Regiane Fonini
Partindo do entendimento de que a cultura alimentar é uma construção historicamente condicionada pelo ambiente natural, bem como pelos contextos sociais, econômicos e políticos que emolduram as relações entre a produção e o consumo de alimentos, este texto discute alguns aspectos que interferem nas escolhas, nos hábitos e nas práticas alimentares de famílias agricultoras que produzem em sistemas agroflorestais (SAFs).
As reflexões apresentadas estão referenciadas na convivência com 12 famílias agricultoras que participam da Cooperafloresta – Associação de Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo (SP) e Adrianópolis (PR), organização que atua há quase duas décadas no Vale do Ribeira (COOPERA- FLORESTA, 2011; STEENBOCK; VEZZANI, 2013).
ESTRATÉGIAS (RE)PRODUTIVAS TRADICIONAIS
As condições histórico-sociais e naturais presentes no Vale do Ribeira proporcionaram o desenvolvimento de um rico repertório cultural em formas de apropriação da natureza por comunidades de camponeses, remanescentes de quilombos, pescadores artesanais, caiçaras, assentados da reforma agrária e indígenas. De forma geral, as práticas e estratégias (re)produtivas dessas comunidades combinam extrativismo com agricultura. Por muito tempo, a alimentação nas comunidades baseou-se no uso dos recursos disponíveis e na prática da agricultura de corte e queima (ou coivara) para a produção de arroz, feijão, milho e mandioca, no extrativismo de frutas e verduras do mato, na caça e na criação de animais no terreiro.
A introdução de novos alimentos, principalmente por intermédio dos mercados locais, a rejeição e/ou substituição de alguns alimentos e preparações tradicionais e a paralisação do uso dos monjolos para moer grãos aparecem como algumas das mudanças que mais interferiram nos hábitos alimentares dessas famílias. Cândido (2010) afirma que essas novas fontes de abastecimento alimentar levaram a uma adaptação das relações das famílias agricultoras com o meio natural, revelando uma desarticulação com a sabedoria tradicional.
AGROFLORESTA: NOVAS PRÁTICAS DE PRODUÇÃO E DE CONSUMO
Desde 1996, a prática agroflorestal é desenvolvida no bairro Terra Seca, Barra do Turvo (SP), comunidade que faz parte do território do quilombo Terra Seca e Ribeirão Grande. Desde que as práticas agroflorestais foram introduzidas na comunidade, um conjunto de transformações na produção de alimentos e nas formas de acesso à comida ocorreu. Inicialmente, verificou- se uma mudança significativa nas práticas de manejo produtivo, uma vez que o método agroflorestal empregado se fundamenta na replicação de princípios presentes nos processos naturais para a regeneração da biodiversidade e da saúde do solo. Por essa razão, as agroflorestas são ricas em diversidade de plantas, alimentares e não alimentares. O carro-chefe nas agroflorestas da região é a banana (variedades caturra e prata). No entanto, em 2011, as famílias do bairro Terra Seca produziram mais de 68 tipos diferentes de alimentos (FONINI, 2012).
Aumentos na renda das famílias e na autonomia na comercialização também foram efeitos perceptíveis da introdução da produção agroflorestal. Anteriormente, as famílias dependiam de atravessadores para comercializar sem garantia de um preço mínimo compatível ao esforço que tinham com a produção.
As agroflorestas proporcionaram maior segurança e autonomia às famílias de agricultores à medida que viabilizaram não só o aumento, mas também a frequência de ingressos financeiros, uma vez que os pagamentos pela produção passaram a ser efetuados mensalmente.
Tanto o aumento da renda monetária quanto o incremento dos volumes e da diversidade da produção para autoconsumo são fatores relevantes na mudança dos padrões alimentares e dos modos de vida das famílias. Somente a produção autoconsumida pelas famílias pode gerar economias que variam entre R$ 180,00 e R$ 550,00 por mês (PEREZ-CASSARINO, 2012).
Mudanças na organização do trabalho também são notáveis, com as mulheres exercendo papel de destaque ao assumirem a liderança na produção agroflorestal. Sendo pouco dependentes do emprego de tecnologias complexas e custosas, as agroflorestas são manejadas com base em um trabalho cuidadoso e intensivo, que depende da percepção fina das condições ambientais. Nessas condições, as mulheres reafirmam-se enquanto detentoras do processo de transformação do alimento em comida, bem como evidenciam seu papel central na reprodução social, econômica e biológica da família.
CIRCULANDO ENTRE O TRADICIONAL E O MODERNO
Embora seja observado o consumo de alimentos de origem industrial pelas famílias, há a manutenção de hábitos e práticas alimentares tradicionais, passadas de geração em geração. Tais práticas também estão associadas às relações de troca e reciprocidade entre as famílias em torno do alimento, seja para plantar, seja para comer. A introdução das agroflorestas na comunidade possibilitou maior acesso a uma variedade de espécies alimentícias, principalmente frutas, que possuem elevado valor nutricional e riqueza em vitaminas e minerais essenciais ao organismo.
Esse fato realça o caráter híbrido da alimentação, como prática social que incorpora alimentos símbolos da modernidade, como a comida industrializada, ao mesmo tempo em que mantém e ressignifica os alimentos de valor cultural estabelecidos em pequenos grupos sociais. DaMatta refere-se a esse caráter híbrido da alimentação no Brasil como um modo dual de comer, em que ambos os estilos – tradicional e moderno – não se excluem, mas se reforçam mutuamente (DAMATTA, 1987).
Ao incorporarem alimentos vindos do mercado em suas dietas, as famílias tentam se adaptar às dificuldades econômicas e produtivas. No entanto, como afirmam Amon e Menasche (2008), essa prática pode ser entendida também como uma necessidade de estabelecimento de laços de identidade com uma nova época e de integração ao meio urbano, influenciados pela sociedade englobante. Assim como afirma Cândido:
“As necessidades têm um duplo caráter natural e social, pois, se sua manifestação primária são os impulsos orgânicos, a satisfação destes se dá por meio de iniciativas humanas que vão se complicando cada vez mais e dependem do grupo para se configurar. Daí as próprias necessidades se complicarem e perderem em parte o caráter estritamente natural, para se tornarem produtos da sociedade” (CÂNDIDO, 2010, p.28).
AGROFLORESTA GARANTE A SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL
Neste universo de pesquisa específico, foi evidenciado que a adesão ao sistema agroflorestal representou uma alternativa de reprodução social, assim como possibilitou contornar os obstáculos ambientais e os imperativos da legislação. Essas condições redirecionaram as estratégias de adaptação e sobrevivência das famílias agricultoras, que podem ser apreendidas como clamores por justiça e por políticas que de fato levem em conta os interesses e as vozes desses grupos.
Ressalta-se que os achados da pesquisa levaram a perceber a agrofloresta enquanto prática garantidora da segurança alimentar e nutricional, entendida como a realização do direito humano à alimentação adequada com respeito à cultura, aos hábitos e ao meio ambiente, com acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, favorecendo a promoção da saúde, sem interferir em outras necessidades básicas (BRASIL, 2006).
A agrofloresta teve papel fundamental nesse processo, notadamente no que concerne à maior autonomia dessas famílias, principalmente das mulheres. Mas também foi determinante para ampliar o acesso a alimentos saudáveis; a proteção do tecido social, representada pelo enfrentamento dado aos imperativos legais; o acesso à renda; o escoamento da produção via canais diferenciados; e o resgate da relação do ser humano com a natureza e, consequentemente, com os alimentos.
Por fim, visualiza-se que a agrofloresta, juntamente com outras práticas de produção e consumo contra hegemônicas, caminha em defesa do direito à alimentação adequada e da reaproximação entre o ser humano e o meio ambiente. Essa prática também tem despertado a valorização dos saberes que resistiram à norma dominante, estimulando cada vez mais reflexões que contribuem para a construção social de um olhar ampliado sobre o alimento e a alimentação.
Regiane Fonini
Nutricionista, Mestre em Meio ambiente e Desenvolvimento
[email protected]
Referências Bibliográficas:
AMON, Denise; MENASCHE, Renata. Comida como narrativa da Memória Social. Sociedade e Cultura, Rio Grande do Sul, v.11, n. 1, 2008.
ASSOCIAÇÃO DOS AGRICULTORES AGROFLORESTAIS DE BARRA DO TURVO E ADRIANÓPOLIS (COOPERAFLORESTA). Histórico. Barra do Turvo, São Paulo, 2011. Disponível em: <www.cooperafloresta.org.br>. Acesso em: 10 mar. 2011.
BRANDÃO, Carlos R. Plantar, colher, comer: um estudo de caso sobre o campesinato goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981.
BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Diário Oficial da União. Brasília, 2006.
CÂNDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. 11. ed., 2010.
DAMATTA, Roberto. La Cultura en la mesa en Brasil. El Correo de la Unesco, Espanha, n.5, p. 22-23, 1987.
FONINI, Regiane. Agrofloresta e Alimentação: estratégias de adaptação de um grupo quilombola em Barra do Turvo – SP. 2012. 213 f. Disser- tação (Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
PEREZ-CASSARINO, Julian. A construção social de mecanismos alternativos de mercados no âmbito da Rede Ecovida de Agroecologia. 2012. 450 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
STEENBOCK, Walter; VEZZANI, Fabiane Machado. Agrofloresta: aprendendo a produzir com a na- tureza. Curitiba: Fabiane Machado Vezzani, 1. ed., 2013.
WOORTMANN, Klaus. Hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda. Relatório Final. Série Antropologia. Brasília, 1978.
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Revista V11N4 – Agrofloresta: mudanças nas práticas produtivas e hábitos alimentares