Pedro Jorge B. F. Lima
O Brasil passou a figurar entre os países produtores de algodão orgânico a partir da safra colhida em 1993/4 por agricultores familiares do município de Tauá, no semi-árido do estado do Ceará (Lima, 1995). Esse algodão, produzido sem uso de agrotóxicos, foi adquirido pela Filobel Indústrias Têxteis do Brasil, de Jundiaí (SP), para fabricação de camisetas para a ONG Greenpeace.
Desde o princípio, essa experiência pioneira contou com o apoio técnico do Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, uma ONG sediada em Fortaleza (CE), e foi organizada pela Associação de Desenvolvimento Educacional e Cultural (Adec), formada por agricultores(as) familiares agroecológicos daquele município e responsável pela compra do algodão em rama, bem como pelo beneficiamento e venda da pluma.
Durante cerca de dez anos, algumas grandes empresas do setor têxtil procuraram comprar o algodão agroecológico cearense, mas nenhuma se interessava em estabelecer uma aquisição permanente em função dos pequenos volumes de pluma ofertados, sempre inferiores a cinco toneladas por ano. Empresas de pequeno porte, em início de atividade, embora não necessitas- sem de grandes volumes, esbarravam na dificuldade de encontrar quem se dispusesse a produzir pequenos volumes de fios e tecidos em caráter de prestação de serviço. Mesmo assim, até 2002, a pluma era vendida no incipiente mercado orgânico brasileiro a preços 30% superiores aos do produto convencional.
COMÉRCIO JUSTO: FAZENDO A DIFERENÇA
Em 2004, a recém-criada empresa francesa Veja Fair Trade procurava algodão orgânico para fabricar calçados esportivos no Brasil, destinados ao comércio justo europeu. Acessando a página eletrônica do Esplar, seus donos obtiveram informações sobre o algodão agroecológico cearense. Logo um deles veio ao Ceará onde adquiriu as primeiras três toneladas de pluma de algodão da Adec, da safra de 2003. Na sequência, negociou a assinatura de um contrato de compra com duração de três anos, firmado em 2005 (Lima, 2005). Em novembro de 2007, acertou as bases de sua renovação por mais três anos.
Também em 2004, a Univens, uma cooperativa de costureiras de Porto Alegre (RS), articulou uma rede de cooperativas e associações de trabalhadores(as) de todos os elos da cadeia têxtil para fabricar confecções, pautando-se pelas normas do comércio justo e mercado solidário (Lima, 2005). Uma dessas cooperativas, a Cooperativa Nova Esperança (Cones), de Nova Odessa (SP), ao aceitar o desafio de produzir fios com volumes de algodão entre 3 e 5 toneladas por ano, superou o principal obstáculo ao funcionamento das cadeias projetadas pela Veja e pela Univens. Assim, em 2005, a Univens pôde lançar a marca Justa Trama, da cadeia ecológica do algo- dão solidário cearense.
As negociações entre a Adec, a Veja e a Justa Trama para definir os preços do algodão, assessoradas pelo Esplar, levaram em conta: os níveis de produtividade obtidos; a manutenção do interesse dos(as) agricultores(as) em continuar produzindo; a cobertura dos custos de beneficiamento; a sustentabilidade da Adec; e a necessidade da Veja e da Justa Trama de cobrirem os custos ao longo da cadeia e ainda obterem taxas de retorno que garantam a competitividade dos seus prodotos no mercado.
Tanto a Veja como a Justa Trama compram o algodão a U$ 3,30/kg de pluma, o que permite à Adec pagar aos agricultores(as) o equivalente a U$ 0,90/kg de algodão em rama, pouco mais que o dobro dos preços praticados no mercado convencional.
Essas condições e preços configuram um quadro bastante distinto da situação a que eram submetidos(as), até duas décadas atrás, os(as) agricultores(as) familiares cearenses. A maioria, por não possuir terra, produzia nas grandes fazendas em regime de parceria, pagando aos latifundiários metade do algodão colhido a título de renda da terra. A outra metade do algodão, obrigatoriamente, era entregue ao dono da terra que por ela pagava preços abaixo daqueles vigentes no mercado local. Além disso, esses(as) agricultores(as) não sabiam para onde se destinava a pluma do algodão que produziam nem que tipos de produtos eram fabricados a partir dela. Hoje, muitos sabem que com o algodão que produzem são fabricados os tênis da marca Veja e as roupas da Justa Trama, bem como conhecem os donos da empresa e os dirigentes da rede de cooperativas, por quem já foram visitados mais de uma vez. Trata-se assim de uma mudança essencialmente qualitativa nas relações entre quem produz e quem compra o produto agroecológico no comércio justo.
AMPLIAM-SE AS OPORTUNIDADES
Com preços, volumes e demais condições de venda do algodão preestabelecidos pelo contrato com a Adec, foi possível ao Esplar estimular a expansão da produção para outros municípios, tais como Quixadá, Choró, Canindé, Massapê, Sobral, Forquilha e Santana do Acaraú, por meio dos respectivos sindicatos de trabalhadores(as) rurais (STRs), de modo a responder ao crescimento da demanda. A partir da inserção do algodão no comércio justo e mercado solidário, o número de agricultores(as) familiares participantes desse projeto tem crescido de maneira consistente, passando de 97, em 2003, para 245, em 2007, enquanto a produção subiu de modestos 7 mil kg, em 2003, para 43 mil kg de algodão em rama, em 2007 (ver Figura 1).
Para 2008, espera-se que o total de agricultores(as) chegue a 500 e que a produção atinja 85 toneladas de algodão em rama.
Esses resultados influenciaram agricultores(as) familiares nos estados vizinhos do Rio Grande do Norte e Pernambuco. Apoiados pela ONG Diaconia, esses grupos já vinham há três anos produzindo algodão agroecológico, mas sem conseguir vendê-lo com condições diferenciadas em relação ao produto convencional. Já em 2007, negociaram contratos com duas outras em- presas francesas do comércio justo do ramo de confecções: a EnVão e a Tudo Bom?. No estado da Paraíba, outros grupos de agricultores(as) familiares, apoiados pelas ONGs Arribaçã, AS-PTA e Patac, também ingressaram na produção agroecológica de algodão, comercializando-o no mercado orgânico nacional. A Copnatural, por exemplo, é uma cooperativa de Campina Grande (PB) que trabalha com confecções de algodões colori- dos da marca Naturalfashion.
Essas iniciativas nos quatro estados se articulam em nível regional através de reuniões, visitas de intercâmbio e troca de informações e experiências relacionadas a técnicas de produção, beneficiamento e relações com o mercado. Trata-se de um esquema de cooperação que envolve organizações de agricultores(as) familiares, ONGs, a Embrapa Algodão, a Universidade Federal do Ceará e empresas do comércio justo e mercado orgânico, tendo promovido, na Paraíba e no Ceará, em 2006 e 2007, seminários regionais sobre o tema “Algodão agroecológico, agricultura familiar e comércio justo ”.
GESTÃO COMPARTILHADA
À medida que a produção de algodão agroecológico se estabeleceu em outros municípios, além de Tauá, o Esplar convidou dirigentes da Adec e dos STRs dos demais municípios para discutirem e decidirem coletivamente sobre as principais questões relacionadas com o cultivo, a compra do algodão em rama, seu beneficiamento e venda da pluma. Desde 2004 esse coletivo autodenominado Grupo Agroecologia e Mercado (GAM) se reúne entre 4 e 6 vezes ao ano para planejar a safra, definir ajustes nas bases técnicas do cultivo agroecológico, socializar informações, acompanhar o desenvolvimento da safra em curso e negociar a venda do algodão com a Veja e com a Justa Trama. Nesse sentido, o GAM exerce importante papel de articulador político-organizativo nesse trabalho inovador de acesso da agricultura familiar ao comércio justo e às oportunidades de socialização de experiências e informações em benefício do conjunto dos(as) agricultores(as) participantes e das organizações nele representadas.
DESAFIOS ATUAIS
O cultivo do algodão em sistemas consorciados com milho, feijão de corda e gergelim é uma estratégia técnica adotada pelos agricultores para minimizar riscos de perdas de safra numa região caracterizada por grande irregularidade no volume e distribuição das chuvas. Nessas condições adversas, a produtividade global das roças agroecológicas tem variado entre 400 e 800 kg de grãos, além de 100 a 200 kg de algodão por hectare. Tais volumes geralmente satisfazem as necessidades de consumo de feijão, milho e gergelim das famílias agricultoras, enquanto o algodão proporciona uma renda monetária entre U$ 85 e U$ 170/ha.
Para atender ao crescimento da demanda, foi preciso aumentar a área cultivada, por meio do ingresso de novas famílias no projeto. Entretanto, a introdução de outros(as) produtores(as) sempre exige pessoal adicional para dar conta das tarefas de capacitação e acompanhamento técnico, o que implica a disponibilização de mais recursos.
Outro obstáculo à produtividade têm sido as freqüentes infestações do bicudo do algodoeiro (Anthonomus grandis Boheman), que limitam os rendimentos médios do algodão a menos de 200 kg/ha, indicando a necessidade de investimentos dos órgãos oficiais de pesquisa no desenvolvimento de tecnologias limpas que facilitem o convívio com essa praga nos sistemas agroecológicos consorciados.
Além disso, embora a produção tenha crescido nos outros municípios, principalmente em Quixadá, também aumentaram os gastos com transporte do algodão em rama até a unidade de beneficiamento da Adec, em Tauá, que, em 2007, significou cerca de 4,25% do valor do algodão. Como naquele ano o peso relativo da produção de Tauá representou apenas 27% do total colhido, tornou-se evidente a necessidade de pelo menos uma nova descaroçadeira de pequeno porte, cuja compra está sendo pleiteada pelos STRs de Quixadá e Choró junto ao governo do estado do Ceará.
Outro desafio é a insuficiência de capital de giro que permita à Adec pagar à vista o algodão adquirido dos(as) agricultores(as). Nas três últimas safras a solução encontrada foi obter adiantamentos da Veja (cláusula do contrato com a Adec) e da Justa Trama, além de empréstimos junto ao Esplar, o que fragiliza a autonomia da Adec.
Finalmente, cumpre ressaltar que tanto a Veja como a Justa Trama até agora adquiriram o algodão agroecológico cearense sem exigência de certificação orgânica. Isso se deve à credibilidade conquistada em cerca de dez anos de história no mercado orgânico, ao respaldo da Adec e do Esplar, que sempre se responsabilizaram pela qualidade do produto agroecológico, bem como ao fato de que até então a oferta no Brasil era mínima. Com o crescimento da oferta gerada por outros grupos produtores, porém, as empresas do mercado orgânico e do comércio justo começam a ser mais exigentes. A Veja, por exemplo, já explicitou a necessidade de comprar algodão certificado. Diante desse quadro, os(as) agricultores(as) participantes do projeto encontram-se em processo de certificação para obter o selo orgânico, aproveitando oportunidade proporcionada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que pagou a certificação em 2007. A Veja, por sua vez, está pagando os custos para certificação da Adec de acordo com os padrões do selo da entidade Fair Trade Labelling Organizations International (FLO). Assim, é possível que em 2008 esse produto da agricultura familiar cearense obtenha uma dupla certificação: orgânica e justa (fair trade), o que certamente favorecerá a manutenção dos atuais preços praticados.
ALGODÕES TRANSGÊNICOS: UMA AMEAÇA
A recente liberação do cultivo de algodões transgênicos pelo governo brasileiro é uma grave ameaça à produção de algodão agroecológico de base familiar no semi-árido cearense e nordestino, que hoje experimenta um crescimento calcado em bases consistentes. Afinal, a Agroecologia e a agricultura orgânica não admitem, sob qualquer hipótese, o emprego de organismos resultantes de transgenia. O mais grave é que a presença de lavouras de algodões transgênicos na região pode levar ao risco real e preocupante de contaminação da produção agroecológica/ orgânica. Assim, com uma eventual implantação de lavouras transgênicas, os(as) produtores(as) nordestinos(as) poderão ver abortada essa importante retomada da atividade algodoeira, que agora apresenta bases sustentáveis.
Essa grave ameaça começa a ser enfrentada por meio da mobilização de agricultores(as) e suas organizações, ONGs e demais entidades de apoio à produção agroecológica, no sentido de pressionar o governo federal para que defina a região semi-árida brasileira como Zona de Exclusão de algodões transgênicos. Além disso, é imprescindível que essas mesmas entidades realizem o monitoramento permanente das áreas produtivas para detectar eventuais presenças de lavouras transgênicas nas suas vizinhanças e assim poder assegurar que o algodão agroecológico colhido seja de fato livre de contaminação com algodões transgênicos.
Pedro Jorge B. F. Lima
engenheiro agrônomo e pesquisador do Esplar
[email protected]
Referências Bibliográficas
LIMA, P.J.B.F. Ecological management of “mocó” cotton in northeast Brazil. In: I CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DA IFOAM SOBRE ALGODÃO ORGÂNICO, 1993, Cairo.
LIMA, P.J.B.F. Algodão Orgânico: bases técnicas da produção, certificação, industrialização e mercado. In: VIII REUNIÃO NACIONAL DO ALGODÃO, 1995, Londrina, 20 p. (mimeo).
LIMA, P.J.B.F. Algodão agroecológico: uma experiência no semi-árido cearense. Revista agriculturas: experiências em agroecologia, v. 2, n. 3, p. 19-22, Out. 2005.
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Revista V5N2 – Algodão agroecológico no comércio justo: fazendo a diferença