O programa de agricultura urbana na cidade de Rosário, a 300 km a noroeste de Buenos Aires, começou como resposta à crise econômica de 2001 na Argentina e ganhou ampla notoriedade internacional. Atualmente é considerada uma das experiências de Agroecologia urbana de maior sucesso na América do Sul. Ao articular grupos de consumidores, institutos de educação, políticas públicas e o movimento de gastronomia, o programa de Rosário tornou-se uma referência para a aplicação dos referenciais da Agroecologia no contexto das grandes cidades.
Antonio Lattuca
Com mais de um milhão de habitantes, Rosário é a terceira maior cidade da Argentina, localizada na província de Santa Fé. Por meio de um programa de agricultura urbana de grande sucesso, a cidade converteu lotes vazios em hortas e desempregados, em agricultores. Atualmente, existem 600 grupos de cerca de 10 pessoas cada na cidade. Mais de 1.500 agricultores foram treinados em agricultura urbana, dos quais 250 atualmente vendem os seus excedentes de produção. Os agricultores estão cultivando suas frutas e legumes em hortas familiares, escolas ou parques públicos. Além disso, em 24 hectares de terras sem uso na cidade, parcelas entre 600 e 2.000 m são destinadas a famílias interessadas para serem usadas gratuitamente e com segurança de posse. Algumas famílias produzem nesses lotes não só alimentos, mas também plantas com as quais fazem cosméticos e ervas medicinais. Existem quatro agroindústrias lideradas por agricultores na cidade que processam legumes e plantas medicinais. As mulheres agora representam 65% dos produtores, assumindo um papel de liderança no cultivo, no processamento, na gestão e na venda em mercados locais.
DA CRISE À SOBERANIA ALIMENTAR
Durante a crise econômica de 2001, cerca de 60% de toda a população de Rosário mergulhou num estado crítico de pobreza. À medida que as taxas de desemprego subiam e as famílias da cidade lutavam para se alimentar, novos atores começaram a se interessar pela agricultura urbana. Foi então estabelecida uma política municipal inclusiva sobre produção de alimentos em bairros urbanos desfavorecidos. A ideia era melhorar as paisagens dos bairros por meio da produção de alimentos orgânicos saudáveis e da criação de mercados que ligassem diretamente os agricultores aos consumidores. Acreditava-se que essa iniciativa revelaria o potencial das pessoas desempregadas e ao mesmo tempo garantiria a soberania alimentar de famílias vulneráveis.
Esse foi o contexto em que iniciamos nosso programa de agricultura urbana. Reunimos agricultores urbanos, gestores municipais, especialistas em agricultura e representantes de organizações não governamentais para ajudar famílias urbanas a assegurar e proteger potenciais espaços agrícolas, bem como estabelecer novos merca- dos. O programa adotou o enfoque agroecológico, porque tem a vantagem de usar tecnologia e recursos acessíveis, reduzindo a dependência de insumos externos. Em outras palavras, os agricultores aprendem a produzir seus próprios insumos, como o adubo, e a gerir todo o processo de produção por conta própria.
APRENDENDO E DISSEMINANDO
Formação com base em metodologias que favorecem o aprendizado horizontal e capacitação de longo prazo são o cerne do trabalho. Toda a sabedoria e todos os tipos de conhecimento associados às práticas agrícolas são valorizados. Na abordagem adotada, a aprendizagem começa no campo e é complementada com oficinas, encontros, intercâmbios, excursões, seminários e congressos. Foram envolvidas 40 escolas com hortas com o objetivo de promover a alimentação saudável e os cuidados com o meio ambiente. Além disso, visitas de campo e palestras foram organizadas, envolvendo diferentes faculdades da Universidade de Rosário, incluindo as de Ciências Agrárias, Arquitetura, Medicina e Engenharia Civil. Há alguns anos, foi criada a escola móvel que tem foco no intercâmbio de conhecimentos relacionados às práticas ecológicas de produção agrícola.
CRIANDO MERCADOS
O mercado para os produtos da agricultura urbana está se expandindo rapidamente e tem se transformado, passando de um nicho para um mercado de massa. Os agricultores urbanos de Rosário hoje produzem as únicas frutas e legumes agroecológicos da cidade. Esses alimentos agora estão amplamente disponíveis e podem ser comprados a preços justos diretamente nas unidades agrícolas, nos mercados livres de agrotóxicos dos agricultores, por meio de sistemas de entrega de cestas ou até mesmo quando se janta fora, já que um número considerável de agricultores urbanos vende seus alimentos para restaurantes. Muitos esforços têm sido feitos para garantir que a parcela mais vulnerável da população possa produzir ou que tenha condições de adquirir frutas e legumes de qualidade. Durante seus 16 anos de existência, o programa construiu relações de confiança entre o Estado, os agricultores urbanos e os consumidores. Uma vigorosa rede de consumidores, a Red Vida Verde, organiza visitas a unidades produtoras e garante a compra de legumes antes da colheita, sendo que muitos membros participam assiduamente de almoços saudáveis mensais, uma ideia que partiu dos próprios agricultores.
ENVOLVENDO JOVENS AGRICULTORES
A Red de Huerteros (rede de horticultores) de Rosário é muito forte, sendo formada por agricultores da zona periurbana de Rosário, mas também de áreas rurais mais distantes. Os agricultores com histórico de produção agrícola rural estão orgulhosos por poderem partilhar e promover seus conhecimentos, particularmente os relacionados à melhoria do solo e ao manejo de insetos-praga e doenças. Infelizmente, percebe-se que o trabalho e o conhecimento daqueles (as) que produzem os alimentos ainda não são suficientemente valorizados. Para tanto, o programa atua para promover a imagem dos agricultores e horticultores como produtores de alimentos saudáveis e como guardiões do meio ambiente. Essa valorização também ajuda a tornar a agricultura urbana mais atraente para a juventude.
Os jovens participam cada vez mais ativamente do programa. Cerca de 140 jovens já foram capacitados para se tornarem agricultores urbanos. Alguns são membros de cooperativas que oferecem serviços de hortas ecológicas, enquanto outros oferecem cursos sobre horticultura ou dão aulas para as crianças da escola no centro da cidade. Este último trabalho é particularmente importante porque incentiva a interação entre os jovens dos bairros mais pobres e os das áreas mais ricas do centro da cidade.
RECONHECIMENTO INSTITUCIONAL
Em Rosário, a agricultura urbana tornou-se uma atividade permanente e seus múltiplos benefícios se disseminaram amplamente. Essa experiência transformou lotes e espaços abandonados em hortas produtivas, revitalizando os bairros. A agricultura urbana também foi formalmente incorporada no plano estratégico de desenvolvimento da cidade, sendo reconhecida como um uso permanente e legítimo da terra urbana. O plano promove ainda a integração da agricultura urbana em outros setores relacionados à gestão de áreas verdes, incluindo equipamentos, habitação, infraestrutura, transporte, etc.
Em maio de 2016, o município de Rosário lançou o Programa Cinturão Verde para fomentar a transição agroecológica da horticultura periurbana existente em toda a região metropolitana de Rosário. Hoje há 35 hectares em transição e 15 horticultores que trabalham efetivamente com enfoques agroecológicos. Eles vendem sua produção diretamente aos consumidores. Em julho de 2017, o governo provincial de Santa Fé implementou o Programa Periurbano de Produção Sustentável de Alimentos, também de orientação agroecológica, do qual participam 33 municípios e comunidades. Como parte desse programa, mais de 50 agricultores agora produzem legumes, hortaliças e pastagens para gado em mais de 600 hectares.
Além disso, a partir de 2014, o programa contribuiu para criar a Secretaria Nacional de Agricultura Familiar na Argentina. A experiência de Rosário foi uma importante referência prática para que os agricultores familiares urbanos fossem oficialmente reconhecidos por essa nova instituição. Trata-se de uma conquista relevante, uma vez que lhes permite serem registrados no Cadastro Nacional de Agricultores Familiares, o que lhes confere o direito a benefícios em termos fiscais e previdenciários. Dessa forma, os agricultores urbanos consolidaram sua própria identidade e sua legitimidade social e política no desenvolvimento urbano. Isso ajudou a aumentar sua autoestima e agora são considerados capazes de aumentar a resiliência das cidades e de seus habitantes.
INSPIRANDO OS OUTROS
O programa de agricultura urbana de Rosário também está ligado a redes de agricultores orgânicos em toda a Argentina e tornou-se um ponto focal para um movimento a favor da criação de zonas livres de agrotóxicos no entorno de Rosário e outras cidades no país.
Essa experiência pioneira inspirou outras iniciativas de Agroecologia urbana em toda a Argentina: em Morón, Mar del Plata, Rio Cuarto, Corrientes, Tucumán e Santiago de Estero. Também inspirou outras cidades latino-americanas que agora estão implementando iniciativas similares, incluindo Lima, no Peru, Belo Horizonte e Guarulhos, no Brasil, e Bogotá, na Colômbia. Gestores públicos, técnicos e profissionais dessas e de outras cidades já estiveram em Rosário para conhecer a experiência.
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL EM SITUAÇÕES DESAFIADORAS
A partir do foco na agricultura urbana, o programa aborda variadas questões sociais relacionadas ao abastecimento urbano, à inclusão social de parcelas mais vulneráveis da população, à promoção da saúde coletiva e à proteção ambiental. E é nesse sentido que consideramos a Agroecologia urbana como meio de transformação social em situações desafiadoras.
O programa construiu pontes entre o meio rural e o urbano, entre os setores público e privado e entre agricultores, consumidores e a sociedade civil como um todo. E, particularmente, ajudou a transformar positivamente a imagem dos agricultores, que hoje são valo- rizados em Rosário e reconhecidos como guardiões da terra e de nossas paisagens. E, talvez o mais importante, os jovens, os agricultores do futuro, foram contagiados pelo entusiasmo pela Agroecologia.
Antonio Lattuca
([email protected]) é o coorde- nador do Programa de Agricultura Urbana de Rosário, na Argentina.
Este artigo é baseado em entrevista concedida a Teresa Gianella (Leisa) e publicada na edição de junho de 2015 da revista Farming Matters.
Baixe o artigo completo:
Agriculturas V14,N1 – Agroecologia urbana promovendo a transformação social na Argentina