2007, reivindicando que fossem ouvidos e a proibição da coleta discutida, quiçá revogada, e garantido o direito de acesso e uso histórico das áreas que foram transformadas em parques. Segundo membros das comunidades, as dificuldades econômicas pelas quais estão passando decorrem da criação dos parques e da fiscalização ambiental severa, muitas vezes hostil. Ressaltam que ficaram sabendo da existência das UCs após a sua criação com o advento das proibições. Os(as) apanhadores(as) demandam, ainda, o reconhecimento do cultivo de algumas espécies de flores sempre-vivas coletadas, práticas que há anos desenvolvem para certas espécies que estão sendo consideradas em vias de extinção, bem como, o desenvolvimento de instrumentos normativos estatais que reconheçam a atividade e viabilizem a comercialização dos produtos.
Diante deste contexto, representantes de diversas comunidades, realizaram atos políticos para dar visibilidade a situação; constituíram a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (CODECEX); participaram de momentos de formação sobre os seus direitos em interação com professores, técnicos e estudantes da UFVJM e da UFMG; acionaram os Ministérios Públicos Federal e Estadual; e buscam se inserir em redes de organizações e movimentos para intercâmbios e trocas de experiências que possam alimentar suas lutas. Além disso, desenvolvem estratégias cotidianas de resistência em seus lugares. As comunidades, portanto, buscam formas de manutenção, material e simbólica, de seus territórios sociais, lugares de vida.
ALGUNS APRENDIZADOS
É fundamental compreender a dinâmica sócio-cultural, econômica e político- organizativa das comunidades tradicionais envolvidas, para desenvolver metodologias e interações dialógicas ancoradas na realidade e códigos locais de apropriação e uso territorial constituídas ao longo do tempo, que não necessariamente passam pelas formas organizativas já conhecidas.
Posicionar-se na arena política, sair da invisibilidade que outrora garantia sobrevivência e ter acesso à formação/informação acerca dos direitos concernentes à realidade vivida, têm sido imprescindíveis para que possibilidades de continuidade de existência sejam vislumbradas e perseguidas pelas comunidades tradicionais envolvidas. Nesse sentido, compartilhar experiências e inserir-se em redes de luta mais amplas têm sido ações inspiradoras.
O papel desempenhado pela juventude na leitura e compreensão de informações codificadas por leis em linguagens geralmente herméticas, bem como o papel da extensão universitária na tradução dessas informações, têm sido relevantes nesse processo. Da mesma forma, torna-se importante levar as lutas em curso ao patamar da dimensão jurídico-política, pois trata-se de disputas de projetos de sociedade diferenciados em meio à condições desiguais de poder.
Os saberes agroecológicos que permeiam os modos de vida dessas comunidades, que envolve a relação com a natureza, apontam potencialidades de convivência e uso sustentável dos agroambientes nos quais estão inseridas. Tais saberes, na interação com o conhecimento acadêmico sistematizado, têm aportado aspectos caros à manutenção da sócio-biodiversidade.
Ainda que os desafios não sejam poucos, esses grupos tradicionais contam com o apoio de organizações nacionais e internacionais na luta pela manutenção de seus modos de vida, autonomia e direitos específicos previstos por lei. Para esses povos, a biodiversidade está ligada à cultura, aos saberes, ao território e ao uso comum. Cada lugar tem sua memória, densidade cultural e relações sociais que constróem vidas.
Referências Bibliográficas
ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Heinrich Böll, 2004.
ALMEIDA, A. W.B. Terras de quilombo, terras indígenas, babaçuais livres, castanhais do povo, faxinais e fundos de pasto: terras tradicional- mente ocupadas. (Coleção Tradição e ordenamento jurídico) Manaus: PPGS- CA-UFAM: Fundação Ford, vol.2, 2006.
HAESBAERT, R. Concepções de território para entender a desterritorialização. In: SANTOS, M.; BECKER, B.K. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 3ª. edição, Rio de Janeiro: Lamparina, 2007, p. 43-71.
MARTÍNEZ ALIER, J. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007.
MONTEIRO, F. T. Os(as) apanhadores(as) de flores e o Parque Nacional das Sempre-Vivas (MG): travessias e contradições ambientais. Dissertação (Mestrado), 2011. UFMG, Belo Horizonte.
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Revista V8N4 – A luta dos(as) apanhadores(as) de flores sempre-vivas frente à expropriação territorial provocada por unidades de conservação de proteção integral da natureza