Francisco Roberto Caporal
Processos de construção do conhecimento apresentam características diferentes segundo o momento da história da humanidade. Cada época encerrava um leque de valores culturais e exigências sociais que determinavam formas variadas de relacionamento com a natureza, o que sempre garantiu a diversidade. Não obstante, a ciência moderna adotou uma forma cartesiana de pensar, isto é, adotou uma lógica de descontextualizar, de simplificar e de estreitar o conhecimento. Nasce daí a pretensão de definir princípios universais, bem como a intransigência para com a diversidade e a complexidade.
No campo agrícola, o ensino, a pesquisa e a extensão foram enquadrados nessa lógica, gerando processos de construção do conhecimento para e não com o outro. Assim, a tarefa dos agentes de desenvolvimento rural passou a ser difundir e transferir conhecimentos e tecnologias supostamente neutros, para que fossem adotados por aqueles que, em tese, não de- tinham os conhecimentos necessários. Embora, muitas vezes inconscientemente, a extensão rural incorpore orientações de correntes pedagógicas críticas para dar sustentação e rumo a sua prática, em geral acaba se pautando pela pedagogia tradicional, assumindo o dualismo transmissor/receptor. Mais adiante, no auge da modernização da agricultura, foi a pedagogia tecnicista que predominou, isto é, procurava-se mudar o comportamento de agricultores(as) de forma a adaptá-los para que internalizassem rotinas de trabalho mecânicas e estratégias de reprodução econômica empresariais. Surgem daí as críticas de Paulo Freire à tentativa de adestramento nos processos de capacitação conduzidos por extensionistas, modelo que ele apelidou de educação bancária. Na lógica dominante, não fazia falta construir conhecimentos com os agricultores(as), pois a realidade estava dada, e a tecnologia, disponível. Com esse enfoque pedagógico, a extensão enfatizava o saber-fazer e assumia uma atitude acrítica diante da realidade. Tanto agricultores(as) como extensionistas estavam livres do papel de pensar.
Os artigos publicados nesta edição da Revista Agriculturas trazem experiências que vão na contramão das tendências acima enunciadas. Como se sabe, a Agroecologia constitui uma ciência do campo da complexidade, com uma forte dimensão política e sociocultural. Essa ciência pretende contribuir para o restabelecimento de processos de coevolução homem-natureza, promovendo maior equilíbrio ecológico, mas também para uma ampliação da solidariedade entre as atuais gerações e destas para com as futuras. Ou seja, estabelecer uma ética da sustentabilidade. Ademais, a Agroecologia sustenta que o manejo dos agroecossistemas tem uma forte relação com os saberes e culturas locais. E é por isso que não podem existir receitas para a prática de agriculturas mais sustentáveis, pois as formas de produção serão tantas quantos forem os arranjos possíveis entre as culturas e os saberes dos agricultores(as) e as potencialidades e os limites naturais de cada agroecossistema, de cada território.
A Agroecologia também adota uma postura de reconheci- mento e respeito aos diferentes saberes e propõe a criação de interconexões entre os saberes populares e os conhecimentos científicos, buscando gerar novos conhecimentos adaptados às diferentes realidades. Dessa forma, cabe aos extensionistas (ou aos professores, quando se trata de educação formal) a tarefa primordial de mobilizar as dinâmicas locais e territoriais e facilitar processos de construção de conhecimentos. Nesse caso, agricultores(as) também são vistos como sujeitos ativos da transformação do mundo ou da sua realidade. Portanto, como foi dito na chamada de artigos para esta edição, buscamos aqui colocar um pouco mais de luz sobre a internalização do enfoque agroecológico em processos de construção do conhecimento sobre a gestão dos agroecossistemas conduzidos por organizações e redes sociais inseridas na dinâmica do desenvolvimento rural.
O primeiro artigo descreve uma iniciativa em curso protagonizada por um grupo de estudantes e professores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. A partir da realização de um evento intitulado Troca de Saberes, como parte do Programa Teia de Extensão Universitária, propõe-se abrir um espaço para o debate agroecológico dentro da universidade. A ideia é não só fortalecer o campo da Agroecologia e as experiências de transição agroecológica, como também colocar em pauta temas centrais, como a importância da agricultura familiar, da agricultura camponesa e de suas variadas vivências na Zona da Mata mineira. Como explicam os autores, a iniciativa mapeia e fortalece as dimensões culturais no debate da transição agroecológica; amplia espaços na universidade, em uma espécie de extensão às avessas, para debates com e sobre a agricultura familiar camponesa e agroecológica; e, assim, dá visibilidade e inteligibilidade às experiências. Além disso, busca-se socializar pesquisas feitas tanto no campo acadêmico como no meio popular para estimular reflexões sobre as mesmas e encontrar novos objetivos para a ação ou mesmo abrir caminhos para novas pesquisas.
Assim, ao envolver um amplo conjunto de atores e de áreas de conhecimento, o evento tem sido uma forma de reinventar a extensão universitária e fortalecer ações e estudos interdisciplinares.
O artigo seguinte trata da introdução do enfoque agroecológico nas atividades de ensino, pesquisa e extensão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) – Campus Castanhal. Os autores abordam como a articulação entre professores/pesquisadores e agricultores familiares tem influenciado os processos de construção de conhecimentos agroecológicos. A proposta nasceu da inquietação de um grupo de professores sobre a necessidade de formar profissionais que pudessem contribuir para o desenvolvimento mais sustentável da região amazônica, mas somente ganhou corpo à medida que aumentava a participação de um conjunto de organizações da agricultura familiar. Uma parceria com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) permitiu organizar uma turma formada exclusivamente por filhos e filhas de famílias agricultoras. A partir daí, abriu-se um leque de ações envolvendo o instituto e os movimentos sociais. Na sequência, diversas estratégias foram sendo estabelecidas no sentido de fortalecer o debate e o espaço da Agroecologia dentro do IFPA, entre elas, a constituição do Núcleo de Estudos em Agroecologia e Fortalecimento da Agricultura Familiar Camponesa (NEA), a implantação de Unidades de Pesquisa Pedagógicas de Experimentação Agroecológica (Upeas), como espaços físicos de ensino–pesquisa–extensão, e a criação da Incubadora Tecnológica de Desenvolvimento e Inovação de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Incubitec), que tem por objetivo a promoção de tecnologias sociais através da incubação de empreendimentos econômicos solidários (associações e cooperativas).
Os autores concluem que a presença ativa de representações da agricultura familiar foi de fundamental importância, uma vez que assegurou uma correlação de forças que permitiu as mudanças introduzidas no instituto a partir do enfoque agroecológico. Nesse sentido, relatam como foi possível estabelecer um curso de Agronomia que adota um enfoque sistêmico na formação, que tem um currículo que privilegia a vivência dos estudantes junto a unidades da agricultura familiar e que, dessa forma, possibilita um amplo processo de aproximação com as famílias agricultoras. Tal contexto tem favorecido a construção conjunta entre acadêmicos e agricultores de inovações contextualizadas para as diferentes realidades onde se desenvolve o trabalho de extensão e pesquisa. A experiência mostra, assim, como é possível introduzir o enfoque agroecológico mesmo em instituições que tiveram historicamente uma posição conservadora.
Já o artigo intitulado Aprendendo com o barro: inovação e saber de artesãs camponesas do Jequitinhonha”, de autoria de professores(as) e estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coloca em destaque a importância e o significado do saber popular na promoção de dinâmicas localmente enraizadas de desenvolvimento rural. A partir dessa constatação, ressalta como o intercâmbio de saberes alavanca a criação de inovações e o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de tecnologias adaptadas e que respondam às necessidades objetivas que vão surgindo na trajetória de vida e trabalho de um grupo de artesãs produtoras de peças de cerâmica. Os(as) autores(as) detalham ainda o processo de adequação de mudanças tecnológicas, que levam em conta a disponibilidade de recursos locais, e explicam como isso faz parte do conjunto de saberes dessas mulheres artesãs, cujo ofício revela a existência de circuitos refinados de produção, partilha de conhecimento e inovação, que operam a partir de redes sociais e recursos da natureza: terra, madeira e barro.
Assim, o artigo destaca a necessidade de formas de intervenção de agentes externos que, ao contrário dos métodos convencionais de extensão rural, respeitem a existência de um saber e de um saber-fazer tradicional, que vêm sendo transmitidos oralmente a partir da prática do artesanato entre mulheres de diferentes gerações. Isso não significa que elas estejam isoladas do mundo. Na verdade, foram incorporadas inovações demandadas pelo mercado, sem que com isso se perdesse o foco. Afinal, como dizem os(as) autores(as), o pro- cesso de produção do artesanato de barro permanece sendo uma cadeia de elos interligados e travados, envolvendo conhecimento local, matéria-prima da base local de recursos, técnicas adaptadas e equipamentos apropriados. Isso é o que os agroecólogos mexicanos Toledo e Barrera-Bassols (2008) identificam como o conhecimento tradicional-moderno, fruto da dinâmica sociocultural dos grupos sociais. Trata-se de uma experiência que reúne vários elementos úteis para o debate sobre a construção de conhecimentos agroecológicos. Por um lado, aponta para a necessidade de repensar o papel dos agentes de extensão; rever as metodologias de intervenção; e potencializar o desenvolvimento endógeno, respeitando e estimulando a aplicação de saberes associados aos recursos naturais locais que podem trazer soluções adequadas e técnicas contextualizadas às demandas e possibilidades presentes no território. Por outro lado, o artigo traz ensinamentos pertinentes sobre as for- mas camponesas de aprender a saber e a fazer, fundamentais para o desenvolvimento com base no enfoque agroecológico. Observe-se que essas técnicas chegam a elevados graus de aperfeiçoamento, como podemos verificar no processo de experimentação e escolha de materiais locais para a pintura das peças e no uso de diferentes tipos de madeira para que o fogo atinja diferentes intensidades de calor em diferentes momentos do cozimento dos artefatos.
Em seguida, temos um artigo apresentando a experiência do Projeto Dom Helder Camara (PDHC), que vem sendo conduzido no semiárido nordestino e que tem como principal objetivo gerar referências que possam contribuir para um desenvolvimento mais sustentável de famílias agricultoras e comunidades rurais da região. Para tanto, desde sua origem, o projeto tomou algumas decisões: a) adotar o enfoque agroecológico e; b) adotar uma abordagem metodológica baseada na efetiva participação dos atores envolvidos. Partindo da constatação de que a experimentação faz parte do cotidiano das famílias, o PDHC orienta suas ações no sentido de fortalecer a construção conjunta de conhecimentos, articulando o saber tradicional com o conhecimento científico. Isso ocorre por meio de um processo dialógico e dialético que parte da problematização da realidade. Como afirmam os autores, o projeto pautou-se em metodologias que favorecem a aprendizagem evolutiva e a geração participativa de conhecimentos necessários para promover mudanças nos campos organizacional, tecnológico e produtivo. Desse modo, os processos de aprendizagem foram construídos em torno de uma reflexão crítica sobre a realidade das famílias em suas tarefas diárias.
Metodológica e estrategicamente, o PDHC adotou alguns critérios fundamentais: planejamento participativo; formação de grupos de interesse; promoção de intercâmbios entre famílias/comunidades; experimentação e pesquisa participativas; implantação de Unidades Demonstrativas; e criação do Fundo de Investimento Social e Produtivo. Para referenciar a metodologia, os autores apresentam o caso dos consórcios agroecológicos de algodão com cultivos alimentares, destacando os processos de formação e inclusive de inserção nos mercados, a partir da organização social das famílias envolvidas. A efetiva participação e o empoderamento das famílias também são apresentados como parte dos resultados. Entretanto, o itinerário metodológico parece ter sido elemento chave para a construção de conhecimentos e para o desenvolvimento de inovações a partir do diálogo, da troca de experiências e do aporte de informações técnicas adequadas e culturalmente aceitáveis.
O último artigo trata sobre o III Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores-Experimentadores, realizado recentemente em Campina Grande (PB), ocasião em que se reuniram mais de 300 pessoas para trocar experiências e compartilhar conhecimentos. Mais do que um relato sobre o encontro, o artigo busca destacar a relevância do trabalho de agriculto- res-experimentadores e suas contribuições para a convivência com o semiárido, em uma perspectiva sustentável e solidária. Também são trazidas à tona algumas das estratégias que vêm sendo utilizadas por organizações e técnicos vinculados à Articulação Semiárido Brasil (ASA) visando ampliar a abrangência e consolidar práticas bem-sucedidas e apropriadas às condições objetivas das realidades da região semiárida. Depoimentos e um pouco da história de vida de agricultores participantes do evento demonstram não só otimismo e esperança, mas também constituem exemplos de participação cidadã, de empoderamento das famílias e das formas de resistência que elas experimentam ao se envolverem na construção de conhecimentos e na troca de saberes entre agricultores(as), bem como entre estes e técnicos e acadêmicos.
Finalizamos citando o educador Paulo Freire (1983, p.16), quando afirma que:
“Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer. Por isso mesmo é que, no processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas”.
O autor também nos ensina que educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais. (FREIRE, 1983, p.15)
Essa é a aprendizagem que os textos deste número de Agriculturas buscam oferecer.
Boa leitura!
Francisco Roberto Caporal
Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco Membro do Núcleo de Agroecologia e Campesinato
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Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
TOLEDO, Victor; BARRERA-BASSOLS, Narciso. La memoria biocultural: la importância ecológica de las sabidurías tradicionales. Barcelona: ICARIA, 2008.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N3 – Aprendendo, fazendo, conhecendo