Raul Silva Telles do Vale
UMA LEI CONFUSA
Fruto de um longo e competente trabalho de lobby do setor ruralista, a nova legislação florestal brasileira (Lei Federal 12.651/12, com alterações feitas pela Lei 12.727/12) é, como o próprio agronegócio, cheia de contradições. Tem um lado moderno, que prevê a criação de um sistema georreferenciado de cadastramento de imóveis rurais para monitorar por satélite a derrubada de florestas. Mas apresenta também um lado arcaico, agarrado às raízes latifundiárias do Estado brasileiro. Infelizmente, este lado suplanta, em muito, a dimensão inovadora. E é com ele que a sociedade brasileira terá que aprender a lidar daqui para frente.
Com a nova lei, agora temos dois padrões de proprietários rurais: os que respeitaram as regras até então vigentes (Código Florestal antigo) e os que não respeitaram. Os primeiros, independente do tamanho do imóvel, terão que manter 50 metros de vegetação ao redor de nascentes, 30 metros ao largo dos pequenos rios e respeitar as florestas dos topos de morro e encostas. Os outros terão que manter só 15 metros ao redor de nascentes, não precisarão preservar a vegetação em topos de morro e encostas e, dependendo do tamanho do imóvel, poderão nem ter mata ciliar ao largo dos pequenos rios (Ver Tabela).
Com tal estado de coisas, determinado rio já não terá mais uma faixa homogênea de vegetação a protegê-lo, mas uma miríade de retalhos dos mais variados tamanhos – todos igualmente regulares perante a lei. E não porque algum estudo de ecologia da paisagem indicou métricas mais orgânicas, adaptadas às funções ecológicas que se espera da vegetação ripária, mas simplesmente porque, a partir da edição da nova lei, cada imóvel rural poderá ter um perímetro diferente de área de preservação permanente (APP), seja em função do tamanho do imóvel ou da data em que a área foi desmatada (legal ou ilegalmente, não importa).
MITOS FUNDANTES
Se alguém buscar alguma fundamentação ambiental à nova legislação, ficará no escuro. Não houve qualquer consideração de ordem ecológica na definição das novas medidas de proteção da vegetação nativa brasileira. O único fator a guiar a deliberação do Congresso Nacional e, posteriormente, da Presidente da República – que, apesar da inusual pressão popular, não vetou os pontos centrais do projeto – foi o interesse particular de determinada parcela dos produtores rurais, que não queriam pagar pelo passivo ambiental acumulado em suas propriedades, ao mesmo tempo em que almejavam afrouxar algumas regras que limitavam a expansão agropecuária sobre novas áreas de floresta (ou cerrado).
Mas o curioso é que o que motivou a revogação da legislação anterior (o Código Florestal de 1965) foi a sua suposta falta de fundamentação científica. Em 2009, um importante funcionário do Ministério da Agricultura resumia assim a questão:
“(…) tendo sido construído sem a adequada base técnica, fundamentando-se fortemente em aspectos puramente doutrinários, [o Código Florestal] acabou se mostrando apenas mais um instrumento discriminatório a ser utilizado contra os produtores rurais. (…) A razão da necessidade urgente de revisão do Código Florestal vem justamente dos exageros ali existentes e que inviabilizam a atividade produtiva destinada a nos suprir de alimentos e a nos inserir, definitivamente, como líderes da economia mundial” (BERTONE, 2009).
De fato, o movimento para derrubar a lei começou ainda em 2001, mas, naquela época, o Presidente Fernando Henri- que Cardoso, pressionado pela sociedade, evitou a aprovação do assim conhecido relatório Moacir Micheletto, editando a Medida Provisória 2.166. Desde então, tendo aprendido com a derrota, os representantes do agronegócio reformularam suas estratégias e refinaram seu discurso. Se no começo da década a mudança da lei era necessária simplesmente porque era caro demais aos proprietários particulares restaurar as áreas por eles ilegalmente derrubadas, nove anos depois a ciência foi utilizada como justificativa para proteger os mesmos interesses privados. E, nesse contexto, alguns pesquisadores foram habilmente recrutados para legitimar esse discurso.
Talvez o que mais destaque teve foi de um proeminente pesquisador da Embrapa, que, com base em cálculos grosseiros, lançou um estudo – na verdade, uma apresentação, que muito tempo depois foi acompanhada de um texto semiexplicativo da metodologia utilizada – no qual afirmava que cerca de 70% do território brasileiro estaria congelado, impedido de ser utilizado para produção de riquezas pelos excessos da legislação ambiental, genericamente identificada com o Código Florestal. A argumentação misturava unidades de conservação, terras indígenas, reservas legais e áreas de preservação permanente. Colocava no mesmo cesto, portanto, desde áreas de proteção mais estrita, como uma Reserva Biológica, a outras onde é possível fazer diversos tipos de uso direto dos recursos naturais, exceto plantação de grandes monoculturas, como é o caso das Reservas Extrativistas. Estudos posteriores (NOBRE et al., 2012; SPAROVECK et al., 2010) demonstraram diversos erros metodológicos e conceituais do estudo, o que alterava substancialmente seus resultados. Mas isso pouco importou aos representantes do agronegócio: eles tinham um pesquisador de renome para chamar de seu. A apresentação rodou o país pelas mãos dos sindicatos rurais, que assim insuflavam suas bases contra a lei arbitrária.
Pouco tempo depois, e pelas mesmas mãos, alguns pesquisadores de outras unidades da Embrapa vieram a público afirmar que as medidas de proteção do Código Florestal careciam de fundamentação científica. Entre eles, talvez o que deu depoimento mais emblemático tenha sido de outro pesquisador da Embrapa:
“Indubitavelmente o CFB é um dos pilares para a preservação e conservação dos recursos naturais, todavia, nele existem algumas distorções conceituais importantes, sobretudo no que se refere à identificação de tensores ecológicos e à garantia de funcionalidades ambientais. (…) [A APP de margem de rios] pressupõe a largura do rio como tensor ecológico, quando, na realidade, as tensões são resultantes dos atributos geomorfológicos (relevos) e pedológicos (solos) frente à ação climática.
(…)
Sobre as APPs de topo de morro, há sérias restrições na fundamentação desse termo (…) atualmente, sequer é citado no “topo do morro” a espessura e a textura dos solos, concomitantemente ao declive, impedindo que seja concebida, concretamente, a fragilidade e/ou potencialidade de uso deste.
(…)
Pelo exposto, considero que as larguras das APPs associadas à conservação de recursos hídricos devam ser determinadas por fatores geomorfológicos e pedológicos, enquanto a APP de topo de morro seja extinta” (CURCIO, 2009)
Seu discurso, tecnicamente correto, foi amplamente utilizado pelos sindicatos rurais para justificar as alterações que vieram a ocorrer na lei. No entanto, as mudanças impostas no texto final não guardam nenhuma relação com as considerações elaboradas pelo pesquisador. Nenhum critério de ordem geomorfológica ou pedológica foi utilizado para definir por que pequenos proprietários devem manter apenas cinco metros de vegetação ciliar ao longo dos rios ou por que nascentes intermitentes não devem ter mais proteção alguma.
A CIÊNCIA SAI DA TOCA
O fato é que a disseminação da tese de que a lei florestal carecia de embasamento científico, ou seja, que não servia para proteger os bens ambientais a que se destinava, ganhou repercussão no meio acadêmico e fez com que alguns pesquisadores se incomodassem e iniciassem um contra-ataque.
Um dos primeiros a entrar em cena foi o biólogo Jean Paul Metzger, da Universidade de São Paulo. Fazendo uma ampla revisão bibliográfica, ele rebateu um por um os principais argumentos levantados pelos detratores da lei. Sua conclusão é taxativa:
“Contrariamente ao que se tem dito, o estado das pesquisas atuais oferece forte sustentação para critérios e parâmetros definidos pelo Código Florestal, sendo que em alguns casos haveria necessidade de expansão da área de conservação definida por esses critérios, em particular na definição das Áreas de Preservação Permanente” (METZGER, 2010).
Os parlamentares, embora tivessem conhecimento do artigo, não levaram em conta sua conclusão, já que a nova legislação não aumenta nenhum parâmetro de preservação das APPs. Muito pelo contrário.
Outra importante contribuição ao debate veio de Gerd Sparoveck, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP). Usando uma sofisticada metodologia de sensoriamento remoto, chegou a resultados bastante diferentes daqueles antes apresentados pelo pesquisador da Embrapa e apontou, com números concretos, que seria possível dobrar a área agrícola brasileira uti- lizando apenas áreas aptas, mas hoje ocupadas por pastagens. Isso desmontava o argumento da escassez de área para expansão da produção agropecuária, uma das razões pelas quais se pretendia modificar o marco legal. Apesar de haver sido apresentado em mais de uma ocasião aos parlamentares envolvidos na discussão, o estudo pouco influenciou o projeto final, que não criou nenhum instrumento concreto de apoio à restauração e tampouco fechou as portas à expansão da fronteira agrícola, na medida em que continua sendo possível desmatar, legalmente, novas áreas para uso alternativo do solo.
O assunto, porém, esquentou o ambiente acadêmico. Começaram a pulular manifestações de descontentamento de pesquisadores de diversas áreas com os rumos que o projeto estava tomando. Talvez por isso a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) se juntou à Academia Brasileira de Ciência (ABC) para criar um grupo de estudos multidisciplinar e emitir uma opinião qualificada a respeito do projeto em tramitação.
Pouco antes da primeira votação ocorrida na Câmara dos Deputados (a lei passou três vezes por lá), a SBPC e a ABC lançaram o relatório O Código Florestal e a Ciência: contribuições para o debate. Além de ampla divulgação, os pesquisadores buscaram os parlamentares mais diretamente envolvidos no assunto – incluindo o relator, Aldo Rebelo (PCdoB/SP) – para apresentar suas conclusões. Foi algo inédito. Nunca antes essas duas organizações tinham buscado ativamente o Parlamento para discutir questões de mérito, ou seja, que não fossem relativas a assuntos corporativos de ciência e tecnologia. E assim se posicionaram com relação à possibilidade de diminuição das APPs, um dos pontos polêmicos do projeto:
“Entre os pesquisadores, há consenso de que as áreas marginais a corpos d’água – sejam elas várzeas ou florestas ripárias – e os topos de morro ocupados por campos de altitude ou rupestres são áreas insubstituíveis em razão da biodiversidade e de seu alto grau de especialização e endemismo, além dos serviços ecossistêmicos essenciais que desempenham (…)
Existe amplo consenso científico de que são ecossistemas que, para sua estabilidade e funcionalidade, precisam ser conservados ou restaurados, se historicamente degradados” (SILVA et al., 20112, p.12).
A nova lei, no entanto, diminuiu enormemente a obrigação de restauração não só das APPs historicamente degradadas, mas também daquelas que ainda não foram desmatadas, como é o caso das que protegem nascentes. Dos campos de altitude degradados, nenhum terá que ser restaurado. Nenhuma das conclusões e sugestões centrais apresentadas pelas duas maiores organizações científicas do país foi incorporada ao projeto final votado pelo Congresso Nacional. Ambas emitiram, ao longo do processo, notas lamentando o desprezo dos parlamentares pelos conselhos da ciência e apontando as diversas falhas da proposta – mas ninguém deu ouvidos. Nem a eles, nem aos muitos outros pesquisadores que lançaram estudos e análises críticas ao processo, como Ricardo Rodrigues, da Esalq/USP, que demonstrava o baixo impacto das APPs na produção econômica do empreendimento rural, ou Ênio Candotti e outros do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, que alertavam para a desproteção de mais de 400 mil km de áreas úmidas com a nova lei. Os ruralistas já não precisavam mais da ciência: o processo que havia sido desatado não tinha mais volta.
QUANDO A RAZÃO NÃO É O BEM COMUM
Embora assustador e com consequências não muito animadoras para o futuro das florestas, o debate em torno da alteração da legislação florestal foi muito instrutivo ao país. Com a publicidade que o tema ganhou, ficou evidente que os parlamentares votaram a favor de uma lei mesmo rejeitada por uma grande parcela não só da sociedade civil, como também da ciência.
A situação demonstrou que a distância entre o Parlamento e a sociedade só tem aumentado. Isso se explica, em parte, pela crescente profissionalização das campanhas eleitorais, bem como pela presença cada vez maior de empresas como financiadoras de eleições cada vez mais caras. Associado à falta de coerência programática da imensa maioria dos partidos, esse fato vem transformando o Congresso Nacional num consórcio de representantes de grupos de interesse econômico, e não em mandatários do povo. Foi nesse contexto que o Código Florestal foi revogado. Apesar do genuíno esforço da ciência em apontar caminhos e impropriedades do projeto em discussão, não houve espaço real para interferir no processo decisório. O resultado final já havia sido estabelecido pelos representantes do agronegócio há muito tempo. Agora, os chamados ruralistas têm uma lei para chamar de sua.
Raul Silva Telles do Vale
Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental
[email protected]
Referências Bibliográficas:
SILVA, J.A.A.; NOBRE, A.D.; MANZAT- TO, C.V. JOLY, C.A. RODRIGUES, R.R. SKORUPA, L.A. NOBRE, C.A. AHRENS, S. MAY, P.H. SÁ, T.D.A. CUNHA, M.C. RECH FILHO, E.L. O Código Florestal e a ciência: contribuições para o diálogo. São Paulo: SBPC/ABC, 2011. 12 p.
METZGER, J.P. O Código Florestal tem base científica. Conservação e Natureza, v. 8, n. 1, p. 92-99, 2010
SPAROVECK, G.; BARRETO, A.; KLUG, I.; PAPP, L.; LINO, J. A revisão do Código Florestal Brasileiro. Novos Estudos, n 88, novembro 2010.
BERTONE, Manoel V. Revisão absolutamente necessária. Revista Opiniões, p. 13, dez.2009-fev.2010.
CURCIO, Gustavo R. A importância das APPs e seu aprimoramento. Revista Opiniões, p. 22, dez.2009-fev.2010.
NOBRE, A. D.; SILVEIRA, A.; RODRI- GUES, G.;VALLE, R. S. T.; OBREGÓN, G.; AUGUSTO, C.; CANAVESI, V.; CUARTAS, L. A. Áreas ripárias no Brasil: análise preliminar da legislação. Ciência para o Código Florestal. São José dos Campos: Centro de Ciência para o Sistema Terrestre – INPE, 2011b. 110 p. (Relatório Cientifico).
Baixe o artigo completo:
Revista V10N3 – A revogação do código florestal e a ciência