Raquel Lunardi, Marcelino de Souza
A década de 1990 marcou um novo momento nos debates sobre desenvolvimento rural. Os enfoques analíticos que até então privilegiavam a modernização da agricultura cederam espaço a abordagens que contemplam também as atividades não-agrícolas como indutoras do desenvolvimento rural. Essas novas possibilidades estão relacionadas com um repertório diversificado de inovações da agricultura familiar que se expressa como reação à crise econômica à qual está cronicamente submetida (Ploeg et al., 2004). Uma dessas estratégias inovadoras é o turismo rural.
O desenvolvimento da atividade turística tem se dado como parte do processo de reestruturação do meio rural brasileiro, especialmente após a década de 1990, como modo de reprodução econômica e social de muitas famílias agricultoras. O turismo vem se constituindo de forma diversa no espaço rural, chegando em algumas regiões a reorientar os rumos do desenvolvimento local. Em outras regiões, apresenta-se como atividade sazonal, de pequena expressão econômica, embora de forte apelo social. Um dos efeitos mais significativos do turismo rural tem sido a ampliação das opções de trabalho, especialmente para as parcelas da população excluídas ou marginalizadas do sistema de produção, como as mulheres e os jovens.
O TURISMO RURAL NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA
A região dos Campos de Cima da Serra, noroeste do estado do Rio Grande do Sul, tem investido no turismo rural como alternativa econômica para a agricultura familiar. Essa atividade se iniciou na região na década de 1990, a partir da iniciativa de famílias dispostas a diversificar suas atividades de renda e do forte incentivo de prefeituras municipais. A região é considerada como um dos principais pontos turísticos do Rio Grande do Sul por possuir belezas naturais exuberantes e pelo clima frio. Dois parques nacionais estão presentes, o dos Aparados da Serra e o da Serra Geral, no interior dos quais está localizado o maior agrupamento de canyons da América Latina e o pico do Monte Negro (ponto mais alto do estado).
As mulheres atuam como agentes centrais na maior parte dos empreendimentos turísticos da região. Nessa região, o envolvimento delas na atividade turística tem várias motivações, entre elas, a necessidade de diversificação das fontes de renda familiar e a busca de atividades que permitam construir maiores níveis de autonomia frente às relações desiguais de gênero, uma das razões mais alegadas.
A similaridade entre as atividades para manter o turismo e os afazeres domésticos leva à interpretação de que o trabalho realizado pelas mulheres no turismo seria equivalente ao trabalho doméstico ampliado. Esse fator também justificaria o envolvimento natural da mulher nesse ramo. Outra interpretação relacionada a essa suposta analogia com a atividade doméstica é que o turismo rural não exigiria elevado grau de qualificação, já que poderia ser desenvolvido com os conhecimentos previamente adquiridos pelas mulheres.
Como consequência dessa realidade, verifica-se o aumento do número de horas de trabalho diário por parte das mulheres, que, além das tarefas tradicionalmente assumidas por elas, passam a desempenhar funções administrativas e de recepção dos turistas. No entanto, a importância delas nem sempre é reconhecida, podendo ocorrer três situações típicas: 1) elas permanecerem sendo consideradas ajudantes, ou seja, como sujeitos socialmente ocultos (assim como costuma ocorrer na produção agrícola); 2) mesmo assumindo integralmente a responsabilidade pela atividade, continuam sendo consideradas dependentes, já que o turismo é frequentemente visto como ocupação complementar; 3) elas assumem o status de empresária do meio rural ou empresária do turismo, quando são reconhecidas como responsáveis pela administração e gestão da atividade turística.
Podemos observar que, mesmo na ocorrência dessa última situação, a hierarquia entre gêneros não desaparece por completo, apesar de a atividade agrícola muitas vezes exercer um papel secundário na provisão de rendas para as famílias. A supremacia masculina permanece da “porteira para fora ”, ou seja, a posição social do homem como chefe e provedor da família ainda se mantém aos olhos dos outros.
O turismo rural trouxe alterações também para a rotina de homens que passaram a ajudar as mulheres. Mas essa ajuda, na maioria dos casos, não ultrapassa a porta da cozinha, já que se restringe a tarefas fora do ambiente familiar, como o trato de animais, o acompanhamento em cavalgadas e trilhas ecológicas e a compra de suprimentos, ou seja, atividades tidas como de domínio público.
Cumpre ressaltar que nem as mulheres nem os homens consideram oneroso o aumento do trabalho provocado pelo turismo. Para elas, o que fazem para os turistas é o que teriam que fazer para suas famílias. Além disso, o envolvimento com o turismo traz benefícios materiais e socioculturais que a agricultura não é capaz de proporcionar. Para eles, ao contrário da pecuária, o turismo é considerado um trabalho limpo e de retorno imediato. Alegam ainda que estar com os turistas significa aprender sempre algo novo: Estamos sempre viajando com eles sem sair de casa, segundo o depoimento de um agricultor.
AS CONQUISTAS
O turismo rural trouxe várias mudanças para o conjunto das famílias e, particularmente, para as mulheres. A valorização econômica do turismo rural na região é significativa, pois em grande parte das propriedades a atividade se consolidou como a principal fonte de renda. Isso não significa que a agricultura deixou de ter sua importância na reprodução econômica e social das famílias. Pelo contrário: os recursos arrecadados com o turismo possibilitaram a melhoria dos sistemas pecuários. E mais: eles contribuem para a educação dos filhos, a manutenção da propriedade, além de propiciar maiores níveis de autonomia financeira para as mulheres e os jovens.
Outra novidade econômica trazida pelo turismo diz respeito à geração de demandas locais por alimentos e por mão-de-obra. O turismo gerou emprego, mesmo que temporário, para a comunidade local. Além dos membros das famílias diretamente envolvidas, parentes e vizinhos puderam se beneficiar com a criação desses postos de trabalho. A aquisição de alimentos produzidos localmente, sobretudo aqueles produzidos diretamente pelas mulheres, tais como hortaliças, pães, bolachas, doces, etc., também foi um fator de aquecimento econômico local. Dessa forma, novas perspectivas econômicas são criadas para a comunidade a partir da diversificação de oportunidades gerada pelo turismo.
Além dos impactos econômicos positivos, outros aspectos importantes vêm sendo percebidos pelas famílias envolvidas no turismo rural. A revalorização do mundo rural e do modo de vida da agricultura familiar é fonte de autoestima para as comunidades. A criação de laços de amizade com os turistas é outro elemento muito destacado pelos envolvidos na atividade. Antes, os momentos de interação com pessoas de outros grupos sociais eram escassos, sobretudo para as mulheres. Esse contato, que poderia incitar um sentimento de perda de privacidade, tem sido encarado como uma oportunidade enriquecedora, de aporte de conhecimento cultural e social. Segundo uma agricultora: Considero uma relação de amizade. Eu vejo assim: cada pessoa que vem, por mais estranha que seja, sai um amigo. E eu vejo que qualquer pessoa, com seus diferentes tipos de comportamento, a gente tá considerando uma amizade em potencial. Nunca senti minha privacidade invadida.
É notório também que o turismo provocou o aumento da jornada de trabalho, especialmente nos finais de semana e nos feriados, que antes eram dedicados ao descanso e recreação das famílias. A maioria das mulheres deixou de realizar alguma atividade de lazer para poder se dedicar ao turismo. No entanto, isso não foi considerado negativo por elas, já que, em contrapartida, conquistaram novas oportunidades para a socialização com a comunidade e fora dela:
“[…] A gente viaja com eles, a parte cultural se desenvolve, o relacionamento, tu consegue abrir horizonte. E esse é o principal objetivo, abrir horizontes que antes tu não tinha, e abrir horizonte é tanto na parte financeira, quanto na parte cultural e na parte de amizade […]”.
A capacitação dos envolvidos foi outro aspecto importante para o sucesso da experiência. Como não dominavam conhecimentos específicos na área de gestão do turismo, as mulheres buscaram aperfeiçoamento por intermédio de cursos de alimentação, recepção e atendimento aos turistas, higiene e organização das pousadas, entre outros.
A falta de informação sobre políticas públicas que poderiam ser aproveitadas no apoio à atividade também deve ser ressaltada na experiência. Essa carência é em parte justificada pela inoperância dos mediadores sociais, sobretudo pela ausência de divulgação e apoio à elaboração de projetos voltados ao fortalecimento de atividades produtivas geridas pelas mulheres, na linha do crédito Pronaf Mulher. De forma geral, são os homens que acessam o Pronaf, mesmo que os recursos sejam destinados ao financiamento de projetos voltados ao turismo. Por outro lado, cabe destacar que foi significativo o acesso a informações e políticas que estimulam a adoção de tecnologias ambientalmente amigáveis. Em todas as propriedades houve maior esclarecimento sobre formas de preservar o meio ambiente (como o acesso à fossa ecológica e à coleta de lixo).
Diante do exposto, pode-se considerar que o turismo rural nessa região se constituiu numa estratégia de reprodução social e econômica para as famílias envolvidas. A experiência revela que a inserção do turismo rural pode ser analisada sob dois ângulos distintos que podem ser considerados complementares: a construção de autonomia socioeconômica da agricultura familiar e a afirmação da posição da mulher no mercado de trabalho.
Raquel Lunardi
bacharel em turismo, doutoranda em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
[email protected]
Marcelino de Souza
doutor em Engenharia Agrícola, professor adjunto do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS
[email protected].
Referências Bibliográficas:
PLOEG, J. D. van der; BOUMA, J.; RIP,A.; RIJKENBERG, F.H.J.;VENTURA,F; WISKERKE, J.S.C. On Regimes, Novelties, Niches and Co-Production. In: PLOEG, J. D. van der; WISKERKE, J.S.C. (Ed.). Seeds of transition. Assen: Van Gorcumm, 2004.
Baixe o artigo completo:
Revista V6N3 – Atrizes do turismo Rural: O trabalho da mulher na atividade turística na região dos Campos de Cima da Serra (RS)