Sevgi Ortaç
Assim como muitas outras cidades, Istambul vive sob forte pressão da especulação imobiliária. Diante dessa ameaça, o coletivo D ürtük contribui para o fortalecimento da agricultura de pequena escala na cidade e em seus arredores. Em meio à atmosfera violenta e sufocante de Istambul, essa iniciativa oferece alimentos produzidos localmente com preços justos aos moradores da cidade, além de atuar em defesa das históricas hortas urbanas.
O coletivo Dürtük nasceu em 2015, como um espaço de convergência entre a luta pela democratização de áreas urbanas e o emergente movimento de soberania alimentar em istambul. dürtük é a sigla para produtores e consumidores em resistência (direnen Üretici tüketi- ci Kolektifi, em turco). Também significa cutucar ou cutucada , expressão que o coletivo considera leve e divertida para motivar uns aos outros a agir. Toda segunda-feira, o coletivo elabora uma lista de hortícolas ofertadas por agricultores locais, estabelece uma tabela de preços justos e compõem uma lista de pedidos de seus membros. Às quintas-feiras, os produtos são levados para um distrito central de Istambul, onde os membros podem buscar suas encomendas e socializar entre si. Essas também são oportunidades para a realização de discussões sobre os assuntos urgentes relativos às hortas, que estão sempre sob a ameaça da expansão de projetos de transformação urbana.
UM TERRENO COMUM EM DEFESA DO DIREITO À CIDADE
Em 2013, protestos eclodiram em toda a Turquia em resposta à violenta repressão oficial às manifestações populares contra planos de urbanização que destruiriam o Parque Taksim Gezi, um dos poucos lugares verdes da cidade. Os protestos reuniram grande diversidade de pessoas e grupos que se opunham ao fechamento de espaços públicos, a projetos deletérios de transformação urbana, à devastação ecológica, bem como à contínua opressão e violência do Estado.
Depois da Resistência de Gezi 1 , o movimento emergente continuou ativo nos bairros, assumindo a forma de debates, protestos, eventos de solidariedade, mercados livres, oficinas, hortas comunitárias e cooperativas alimentares informais. O Dürtük nasceu em meio a esse processo, reunindo diferentes experiências, atores e desejos.
UM AMBIENTE VIOLENTO E SUFOCANTE
É muito difícil, e de fato doloroso, olhar para trás agora e refletir sobre as expectativas, as emoções e os desejos que marcaram aquele momento. É doloroso porque nos últimos anos a opressão e a violência na Turquia atingiram níveis inimagináveis. A guerra na Síria, os atentados do Estado Islâmico (Daesh), o fim do processo de paz na região curda da Turquia pelo Estado e a tentativa de golpe em 2016 geraram uma polarização política em todo o país. Jornalistas, acadêmicos, professores e políticos estão sendo presos, cidades e bairros foram queimados e muitas vidas foram perdidas. Escolas, ruas e praças públicas não têm mais vivacidade. Esperanças, sonhos e até mesmo a mobilidade urbana vêm desaparecendo.
Perseverar com as atividades aparentemente singelas do Dürtük foi significativo na superação desse estado de paralisia. O coletivo não apenas apoiou os produtores, mas também manteve o ânimo de consumidores e cidadãos ativistas na tentativa de criar espaços de solidariedade.
BOSTANS – UMA HERANÇA ALIMENTAR
O Dürtük colabora com pomares e hortas de pequena escala situados no centro de Istambul, conhecidos como bostans , administrados por agricultores profissionais. Eles cultivam legumes, folhosas e outras ervas que podem ser colhidas várias vezes por semana. Os agricultores vendem em mercados livres, restaurantes e mercearias, mas também por meio do coletivo e diretamente do bostan. Seus métodos de cultivo combinam práticas herdadas de várias gerações e novas técnicas.
Embora apenas alguns permaneçam ativos atualmente, os bostans de Istambul historicamente ajudaram a alimentar a cidade. De fato, as pessoas dependiam dessas hortas para sobreviver durante os tempos de guerra e de fome. Hoje eles são considerados uma memória nostálgica irrelevante para a vida urbana. Mas nada poderia estar mais longe da verdade. Nos últimos anos, os bostans arregimentaram pessoas em defesa do patrimônio cultural, do direito à cidade e da agricultura urbana.
AS MURALHAS DE ISTAMBUL: DEFENDENDO E ALIMENTANDO A CIDADE
Um dos produtores com quem trabalhamos é Özkan Ökten. Ele trabalha em um bostan nos fossos do antigo forte de Bizâncio, chamado de Muralhas de Teodósio de Constantinopla, reconhecidas como Patrimônio Mundial da Unesco. Özkan, na faixa dos 40 anos, também dirige uma organização sem fins lucrativos que visa apoiar os antigos e novos bostans de Istambul e garantir condições de trabalho adequadas para os agricultores.
Özkan e cerca de 20 outras famílias ganham a vida cultivando os fossos das muralhas. Trata-se da segunda ou terceira geração de agricultores que migraram para Istambul para ganhar a vida. O desenvolvimento da atividade agrícola nesses fossos está intimamente ligado à história das muralhas, que remonta ao século V. Assim, as muralhas e os bostans juntos representam o grande saber-fazer urbano sobre como defender e alimentar a cidade.
A horticultura continua sendo a atividade mais relevante nos fossos e em torno da zona murada. Embora mantenha a região ativa e produtiva, essa prática é negligenciada tanto como meio de conservar a área quanto como patrimônio cultural. Nos últimos anos, alguns dos bostans mais antigos e dinâmicos, conhecidos como Yedikule Bostanları , foram destruídos pela prefeitura para dar lugar a um parque que levará à gentrificação dos bairros vizinhos.
O BOSTAN DA MESQUITA: AMEAÇAS E RESISTÊNCIA
O bostan da Mesquita Piale Paxá (Piyalepaşa Camii Bostanı, em turco) de Istambul é bastante ativo, mas ainda assim está sob ameaça, já que em 2013 havia um projeto para convertê-lo em um estacionamento. Mehmet e Cemile, um casal com cerca de 60 anos, lutam para manter o bostan funcionando no centro de Istambul. A história do bostan está intimamente relacionada com a da mesquita, tendo sido uma fonte de renda para a mesquita desde o século XVI. Uma improvável aliança de ativistas, advogados, arqueólogos e historiadores se mobilizou para protegê-lo. Os ativistas não só evitaram que o bostan se tornasse um estacionamento, como também conseguiram que o mesmo fosse registrado como um marco histórico patrimonial em 2015.
Esse foi um caso exemplar de como a terra agrícola pode ser reconhecida como patrimônio cultural. Mas o governo municipal e as empresas de construção civil continuam a pressionar Mehmet e Cemile para se mudarem para outro lugar. O mais recente boato é que o bostan será transformado em uma horta que sirva como uma atividade de lazer para o município, da qual se possa obter lucro.
Há outras razões de incerteza quanto ao futuro desse bostan . Mehmet e Cemile são idosos e não têm força suficiente para cultivar toda a terra. Devido aos baixos preços dos produtos agrícolas e ao igualmente baixo status social da agricultura no país, seus filhos não têm interesse em manter a atividade.
SEM RECONHECIMENTO, SEM SEGURANÇA
Ter especuladores ligados a planos de desenvolvimento urbano constantemente batendo à sua porta não é a única preocupação de agricultores como Mehmet e Cemile. Embora os bostans estejam localizados em zonas bem centrais da cidade e sejam cercados por áreas residenciais, os agricultores lutam para obter preços justos pelos seus produtos. O problema é que eles não podem competir com os preços dos alimentos importados e industrializados. Além disso, ainda que os agricultores tenham cultivado a área por gerações, há muita insegurança na posse da terra e eles podem ser despejados a qualquer momento. Como as parcelas não são oficialmente reconhecidas como áreas agrícolas, eles não podem se registrar formalmente como agricultores. Isso significa que não são reconhecidos pelas políticas agrícolas e não têm acesso a programas públicos de seguridade social. A combinação de todas essas condições precárias faz com que os agricultores dos bostans hesitem em fazer investimentos de longo prazo.
CULTIVANDO A ESPERANÇA
Taksim, onde fica a base do coletivo Dürtük, tem sido palco de muitas manifestações e marchas políticas. É um lugar historicamente conturbado. Atualmente, as manifestações são proibidas e um estado de emergência está em vigor desde a tentativa de golpe em 2016. A polícia está em toda parte, o que fez com que muitas pessoas tenham receio de ir a Taksim, comprometendo o aumento do número de encomendas. Não foi possível realizar grandes reuniões no ano passado e também há dificuldades em encontrar voluntários dispostos a dedicar seu tempo às operações e atividades do Dürtük.
Mesmo sem muitos pedidos semanais, os membros do coletivo continuam trabalhando, sempre tentando organizar eventos, piqueniques e participando de mercados solidários para captar novos membros. Tentam assim manter viva a discussão sobre como prosseguir e desenvolver a organização, sobre soberania alimentar e outros temas, como economias alternativas e a adoção do modelo de Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) em diferentes países. O coletivo também se reúne com outras organizações para trocar experiências e ganhar força.
A rotina semanal das reuniões do Dürtük representa um espaço promissor que congrega horticultores, agricultores, consumidores, ativistas e outros cidadãos que se apoiam mutuamente e trocam experiências sobre como lidar com situações de precariedade. O coletivo Dürtük promove, assim, a convergência entre a necessidade de salvar e defender áreas agrícolas e o trabalho de preservar e reproduzir a vida cotidiana na cidade.
1 Após violenta repressão da polícia, um protesto pacífico no centro de Istambul, em 2013, liderado por um grupo de ambientalistas que se manifestavam contra a derrubada de árvores no Parque Taksim Gezi, converteu-se em uma onda de manifestações por todo o país, levando milhões de cidadãos às ruas para se manifestarem contra o governo.
Sevgi Ortaç
membro do coletivo Dürtük, artista visual e pesquisador
[email protected]/ sevgiortac@ gmail.com)
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