Flavia Maria Galizoni, Eduardo Magalhães Ribeiro, Alice Assis Carvalho, Géssica Almeida de Jesus, Juliana Soares Fagundes, Patrícia Noscilene Silva
CONHECIMENTOS
Toda produção material humana exige conhecimentos técnicos, sejam eles relacionados a processos, produtos ou mercados. Mas há uma particularidade cultural nos conhecimentos exigidos para produzir no mundo rural: o conheci- mento de quem produz é quase sempre considerado insuficiente, incapaz de suprir toda a escala de saberes necessária para uma produção eficaz e rentável. Assim, para produzir seria necessário o apoio externo de alguém que seja dotado de um conhecimento técnico formalizado, que assegure a regularidade da produção e, principalmente, que assuma a responsabilidade pela introdução de novos processos que inovariam e elevariam a qualidade e a produtividade. Compreendendo dessa maneira, e é dessa maneira que geralmente se compreende a relação do produtor rural com o conhecimento, o saber é algo externo, dominado por outro sujeito que não é o produtor. E, certamente, considera-se que esse saber técnico tem um valor universal, próprio para todos os sujeitos e todas as situações. Foi com base nesses princípios que os serviços de disseminação de conhecimentos no campo foram concebidos.
Mas foi com base nesses mesmos princípios que os serviços de extensão entraram em crise, quando se depararam com o desafio de pensar na incorporação de saberes ao cotidiano de populações tradicionais ou à realidade de sistemas produtivos que mantêm ligações fortes com a base local de recursos. Nesses casos, a produção depende fundamentalmente da reflexão sobre a prática e o meio. É a partir da capacidade de pensar trabalhando, ou de trabalhar pensando, que esse conhecimento é construído, sedimentado e apropriado. E sua importância é ainda mais destacada quando se pensa na disseminação desses conhecimentos locais: por quais circuitos transitam? Quais mecanismos transformam esses conhecimentos em patrimônio de um grupo humano? Essas questões quase sempre estão ausentes no cotidiano e na formação de extensionistas profissionais, mas são essenciais para a construção de conhecimentos locais, agroecológicos, étnicos e adaptados.
Embora essas questões sejam muito vivas para camponeses e técnicos que atuam na construção cotidiana do saber local e agroecológico, foram poucos os autores que se esforçaram para compreender o assunto. Um deles, Carlos Rodrigues Brandão, em texto tão essencial quanto pouco conhecido, escreveu que camponeses, como todos os grupos humanos, formam seus próprios técnicos, ou especialistas, como os denominou. Esses especialistas cuidam de um vasto repertório de saberes adaptados, locais e reconhecidos, que vão da saúde à produção de alimentos, da educação à religião. Especialistas interagem com muitos conhecimentos que vêm de outras partes, filtram saberes, práticas e incorporam novidades úteis, de forma que as técnicas – quase sempre denominadas como tradicionais e consideradas muito estáveis – estão sendo sempre revolucionadas, transformadas e disseminadas dentro daquele grupo. Como se fosse uma espécie de serviço interno de extensão.
Esse é o caso das artesãs do Vale do Jequitinhonha mineiro que lidam, como elas mesmas dizem, com o barro. A região é reputada pela excelência do artesanato, um ofício de tradição entre mulheres, que costuma ser considerado um emblema do Brasil arcaico, expressão do atraso e de técnicas ultrapassadas. Mas, observando atentamente, o ofício revela a existência de circuitos refinados de produção, partilha de conhecimento e inovação, que operam a partir de redes sociais e recursos da natureza: terra, madeira e barro. Então, percebendo a forma como essas camponesas lidam com seus saberes e como suas redes se abrem para incorporar novidades técnicas e organizativas, o artesanato se revela como uma renovada lição sobre as pessoas, o conhecimento e as coisas. E, enquanto circuitos de saberes permeáveis a alguns aprendizados e absoluta- mente refratários a outros, a técnica e a estética do barro se transformam em lições para conhecer o circuito de disseminação de conhecimentos sobre o local, sobre a base local de recursos e sobre a extensão.
Este artigo descreve como essas camponesas afirmam seus saberes e de que formas construíram inovações organizativas e produtivas a partir do conhecimento tradicional. O objetivo é refletir sobre o saber vinculado à natureza, ao local e aos ofícios camponeses. Refletir sobre esses temas, de um modo reverso, significa também refletir sobre as (in)congruências da extensão.
APRENDIZAGEM
No Jequitinhonha, o ofício do artesanato em barro se vinculava à produção de utensílios e peças principalmente para uso doméstico: panelas para fazer comida e potes para guardar água e mantimentos. As panelas e bilhas eram decoradas de forma rústica, sem a sofisticação e o trato delicado da cor que foram incorporados depois.
As técnicas do artesanato são passadas, preferencialmente, dentro de uma linhagem feminina. Boa parte das mulheres aprendeu o ofício ainda criança, perto dos sete anos, vendo as adultas fazendo, fazendo junto, aprendendo fazendo. A prática é transmitida para as meninas de mãe para filha, de avó para neta, de tia para sobrinha ou pela irmã mais velha. Já na vida adulta, a arte é ensinada principalmente de sogra para nora: é um conhecimento familiar e comunitário. As mulheres envolvidas no artesanato de barro não se concentram, portanto, em uma determinada faixa etária, ao contrário, são tanto jovens como maduras e idosas, circunscrevendo um ciclo dinâmico de aprendizagem, participação e inovação.
Nas comunidades camponesas onde há artesanato, a organização social do tempo é particular: passado, presente e futuro podem ter uma ordenação que não é puramente cronológica. Assim, o conhecimento considerado costumeiro pode ser a base da inovação. E isso se observa na transformação das técnicas do artesanato. A pintura das peças, por exemplo, foi sendo aperfeiçoada pelas artesãs quando o circuito de vendas foi se ampliando e começaram a aparecer compradores. Estes expressavam certas exigências em relação ao acabamento e à pintura, mas o aperfeiçoamento – a combinação de cores, as texturas – foi feito a partir da cultura material e da base local de recursos: os tipos de barros para moldar, o óleo próprio do solo e das pedras para fazer as tintas, o tipo de forno, a caloria da queima e os instrumentos de trabalho.
Instrumentos e técnicas costumeiras foram sendo assim atualizados, experimentados e aperfeiçoados para que novas possibilidades de pintura fossem desenvolvidas, principalmente para que a precisão, as paletas de cores e a durabilidade dos pigmentos criassem novas alternativas de acabamento. Essa experimentação foi feita sem o uso de tintas químicas ou novos equipamentos. Ao contrário, foram inovadas a partir do repertório de conhecimento ambiental dominado pelas comunidades: conhecimento sobre a base de recursos, sobre as técnicas agrícolas, sobre as possibilidades de recursos da natureza produzirem e fixarem os pigmentos e sobre a diversidade do barro, sua resistência ao fogo e aceitação da pintura.
Mas isso não significa que as camponesas artesãs não tiveram contato com tintas químicas, sistemas de modelagem mecânicos ou máquinas de produção em larga escala. Todas elas tiveram acesso a bens, insumos e produtos industriais, assim como passaram por muitas e variadas capacitações. Entretanto, o processo de produção do artesanato de barro permanece sendo uma cadeia de elos interligados e travados, envolvendo conhecimento local, matéria-prima da base local de recursos, técnicas adaptadas e equipamentos apropriados. A peça final é, portanto, o resultado elaborado dessa combinação delicada entre curiosidade, sensibilidade, inventividade e interação proporcionada pela cultura camponesa. Nesse sistema, as artesãs produzem seus próprios equipamentos e insumos, gerando autonomia produtiva e uma rede interna de extensão do conhecimento, mas também um vínculo forte com o conhecimento costumeiro sobre as possibilidades da natureza.
TRADIÇÃO E INOVAÇÃO
Frente às oportunidades de comercialização, o artesanato foi ressignificado, mas sempre a partir de referências familiares e comunitárias. As figuras, a geometria e os quadros saem da cabeça das artesãs, de suas referências, não são dados pela mediação dos mercados. Ao contrário, são vinculados às experiências cotidianas e à simbolização dessa vivência.
As principais matérias-primas para a produção do artesanato são o barro para modelar, o barro para o oleio e a lenha para queimar. As etapas de fabricação das peças são socar o barro, peneirar, amassar, reamassar e modelar a peça. Depois, raspar com faca, alisar com bambu ou pedra e água, deixar secar à sombra e um pouquinho ao sol, oleiar, pintar, levar para o forno, caldear e, por fim, queimar. Algumas peças precisam de um acabamento ainda mais fino.
Descrito dessa forma, o processo parece simples, mas enfeixa uma série de procedimentos, técnicas e conhecimentos, alguns muito refinados, principalmente o oleio. Oleiar significa produzir tinturas dos próprios barros, tinturas que preparam a peça para ser queimada e dão o acabamento final. Mas fazer o oleio é uma técnica refinada, pois é preciso conhecer os tipos de solos e rochas, saber depurá-los tirando sua goma, separando a areia e deixando decantar. Esse procedimento requer grande conhecimento sobre os recursos da natureza, da natureza do local, sobre suas possibilidades de uso. Da mesma forma, é preciso saber como o barro resiste à queima, para, como num passe de mágica, mudar de cor durante o processo, e o preto se transformará em branco, o amarelo se tornará vermelho. Sabendo disso, as artesãs procuram gerenciar e compartilhar seus recursos, e uma associação chegou a adquirir seu próprio barreiro e estipulou sua gestão como um bem comum, um patrimônio que serve a todas artesãs na comunidade e socorre também outras comunidades vendendo-o a um preço justo.
Barro para oleio é matéria-prima importante, embora consumida em pequenas quantidades. Entretanto, gasta muita ciência e conhecimento para sua produção, pois o oleio é extraído em pequenas quantidades nas localidades mesmo. Só o teste na prática indica se aquele barro dará um bom oleio. É necessário tirar o excesso de areia do barro para que fique consistente. Dependendo do barro, é necessário descansar, enquanto outros podem ser extraídos da natureza para, no mesmo dia, se- rem incorporados às peças. As artesãs observam como o barro se dissolve na água e o resultado depois da queima da peça para saber se o oleio aprovou. É a partir do oleio que constroem a paleta de cores para elaborar suas peças. As matérias-primas de origem são dois tipos de barro que dão tons vermelhos, dois outros dão oleios na cor branca, três dão tons de amarelo – um amarelo escuro, um amarelo claro e um dourado – e um roxo. Uma rocha escura fornece tons de carmim, o preto é feito da mistura de barro com carvão e cola escolar. Misturando vermelho com branco conseguem rosa. Dosando cores fazem tons fortes ou claros. Mas na produção de oleio cada artesão tem o seu jeito, definido a partir de um repertório comum de técnicas que envolve muita experimentação.
A lenha é matéria-prima importante para a terminação da peça. Sua aquisição reflete um firme conhecimento costumeiro sobre como alcançar a temperatura ideal para a queima das peças. As lenhas são classificadas como fortes ou fracas: é forte aquela de combustão intensa e demorada, usada pelas artesãs em menor quantidade. Elas vão dosando e combinando com a lenha mais fraca, tendo muito cuidado, uma vez que a peça pode entortar se a temperatura for muito elevada. As madeiras de lenha forte são o araçá e o pau d’óleo. Já as madeiras cujas lenhas dão fogo fraco, melhores para a queima, são a laranjeira e a bananinha, ambas nativas. Essa madeira fraca é usada no primeiro momento da queima, o caldeamento, quando as peças são colocadas em um fogo bem baixo para se acostumar com o calor, pois o calor excessivo estoura o barro. As peças ficam de quatro a seis horas em fogo brando para irem esquentando devagar, e, aos poucos é adicionada a lenha mais forte.
Equipamentos e ferramentas são construídos, adaptados e, na maior parte das vezes, fabricados pelas próprias artesãs, que usam facas, couros, taquaras, pedaços de borracha, canetas e cartões de telefone. As ferramentas não têm um uso certo, sendo ajustadas à necessidade da modelagem do momento e da peça.
Assim, para fazer a arte do barro, dizem as artesãs, é preciso conhecer e pesquisar sempre.
APRENDIZADOS
Produzir uma peça em barro é um ato solitário: cada artesã com seus equipamentos, suas matérias-primas, sua inspiração. Entretanto, os gargalos da comercialização das peças são enfrentados coletivamente pelas artesãs, que ao longo das suas trajetórias foram lidando com as dificuldades e experimentando e construindo canais de venda. São canais locais, regionais, estaduais, nacionais e até internacionais, que se articulam com as redes de apoiadores. Cada canal traz suas dificuldades e potencialidades, medidas e calculadas pelas camponesas artesãs, que combinam estratégias individuais com estratégias coletivas, circuitos mais curtos com outros mais longos.
Em todas as comunidades, a constituição de associações foi a alternativa para enfrentar o desafio da comercialização. São voltadas preferencialmente para apoiar as vendas e, afirmam as artesãs, para obter benefícios que individualmente não conseguiriam. E assim, no coletivo, conquistaram patrimônio físico – as sedes, que são espaços para reuniões e capacitações das artesãs e, ao mesmo tempo, lojas para comercialização, locais de armazenamento de embalagens e depósito de equipamentos coletivos, como computadores, telefones, livros e fornos comunitários. Mas as associações também possibilitaram às artesãs conquista- rem patrimônio organizativo, fortalecendo os grupos, por meio de capacitações e experiências conjuntas de comercialização e aquisição e gestão de equipamentos coletivos.
Mulheres rurais construíram assim oportunidades de inserção produtiva a partir da base de recursos local. Mas, principalmente, elas inovaram a partir da tradição, e essas inovações são aprendizados de método: a partir da tradicionalidade, é possível ganhar autonomia, filtrar novidades, criar redes amplas de apoio e formas criativas de inserção em mercados. Nesse sentido, são exemplos que estimulam a reflexão sobre o próprio conceito de inovação e seu papel no desenvolvimento.
Essas inovações têm origem na técnica, mas são também construções sociais, pois passam por canais específicos de transmissão de saberes. E, nessa circulação de conhecimentos, a lógica de uso dos recursos naturais trava o conhecimento ao meio, estimula a inventividade, o intercâmbio, as redes locais e o sentimento de pertencimento ao grupo.
Desse modo, refletir sobre o artesanato na dinâmica da agricultura familiar do Jequitinhonha fornece pistas importantes para pensar sobre diferentes formas de saber e circuitos de aprendizagem e inovação, colocando em questão os sistemas padronizados de disseminação de conhecimentos. Serve, principalmente, para pensar a extensão voltada para o campesinato. Até que ponto sistemas de extensão, e mesmo de pesquisa, interagem efetivamente com sistemas de conhecimento complexos, múltiplos, sociais e tão profundamente enraizados na base local de recursos, na relação de determinada população com o meio? O extensionismo de base for- dista não tem conseguido dar conta dessas sutilezas do lugar, nem mesmo validar a importância do especialista tradicional. Essa problemática está no próprio fundamento das relações do extensionismo difusionista com os saberes locais, agroecológicos e étnicos.
É por isso que a reflexão sobre os dilemas e as práticas dessas camponesas artesãs é também uma reflexão sobre todas as comunidades camponesas. Afinal, a experiência no Jequitinhonha espelha a mesma riqueza de possibilidades e os mesmos estigmas culturais que tantas outras experiências inovadoras, criativas e locais de tantos outros grupos camponeses.
Flavia Maria Galizoni
Professora ICA/UFMG, pesquisadora do Núcleo PPJ
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Eduardo Magalhães Ribeiro
Professor ICA/UFMG, pesquisador CNPq, Fapemig e Núcleo PPJ
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Alice Assis Carvalho
Pesquisadora do Núcleo PPJ/UFMG
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Géssica Almeida de Jesus
Bolsista IC CNPq, Núcleo PPJ/UFMG
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Juliana Soares Fagundes
Bolsista IC CNPq, Núcleo PPJ/UFMG
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Patrícia Noscilene Silva
Bolsista IC Fapemig, Núcleo PPJ/UFMG
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Referências Bibliográficas
BRANDÃO, C. R. Saber de classe e educação popular. In:______. O ardil da ordem. Campinas: Papirus, 1986.
GALIZONI, F.M. A terra construída. Fortaleza: Etene/BNB, 2007. RIBEIRO, E.M. (Org). Sete estudos sobre a agricultura familiar do vale do Jequitinhonha. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013.
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Revista V10N3 – Aprendendo com o barro: inovação e saber de artesãs camponesas do Jequitinhonha