Adriana Galvão Freire e Fernanda Cruz de Oliveira Falcão
– Eu sou Unária, sou agricultora-experimentadora e venho do Rio Grande do Norte.
– Sou Conceição, venho do Ceará e tenho orgulho de ser agricultora-experimentadora.
– Eu sou José Aparecido, mas pode me chamar de Zé Torino. Sou agricultor-experimentador e venho de Minas Gerais.
Foi expressando orgulho e altivez que cada uma das quase 300 pessoas reunidas em Campina Grande (PB) para o III Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores-Experimentadores se apresentou, marcando o início de quatro dias de intenso e emocionante intercâmbio de saberes adquiridos a partir de suas práticas cotidianas.
Em meio à grande diversidade de experiências desenvolvidas no semiárido brasileiro, esses atores avançam na construção de uma identidade comum. Trata-se de um projeto coletivo que se funda no princípio da convivência com o semiárido e se materializa em processos locais de experimentação agroecológica articulados em redes de agricultoras e agricultores experimentadores. Partindo da escuta desses(as) agricultores(as), este artigo busca ecoar suas vozes e situar as diversas experiências que convergem para um processo amplo de construção social que vem sendo galvanizado por organizações que integram-se à Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).
EXPRESSÕES DA CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO
O biênio 2012-2013 foi considerado pelos institutos meteorológicos como o mais severo período de seca dos últimos 50 anos no semiárido brasileiro. Embora a grande mídia ainda apresente a seca como um flagelo social irremediável que prende a população local ao círculo vicioso da pobreza e da miséria, desta vez não se verificaram nos noticiários as cenas de desolação e violência que tradicionalmente se se- guiam ao fenômeno ambiental.
Uma conjunção de fatores explica essa nova realidade. Um dos mais evidentes é o impacto gerado pelo Pro- grama Bolsa Família, a mais importante política social instituída pelo governo federal. Além de ser a mais visível, essa iniciativa governamental de transferência de renda tornou-se indispensável para suprir as necessidades vitais das famílias mais pobres. Outra iniciativa que vem mudando o cenário do semiárido é, sem dúvida, a mobilização de milha- res de organizações da sociedade civil articuladas pela ASA na luta pela democratização do acesso à água, um recurso ambiental crítico para a vida social na região. Como resultado combinado desses fatores, as famílias puderam liberar suas energias criativas para investir no desenvolvimento de variadas estratégias de reprodução econômica e sociocultural. E é exatamente isso o que hoje se vê nas áreas rurais: agricultoras e agricultores envolvidos em dinâmicas descentralizadas de inovação social ativadas pela criatividade popular.
A ação desses atores do desenvolvimento rural se traduz no resgate e na atualização de estratégias típicas da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais da região. Dessa forma, a noção de convivência com o semiárido vai se materializando, deixando de ser percebida como uma ideia generosa ou uma teoria abstrata. Essas práticas integram-se hoje na vida de dezenas de milhares de famílias agricultoras. São experiências de captação e manejo da água da chuva, de cultivo e multiplicação das sementes crioulas, de implantação e manutenção de quintais produtivos, de aproveitamento de todo o potencial da caatinga, entre outras, que fazem com que a vida no semiárido não só seja possível e digna, como sustentável.
Seu Sebastião Damasceno, um dos agricultores-experimentadores presentes no encontro expressa bem essa realidade. Vindo de Santana do Ipanema (AL), ele conta que viu seu rebanho resistir à longa estiagem graças à sua estratégia de plantar e preservar o mandacaru, planta típica da caatinga, como fonte forrageira. Assim como a seca não me pegou lá em Alagoas, aqui no cariri paraibano, em Gurjão, conheci seu Djalma. Eu vi abelhas numa seca tremenda, e tudo vivo. Vi um homem sábio, dando exemplo pros outros de como fazer, lembra seu Sebastião Damasceno, em uma demonstração de como o conhecimento flui livremente entre agricultoras e agricultores.
Seu Carlinhos, por sua vez, vive num paraíso, como ele mesmo percebe sua propriedade em Monte Alegre (SE). Com fauna e flora preservadas e uma grande variedade de plantas no roçado e no quintal, agora dedica-se a seu mais novo desafio: estruturar uma casa de sementes comunitária. A forma como ele descreve a paisagem e seu jeito de viver no semiárido, bem como a responsabilidade que demonstra enquanto agricultor-experimentador, tornam evidente sua sabedoria sobre a agricultura e sobre a vida nessa região, considerada por muitos inviável. Ser agricultor-experimentador é ser uma pessoa que semeia. São pessoas que multiplicam o conhecimento, que preservam o meio ambiente, que entendem que a terra é a mãe das mães, explica seu Carlinhos.
E é assim que, nos últimos anos, em um ambiente de intensa troca de conhecimentos e experiências, vem se constituindo uma ampla rede de agricultoras e agricultores-experimentadores que tem assumido papel determinante nas transformações da agricultura na região.
A DESCOBERTA DA CATEGORIA DE AGRICULTORES(AS)– EXPERIMENTADORES(AS)
Já na sua constituição, em 1999, a ASA reclamava uma política adequada ao semiárido, destacando que homens e mulheres da região podem muito bem tomar seu destino em mãos, abalando as estruturas tradicionais de dominação política, hídrica e agrária. Naidison Baptista, da coordenação da ASA, esclarece esse posicionamento institucional: Nós, os técnicos, somos apenas um apoio para que esse processo possa acontecer. É por isso que a ASA realiza um encontro específico para os agricultores e tende a realizar cada vez mais, pois sem eles e elas não há convivência com o semiárido.
No entanto, foi somente a partir do IV Encontro Nacional da Articulação Semiárido Brasileiro (IV EnconASA), há exatos dez anos, que a ASA deu passos decisivos para desenvolver uma abordagem própria que valorizasse e canalizasse os saberes de agricultores(as) para a construção de um projeto de convivência com o semiárido. Também realizado em Campina Grande (PB), o encontro foi um marco fundamental na trajetória dessa rede porque, pela primeira vez, além da participação dos delegados eleitos pelos 10 estados, foram mobilizados agricultoras e agricultores portadores de experiências concretas, que iluminaram o debate sobre as estratégias de convivência com o semiárido. Dessa forma, o papel dos agricultores foi evidenciado e reconhecido na prática.
O IV EnconASA refletia o espírito das experiências que estavam em curso no entorno de Campina Grande. Na região da Borborema já se encontrava em efervescência um ativo ambiente social voltado à inovação e à aprendizagem agroecológica, que adotava a troca de saberes entre agricultores(as) como principal dispositivo metodológico. Os participantes daquela quarta edição do encontro visitaram comunidades rurais em vários municípios da região, onde agricultoras e agricultores, com o suporte institucional de sindicatos e associações locais, apresentavam-se como experimentadores(as) ao socializarem os resultados de suas práticas inovadoras. Além das visitas a campo, o IV EnconASA organizou um seminário específico para debater os princípios da proposta metodológica de construção de conhecimentos centrada na experiência dos(as) agriculto- res(as)-experimentadores(as).
Para enriquecer o debate, contou-se com o testemunho de Rogélio Sanches, liderança da comunidade Vicente Guerrero, no México, onde teve início o Movimento Campesino a Campesino, presente em toda a América Central. Como agricultor, Rogélio dizia: Somos como São Tomé, precisamos ver para crer. Então, aí começamos a trabalhar com experimentação para poder mostrar as coisas com fatos. Mas nós temos assumi- do um compromisso, não podemos ficar com esse conhecimento acumulado, e começamos a procurar compartilhá-los com outros companheiros camponeses.
Outro momento de destaque naquele IV EnconASA foi a celebração da engenhosidade de Manoel Apolônio de Carvalho, mais conhecido como Nel, agricultor de Sergipe, inventor da cisterna de placa. A experiência de Nel simbolizou no evento a capacidade inventiva das famílias agricultoras na construção de alternativas para a convivência com o semiárido a partir da valorização dos recursos disponíveis localmente. A Carta Política do IV Encontro passou desde então a referenciar a ASA no debate sobre o papel dos(as) agricultores(as)-experimentadores(as) para a construção de um semiárido mais digno e viável. Isso foi marcante, um divisor de águas. A partir dali, os demais EnconASAs seguiram essa mesma estrada, essa mesma metodologia, e hoje eu avalio que isso é irreversível dentro da ASA. É isso que queremos, o que fazemos e temos cada vez mais que disseminar e ampliar, destaca Naidison Baptista.
Seis anos decorridos desse encontro, o papel dos(as) agricultores(as) foi ganhando visibilidade e assumindo um novo estatuto na dinâmica da ASA. Para colocar em prática as ideias germinadas no IV EnconASA, tomou-se a iniciativa de organizar, em 2009, o I Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores-Experimentadores. Além de preparatório para o VII EnconASA e fazer parte das comemorações dos dez anos da rede, o evento representou um momento importante de afirmação do protagonismo dos(as) agricultores(as)-experimentadores(as) na promoção de experiências inovadoras e na construção do projeto político para o semiárido.
Os acúmulos produzidos pela abordagem metodológica da ASA também foram objeto de discussão e reflexão junto aos gestores públicos presentes no encontro, buscando influenciar o processo de construção das políticas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), na época em debate.
O evento foi realizado como parte integrante do Pro- grama Uma Terra e Duas Águas (P1+2), uma iniciativa da ASA voltada a implantar infraestruturas de captação e armazenamento de água das chuvas para produção de alimentos pelas famílias rurais no Semiárido. Além de proporcionar a instalação dos equipamentos, o P1+2 ativa redes de aprendizagem baseadas no estímulo à inovação local e no intercâmbio entre agricultores(as).
P1+2: MAIS ÁGUA, ALIMENTOS E CONHECIMENTOS PARA O SEMIÁRIDO
Criado em 2007, o P1+2 foi formulado após intensas reflexões ocorridas no âmbito da ASA sobre a importância da experimentação camponesa e sobre a necessidade de mobilizar as famílias para deflagrar processos locais de inovação nas práticas de manejo, sobretudo as que aproveitam a água das chuvas para a produção de alimentos segundo métodos ecológicos.
O P1+2 foi concebido para se somar ao Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), iniciativa que já vinha sendo colo- cada em prática há vários anos. Se com as cisternas de 16 mil litros implantadas pelo P1MC as noções de direito e de cidadania despontaram e ganharam sentido efetivo para as comunidades rurais do semiárido, com o P1+2 elas desabrocharam, abrindo um novo horizonte de significados e oportunidades para as famílias e comunidades que participam de sua execução. Antonio Barbosa, coordenador do programa, explica: Quando se constrói o P1+2 é para que todas as famílias possam ter água para produzir, para que todas as famílias possam estocar suas sementes, para que possam construir sua autonomia (…). Ela permite a família ficar livre do mercado, permite plantar o que quer, permite a família construir seu patrimônio e uma identidade comum e mais, permite passar esse orgulho e amor à terra para os seus filhos.
Desde sua inauguração até novembro de 2013, o P1+2 implantou 20.430 cisternas-calçadão, 5.002 cisternas-enxurrada, 773 barragens subterrâneas, 702 tanques de pedra, 502 bombas d’água populares (BAPs), 4.977 barreiros-trincheira e 1.737 barraginhas. Mais de 28 mil famílias, o que corresponde a quase 145 mil pessoas, estão tendo acesso regular à água de qualidade para a produção de alimentos, conferindo segurança alimentar e nutricional e gerando renda por meio da comercialização da produção.
A disseminação dessas inovações técnicas e o aumento produtivo proporcionado pelas infraestruturas hídricas são frutos de uma mobilização popular que teve como principal instrumento as trocas de experiências. Em uma região onde terra, água e sementes sempre estiveram sob o controle das elites agrárias, isso é algo revolucionário. E foi exatamente esse processo social que inspirou a sistematização dos princípios que referenciam o P1+2 (BARBOSA, 2012), entre eles:
- Considerar os(as) agricultores(as) como agentes portadores e construtores de conhecimento.
- Partir sempre da realidade e das necessidades das famílias agricultoras, e não querer definir prioridades ou demandas por elas.
- Romper com a lógica da ciência positivista que considera que as comunidades estão sempre em desvantagem e precisam de ajuda externa.
- Promover o diálogo entre os diversos conhecimentos e saberes existentes nas comunidades para encontrar soluções e estratégias de convivência com o ambiente,
- Conceber a pesquisa, o crédito e a extensão rural para além dos subsistemas agrícolas, considerando as pessoas como centro determinante das ações para a promoção do desenvolvimento.
- Perceber os sistemas agrícolas não apenas como um meio de produção e consumo, mas entender que são imbuídos de significados sociais e culturais.
- Não desconsiderar as lógicas organizadas por famílias, grupos ou comunidades para a solução de seus problemas.
INTERCÂMBIOS E SISTEMATIZAÇÕES: INSTRUMENTOS DE TROCA E MULTIPLICAÇÃO DE SABERES
Os processos de construção do conhecimento ativa- dos pelo P1+2 ocorrem a partir da valorização de experiências concretas. Para tanto, o P1+2 promove intercâmbios de agricultor(a) a agricultor(a), entre comunidades, territórios, municípios e até estados. Dessa forma, vai se tecendo uma identidade camponesa regional, sertaneja, caatingueira, geraizera e fazendo circular o conhecimento produzido nos diversos lugares do semiárido. Além disso, esses momentos de partilha envolvem os(as) agricultores(as) e o corpo técnico de Ater.
O programa já apoiou a realização de 478 intercâmbios intermunicipais e 254 intercâmbios interestaduais, envolvendo mais de 12.100 pessoas. Seu Sebastião Damasceno, agricultor-experimentador de Alagoas, diz que já perdeu a conta de quantos intercâmbios participou. Só em sua propriedade ele recebeu quase 300 pessoas. Através do P1+2, as pessoas vão ver palestras minhas nos intercâmbios. Sou uma referência com as sementes da resistência [denominação das sementes crioulas naquele estado].
No III Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores -Experimentadores, foram 12 visitas de intercâmbio realizadas em três territórios da Paraíba – Borborema, Cariri e Curi- mataú – e divididas em quatro temas – criatórios, sementes, manejo agroflorestal e quintais produtivos. A inovação desse encontro foi trazer para o centro do debate evidências dos avanços e desafios do fortalecimento de redes territoriais de agricultores(as)-experimentadores(as), assim como o papel que as organizações de base desempenham na construção desses territórios. Buscou-se, assim, traduzir a importância de cada agricultor e cada agricultora para a força coletiva transformadora, capaz de influir sobre os projetos de desenvolvimento em disputa no território.
Para receber seus visitantes, as famílias anfitriãs se prepararam com muito afinco. Em Alagoa Nova, na casa de seu Zé Pequeno, um grupo de aproximadamente 30 pessoas, de diversos estados, estava ansioso para saber mais sobre as se- mentes da paixão, como são conhecidas as sementes crioulas na Paraíba, e para conhecer o banco de sementes comunitário organizado ao lado de sua casa.
Ali, toda a riqueza do banco depositada em silos e garrafas pet foi partilhada. Cada semente foi assimilada como um símbolo de libertação, mas não apenas para quem fazia parte dos bancos de sementes comunitários de São Tomé II e do Território do Polo da Borborema. A libertação gerada por essa estratégia de conservação das sementes da paixão atinge todos aqueles que, vindos de fora, estavam tendo a oportunidade de conhecer e aprender, mas também de trocar conhecimentos e valores, além de sair com os bornais cheios de sementes.
Ao contar a história do banco de sementes, Zé Pequeno lembrou de seu pai, que já cultivava sementes da paixão, e foi revelando os desafios enfrentados e superados para que sua propriedade e o banco chegassem ao patamar que estão hoje. Me sinto realizado pelo que planto. É muito bom ver a mãe natureza me agradecendo.
Nos intercâmbios, a roça se transforma em laboratório, e a comunicação entre iguais favorece a transmissão e a geração de conhecimentos, pois a prática e os testemunhos conferem força às palavras e às experiências. Dizem que um palmo de terra plantado no semiárido equivale ao prato de comida de um agricultor, mas eu digo que vale muito mais. Em 2012, mesmo com a seca que tivemos, uma única semente de vagem me rendeu 56 novas vagens e 356 sementes. Em 2013, três sementes dessa mesma vagem me rendeu mais 156 vagens e 1.415 sementes, o que deu pouco mais de 1 kg de sementes e alimentou uma família, conta Nelson Ferreira, agricultor-experimentador e integrante da coordenação do Polo da Borborema.
Nos intercâmbios, não faltam exemplos do que vem dando certo semiárido afora, a partir da experimentação de agricultores e agricultoras, independente do nome que a semente receba – da fartura, da resistência, da vida, da paixão, da liberdade ou da gente. A manutenção do cultivo das sementes adaptadas ao clima da região é a prova viva da importância delas para a agricultura familiar do semiárido.
SISTEMATIZAR PARA COMUNICAR
Para qualificar e apoiar os momentos de troca de conhecimentos entre agricultores(as), costuma ser feita previamente a sistematização da experiência a ser visitada. A atividade é realizada como um processo coletivo de descrição e análise crítica da trajetória de inovação da família ou grupo, traçando o percurso da organização das ideias, dos saberes e das práticas locais. Trata-se de uma estratégia essencial para a construção do conhecimento, pois cumpre importante papel no levantamento e na organização do saber construído e acumulado localmente. Ao mesmo tempo, possibilita a produção de instrumentos pedagógicos voltados à divulgação de iniciativas bem-sucedidas da agricultura familiar.
Boletins informativos, poesias, cordéis, cartilhas, banners, maquetes, programas de rádio, vídeos, teatros, entre outros tantos veículos, são empregados para expressar os saberes sistematizados. Independentemente do formato, as sistematizações permitem vislumbrar como os conhecimentos foram gerados e contribuíram para a vida das famílias, valorizando a história de tantos agricultores e agricultoras.
Na estratégia do P1+2, a sistematização é registrada no boletim chamado O Candeeiro, que muitas vezes também é reproduzido na forma de banner. Até o momento, já foram produzidos cerca de 1.200 boletins e quase 500 banners.
SAINDO DETRÁS DO FOGÃO
A chegada da água no quintal de casa por meio das cisternas de beber (via P1MC) e de produção (via P1+2) fez florescer a inventividade das mulheres agricultoras do semiárido. A valorização do arredor de casa, como espaço de educação dos filhos, mas também produtivo, capaz de as- segurar o abastecimento hídrico, produzir alimentos e gerar renda, contribuiu para que o trabalho da mulher agricultora fosse retirado da invisibilidade. Essa nova realidade fomentou ainda o debate sobre como o projeto de convivência com o semiárido está intrinsicamente relacionado à construção de um mundo mais justo para as mulheres.
Os intercâmbios e oficinas promovidos pelo P1+2 vêm ampliando e fortalecendo espaços de troca e partilha de conhecimentos entre as mulheres. Ao se encontrarem e se reconhecerem, elas afirmam publicamente suas capacidades.
No campo, quando muda a vida da mulher, muda a vida da família, a renda, o conhecimento, a vida dos filhos. Quando a família se transforma, a comunidade também se transforma. O diálogo na família fortalece a comunidade, as organizações, o município, avalia Gizelda Beserra, da coordenação do Polo da Borborema, na Paraíba.
Com o aumento da autoestima, as mulheres estão ampliando seus espaços de participação social e política.
O trabalho da mulher no arredor de casa tem sido a receita para se valorizar o papel da mulher agricultora, mãe, esposa, filha, artesã… É no quintal que as mulheres estão na maior parte do tem- po e educam seus filhos. Esse é um espaço para ser fortalecido nos projetos de assessoria e nas políticas públicas, enfatiza Gizelda.
Durante o III Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores-Experimentadores, foi lançada a cartilha História de quintais – A importância do arredor de casa na transformação do Semiárido. A publicação é fruto de uma oficina de sistematização realizada em junho de 2013, em Lagoa Seca (PB), com a participação de 15 agricultoras de diversos estados, cujas histórias e experiências foram encarnadas pela personagem fictícia, Maria Violeta.
Representando as agricultoras que participaram da oficina, Maria da Conceição Mesquita, de Trairi (CE), destacou no lançamento o trabalho feminino na construção da convivência com o semiárido, assim como a conquista da autonomia e a importância da auto-organização das mulheres. Sem esta organização, eu não estaria aqui hoje, nem teria participado desta cartilha, porque a ASA não teria me achado.
O III Encontro aponta um caminho sem volta. Foi a coroação de uma identidade comum necessária à constituição de uma rede de agricultoras-experimentadoras na região, uma condição essencial para o estabelecimento de novas relações entre homens e mulheres. Para Naidison Baptista: É no processo de experimentação que as mulheres se revelam. É aí que elas se projetam, é ai que elas aparecem, se tornam efetivamente sujeitos do processo de construção do conhecimento. Se formos olhar boa parte das experimentações, das descobertas do processo das tecnologias de convivência, vamos ver a efetiva participação das mulheres. Seja na perspectiva dos quintais produtivos, que não vão acontecer sem a presença delas; ou na gestão da água e nas 1001 experiências que a ASA acompanha.
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO – UMA OBRA DE MUITAS MÃOS E MENTES
Atualmente, não se pode falar em convivência com o semiárido sem considerar o conhecimento prático de agricultoras e agricultores. Apesar de esse avanço das redes de experimentadores(as) ser notório, ele ainda ocorre em um ambiente onde predomina um modelo técnico construído sob a égide de uma visão essencialmente difusionista. Contudo, a emergência e o fortalecimento do papel dos agricultores(as)-experimentadores(as) também provocam profundas mudanças no seio das organizações de apoio e, em particular, de assessoria técnica e pesquisa. Instigado pelo desafio de romper com essa lógica, um grupo de 70 pessoas, entre assessores(as), estudantes e pesquisadores(as), participou do seminário Assessoria técnica às redes de agricultoras e agricultores-experimentadores: avanços e desafios, que integrou a programação do III Encontro.
Esse debate pode ser sintetizado com a reflexão sobre a disputa em torno às sementes mais adaptadas à realidade da agricultura familiar no semiárido: se as sementes melhoradas, desenvolvidas pela ciência e produzidas por empresas, ou o das sementes tradicionais, manejadas e conservadas pelos agricultores. Diante da relevância prática e simbólica desse tema, a realização de pesquisas sobre sementes crioulas foi destacada durante o encontro de técnicos(as). Euzébio Cavalcanti, liderança do Polo da Borborema, colocou a questão: Temos uma lei na Paraíba que reconhece as sementes crioulas, mas uma coisa é a lei, outra coisa é o governo, a assistência técnica e as universidades reconhecerem que os agricultores e as agricultoras têm sementes. Porque hoje essas instituições negam isso. E a gente tem muito medo que os transgênicos façam uma erosão em nossas sementes crioulas e que a gente fique sem elas. E concluiu lançando um desafio: Como vamos mostrar ao governo que o que nós queremos é uma po- lítica que respeite as sementes da paixão? Como vamos provar à sociedade que essa política de sementes é contra a gente e a favor das empresas? Então nós da ASA Paraíba nos juntamos com pesquisadores e começamos a pensar juntos que tipo de pesquisa nós queremos.
Para se aprimorarem como experimentadores, agricultoras e agricultores necessitam incorporar conhecimentos sobre temas específicos, sobre novas formas de experimentar, sobre como partilhar seus saberes nos intercâmbios e, principalmente, sobre como fazer com que essas práticas abram novos caminhos para a elaboração de políticas públicas mais adaptadas à realidade da agricultura familiar e do semiárido. Nessa metodologia, constrói-se, portanto, um novo papel para os técnicos, que vai na contracorrente da lógica difusionista do modelo clássico de extensão, no qual o conhecimento chega pronto, baseado em receitas e pacotes tecnológicos generalizantes.
Colocar seu conhecimento a serviço da convivência com o semiárido é um dos principais desafios do corpo técnico que faz parte da dinâmica da ASA, uma vez que os espaços acadêmicos em geral ainda não proporcionam esse tipo de vivência. Para trabalhar com agricultores(as)–experimentadores(as) do semiárido, é preciso se despir dos antigos métodos de assistência técnica e beber da fonte desse conhecimento popular, entendendo que não existe apenas uma única forma de pensar e de fazer acontecer.
É o saber popular, somado ao conhecimento técnico, produzido por organizações, universidades, centros de pesquisa, entre outros, que tem gerado soluções inovadoras com impactos positivos na vida das famílias do semiárido. Nós, técnicos, temos que desenvolver a capacidade de ouvir, aprender e beber na riqueza incomensurável dos agricultores. Outra dimensão é que temos um saber que é nosso. Não somos um zero. Temos um conhecimento que precisa dialogar, se confrontar, debater, para que seja produzido um conhecimento novo. Nós queremos, enquanto ASA, colocar nosso conhecimento a serviço da luta dos agricultores e das agricultoras, ressalta o coordenador da ASA, Naidison Baptista.
Seu Carlinhos, agricultor-experimentador de Sergipe, reconhece que tem muito conhecimento para repassar, mas que não aprendeu tudo sozinho. Você pode me perguntar: mas, seu Carlinhos, o tanto que o senhor estudou de 2000 [quando ele conheceu a ASA] pra cá, e não aprendeu a ler? Não, mas estou numa escola diferente da que você está pensando. Nessa escola da convivência com o semiárido estou aprendendo, multiplicando e formando outras pessoas.
UM NOVO OLHAR SOBRE O SEMIÁRIDO
O III Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores -Experimentadores trouxe provas concretas de que é preciso repensar as abordagens metodológicas convencionais de modo a permitir processos coletivos e mais democráticos de construção do conhecimento. Ao ancorar as transformações do ambiente na experimentação camponesa, fica evidente a necessária reestruturação das instituições de pesquisa e extensão e das políticas públicas, ainda hoje pautadas pelo viés difusionista da Revolução Verde. O avanço nesse campo será determinante para a emancipação da agricultura familiar de base camponesa, tornando-a capaz de construir seu próprio projeto de desenvolvimento para o semiárido e assumir seu próprio destino.
Adriana Galvão Freire
Mestre em Desenvolvimento Rural, coordenadora de comunicação da AS-PTA
[email protected]
Fernanda Cruz de Oliveira Falcão
Jornalista, coordenadora de comunicação da ASA Brasil
[email protected]
Referências Bibliográficas
Barbosa, A. G. Água para Produção de Alimentos no Semiárido. Disponível em: http://osemiaridoebelo.blogspot.com.br/2012/04/agua-para-producao-de-alimentos-no.html.
Acesso em 16/12/2013.
FREIRE, A. G. ; PETERSEN, P. ; SILVEIRA, L. M. ; SILVA, M. R. A sistematização no fortalecimento de redes locais de inovação agroecológica. Revista Agriculturas, V.3, p. 9-12, 2006
GALINDO, Wedna (org.); entrevistas: Catarina de Angola, Daniel Lamir, Laudenice Oliveira, Nathália D’Emery; colaboração: Sara Brito. Vozes da Convivência com o Semiárido. 1ª edição. Recife: Centro Sabiá, 2013.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N3 – Agricultoras e Agricultores-Experimentadores: protagonistas da convivência com o semiárido