María Dolores Raigón
A alimentação está estreitamente relacionada com a evolução do processo civilizatório da humanidade. A espécie humana habita a terra há aproximadamente cinco milhões de anos, sendo que, durante mais de 99% desse período, dedicou-se à caça e à coleta dos alimentos oferecidos pela Natureza, os quais passaram por processos de seleção realizados a partir de mecanismos de observação e eliminação. Ainda existem no século 21 algumas comunidades na África e na América do Sul que subsistem ligadas às práticas de coleta e caça. Entretanto, trata-se de casos excepcionais, uma vez que, de modo geral, os padrões alimentares têm evoluído à medida que se incrementam as interações entre o ser humano e o entorno no qual desenvolve a sua atividade.
Garantir a oferta de alimentos para uma população em cresci- mento deve figurar entre os principais objetivos de qualquer plano de ação e desenvolvimento econômico e social. A produção de alimentos deve atender dois fatores fundamentais: o respeito ao meio ambiente e a garantia de elevada qualidade e valor nutricional dos alimentos.
EM BUSCA DE QUALIDADE
A produção de origem vegetal não deve ter como único propósito atingir altos rendimentos agronômicos, mas principalmente a obtenção de alimentos que contenham proteínas, carboidratos, óleos, enzimas, vitaminas, fibras, minerais, substâncias ricas em antioxidantes e água e que, por si mesmos, sejam suficientes para a nutrição e, portanto, para manter e melhorar a vida humana.
A qualidade dos alimentos pode ser aferida por diferentes critérios intrínsecos, relacionados à composição química e/ou nutricional, que também pode influenciar de forma muito direta os atributos organolépticos, como sabor, odor, textura, etc. Normalmente, o principal critério de qualidade para a alimentação e a nutrição humana é aquele que caracteriza o valor bromatológico dos produtos alimentícios (referente à quantidade de proteínas, vitaminas, minerais e substâncias antioxidantes). Por outro lado, igualmente importante para a nossa saúde é a ausência, nos alimentos, de substâncias não desejáveis, como resíduos fitossanitários, nitratos, aditivos, etc.
A composição nutricional dos alimentos é variável e depende de diferentes fatores, entre eles, as técnicas de produção, entre elas as características genéticas das espécies vegetais e animais empregadas nos sistemas de produção. É preciso considerar ainda outros fatores que intervêm no sistema de produção, como o método de fertilização, o uso de produtos fitossanitários, a qualidade da água usada na irrigação, a fonte de alimentação do gado, o bem-estar animal, a profilaxia, etc. Além disso, os diferentes métodos e produtos empregados no processo da pós-colheita e processamento podem ser importantes e decisivos para a composição e a qualidade final do produto alimentício. Podemos dizer, portanto, que a técnica de produção orgânica vai influir significativamente a composição dos alimentos.
Nos últimos anos, a composição de frutas e verduras tem sofrido perdas consideráveis em seu teor vitamínico e mineral que variam entre 12% em cálcio, na banana, até 87% de vitamina C, em morangos. As principais causas dessas perdas no conteúdo nutricional podem ser atribuídas ao empobrecimento dos solos, ao emprego de variedades comerciais, ao armazenamento prolongado sem maturação natural, ao transporte inadequado e ao emprego de tratamentos químicos (DAVIS, 2009). Sendo assim, para intervir e reverter o processo de deterioração do conteúdo nutricional, é preciso adotar técnicas de produção orgânica, que repercutirão sobre a fertilidade biológica do solo, as variedades tradicionais, o respeito pelos ciclos naturais dos alimentos e a maturação da planta. Importante também é apostar nos circuitos curtos de comercialização, valorizando, portanto, os alimentos frescos produzidos nas proximidades.
Evidências atestam que as técnicas de produção orgânica contribuem para a produção de alimentos de alta concentração nutricional e organoléptica (RAIGÓN, 2007):
• Verduras e legumes orgânicos têm apresentado maior concentração mineral: 25% mais potássio em alfaces e 14% mais cálcio em talos de erva-doce. Já os teores de ferro encontrados no feijão procedente de cultivos convencionais são de, aproximadamente, 6 mg por cada 100 g, enquanto que os de produção orgânica chegam a 7,12 mg. Esses dados demonstram que os grãos de feijão orgânico aportam 15,7% a mais desse oligoelemento.
• O suco de laranjas orgânicas contém 20% mais vitamina C que o suco procedente de frutas convencionais. Tal comparação evidencia a importância da qualidade do alimento sobre a saúde, já que, se a dose diária recomendada de vitamina C é de 60 mg, seria preciso consumir apenas 135 g do suco de frutas orgânicas para atingi-la, o que seria obtido espremendo duas frutas de porte médio. Já ao optar por frutas convencionais, seria necessário mais de 162 g de suco para alcançar a mesma dose diária da vitamina, o que implicaria espremer três frutas. Sabemos, porém, que não é comum consumir tamanha quantidade de fruta, o que levaria a uma deficiência desse nutriente. Sendo assim, se optarmos por frutas orgânicas, quantidades razoáveis do alimento proporcionarão a dose suficiente de vitamina, sem que haja receio de um déficit nutricional.
• Os frutos cítricos orgânicos são mais aromáticos, apresentando 24% a mais de óleos essenciais. Essa maior aromaticidade demonstra, portanto, que tais frutos têm uma maior qualidade organoléptica quando comparados com os convencionais.
• As substâncias antioxidantes, especificamente as de natureza polifenólica, apresentam uma grande complexidade. No entanto, têm atraído cada vez mais interesse por se tratar de compostos que podem ter importantes aplicações na prevenção e no tratamento de doenças cardiovasculares, câncer, úlcera duodenal e gástrica, processos patológicos de caráter inflamatório, fragilidade vascular, infecções, etc. Por essa razão, as substâncias polifenólicas são consideradas a medicina do século 21. Tais substâncias são encontradas em concentrações superiores em frutas orgânicas, como morangos (26%), amora preta (40%), maçã (15%) e pimentão (17%).
• Os alimentos orgânicos de origem animal apresentam maior teor proteico (2,6% nos ovos; 7,8% na carne de coelho, o que significa que, a cada 100 g de carne de coelho, ingerimos 1,41 g a mais de proteína, desde que a carne pro- ceda de pecuária orgânica). Esses mesmos alimentos contêm menos gordura, já que os animais, de acordo com as normas de bem-estar, têm mais espaço para movimentar-se e queimam mais gordura; no caso da carne de coelho orgânica, os níveis de gordura são 42% menores. Já o perfil lipídico da gordura do ovo orgânico apresenta 8% a mais de ácido oleico.
A Figura 3 apresenta os conteúdos de nitratos encontrados nas folhas de couve-chinesa, espinafre e acelga cultivadas de forma orgânica e convencional no inverno e ao ar livre. As menores concentrações de nitratos são registradas nos alimentos de produção orgânica. Considerando a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto à dose diária admissível, sem risco aparente para a saúde, de nitratos por quilograma de peso corporal e estimando em 65 kg o peso médio de um adulto, a quantidade máxima de ingestão de nitratos seria de 273 mg. As quantidades diárias de ferro (Fe), sódio (Na), potássio (K) e cálcio (Ca) recomendadas para uma pessoa adulta podem ser obtidas com o consumo de 500 g de acelga orgânica fresca, sem que represente risco aparente para a saúde, uma vez que não supera a ingestão diária admissível de nitratos (NO3). No entanto, quando se trata da acelga convencional, seria necessário consumir 550 g para obter as mesmas quantidades desses nutrientes, embora nesse caso a ingestão de nitratos se duplicaria, impondo riscos à saúde.
O conjunto desses resultados evidencia o duplo benefício que os alimentos orgânicos apresentam e a importância que tem a sua ingestão para a saúde. De um lado, são alimentos que não estão sujeitos nem a substâncias tóxicas, procedentes dos pesticidas utilizados na agricultura convencional, nem à acumulação de nitratos (potencialmente tóxicos) nos tecidos vegetais. Por outro lado, a composição nutricional nos alimentos orgânicos é mais equilibrada, proporcionando os nutrientes em quantidades suficientes, de acordo com as doses recomendadas.
ALIMENTAÇÃO COMO PRÁTICA DE RECONEXÃO COM A NATUREZA
Saber o que comemos, como se produzem os alimentos e a sua repercussão no organismo é importante. Mas também é muito importante saber o que inalamos e o que absorvemos através da pele. Afinal, isso também pode afetar a digestão e outras funções metabólicas. Os alimentos não devem conter agentes químicos, biológicos ou de qualquer espécie que colo- quem em perigo a saúde do consumidor. A transformação que a sociedade almeja deve passar pelo consumo de alimentos orgânicos obtidos pela inovação organizativa e pelas mudanças nos padrões de consumo, não apenas considerando a repercussão sobre a saúde humana, mas também respeitando os princípios do equilíbrio do sistema, a valorização da biodiversidade, a otimização dos recursos, o bem-estar animal, práticas não predatórias de pesca e os custos econômicos, ambientais, culturais e sociais envolvidos na produção agroalimentar.
A apreensão social gerada por algumas doenças transmitidas pelos alimentos tem favorecido, ainda que pontualmente, que temas como qualidade dos alimentos e segurança alimentar se tornem prioridades na agenda política (GIUSTI et al., 2008). O alarme geral se justifica não só porque os alimentos estão deixando de cumprir sua finalidade de nutrir e, portanto, de gerar saúde, mas também porque setores cada vez mais amplos das ciências têm começado a denunciar os alimentos como causado- res das modernas doenças degenerativas (COOPER et al., 2007).
Entre os princípios da produção orgânica, destaca-se o princípio da saúde, que se vincula diretamente ao conceito de sustentabilidade. Dessa forma, ao relacionar a saúde com as repercussões entre o processo e o produto, a noção de sustentabilidade é utilizada para descrever a motivação global para a produção. Nesse sentido, a sustentabilidade está associada à saúde dos solos, dos ecossistemas e das pessoas. Essa definição geral de sustentabilidade, apoiada em princípios mais abrangentes de saúde, ecologia, imparcialidade e cuida- do, faz referência ao conceito geral de alimento sustentável, obtido mediante técnicas que são respeitosas com a paisagem e com a manutenção dos serviços do ecossistema, tais como a oferta de solos férteis e água limpa, enquanto garante uma renda justa para os produtores e preços razoáveis e adequados para os consumidores.
Portanto, a produção orgânica se caracteriza por sistemas produtivos responsáveis e pela sua contribuição para a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas, além de favorecer a biodiversidade ao mesmo tempo em que gera alimentos saudáveis e de alta qualidade.
María Dolores Raigón
Depto. de química da Escola Técnica Superior de Engenharia Agronômica e do Meio Natural da Universidade Politécnica de Valência
[email protected]
Referências Bibliográficas:
COOPER, J.; NIGGLI, U.; LEIFERT, C.. Handbook of organic food safety and quality, 2007. 521 p.
DAVIS, D.R. 2009. Declining Fruit and Vegetable Nutrient Composition: what is the evidence?. Hortscience , v. 44, n. 1, p. 15-19, 2009.
GIUSTI, A.M.; BIGNETTI, E.; CANNELLA, C. Exploring new frontiers in total food quality definition and assessment: from chemical to neurochemical properties. Food & bioprocess Technology, v. 1, n 2, p. 130-142, 2008.
RAIGÓN, M.D. 2007. Los alimentos ecológicos: calidad y salud. Andaluzia: Ed. SEAE, 2007. 192 p.
Baixe o artigo completo:
Revista V11N4 – Alimentação ecológica: uma questão de qualidade