Nelton Antônio Menezes
A competitividade do mercado internacional de alimentos tem estimulado a intensificação dos sistemas de produção animal de grande escala, gerando contrapartidas negativas no que se refere à qualidade nutricional e biológica dos alimentos, aos custos energéticos, sociais e ambientais, ao bem-estar animal e à estabilidade das relações comerciais, freqüentemente expostas a embargos econômicos e sanitários. Foi nesse contexto que a “avicultura industrial ” tornou-se a maior fonte de proteína animal para o homem.
A avicultura brasileira se destaca mundialmente pelo emprego de tecnologias modernas e pelo volume de produção, sendo o estado de Santa Catarina o principal produtor nacional. Organizada em sistema de integração, a cadeia avícola industrial demanda a “parceria” de muitas famílias agricultoras e gera alta dependência de insumos externos às propriedades. Em defesa do “status” sanitário e do aumento de produtividade, esse sistema tem exigido do produtor integrado frequentes investimentos em melhorias tecnológicas: galpões climatizados ou automatizados, por exemplo, e o cumprimento de algumas normas de ordem restritiva, como a proibição da criação de animais de estimação e para consumo doméstico e o “controle ” de visitas entre agricultores.
Apesar do preço popular dos produtos avícolas industriais, o consumidor tem apresentado sinais de crescente rejeição a eles em razão da menor qualidade da carne e dos ovos, percebida no sabor, na consistência e na coloração. Com efeito, se tratam de produtos que apresentam excesso de água e resíduos de antimicrobianos resultantes da extrema artificialização do sistema produtivo. Com exceção do mito da utilização de hormônios na produção de frango de corte, a imagem negativa que o consumidor tem desses produtos é procedente.
AVICULTURA FAMILIAR AGROECOLÓGICA
Mesmo diante das questões assinaladas acima, a avicultura desponta no cenário como alternativa de renda e diversificação de atividades para agricultores familiares excluídos do processo vertical de produção. Quando produzida em bases agroecológicas, a atividade possibilita, direta e indiretamente, maior valorização dos seus produtos, atendendo a uma demanda crescente por alimentos saudáveis, produzidos regionalmente e com respeito ao ambiente e ao bem-estar animal. A avicultura agroecológica representa ainda um importante resgate cultural, caracterizando-se como uma atividade prazerosa e fundamental para a conservação da biodiversidade na pequena propriedade rural. Embora encontrem dificuldades para operar em grandes escalas, os estabelecimentos familiares apresentam requisitos necessários para o desenvolvimento dessa atividade. Tanto é assim que este tem sido o principal segmento responsável pelo abastecimento do crescente mercado de produtos avícolas diferenciados.
Diversas iniciativas de produção e comercialização de frango e ovos, pela agricultura familiar, vêm se estruturando em todo o Brasil. Atualmente, enquanto as normas da produção orgânica ainda estão em fase de regulamentação, apenas os produtos avícolas “tipo caipira/colonial” são oficialmente registrados. Outras denominações regionais, como “natural, diferenciado, biológico, misto, verde e ecológico”, ainda não são reconhecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Assim, a expansão e a consolidação desse mercado dependem da superação de importantes de- safios, além da complexidade inerente ao processamento, legalização e comércio dos alimentos de origem animal. Os principais obstáculos para a viabilização dessa cadeia avícola alternativa são:
- redução dos custos de produção, industrialização e distribuição;
- adequação das agroindústrias de pequeno porte às exigências dos serviços de inspeção estadual e federal;
- falta de fiscalização sobre o cumprimento das normas da Divisão de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa/Mapa) para a produção de frango e ovos “tipo caipira/colonial”;
- falta de fiscalização e/ou normatização sobre os produtos indevidamente registrados (como o caso das aves de descarte das granjas produtoras de ovos e de reprodução);
- desconhecimento do consumidor sobre as particularidades dos diferentes produtos, como normas de criação, características organolépticas (sabor, aroma, cor e consistência), qualidade nutricional e benefícios sociais e ambientais.
ALGUMAS INICIATIVAS EM SANTA CATARINA
Levantamentos realizados em Santa Catarina por pesquisadores e extensionistas da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural (Epagri), junto a produtores e consumidores de diversos municípios, priorizaram as seguintes necessidades de pesquisa em avicultura agroecológica para corte e postura:
- avaliação de desempenho de linhagens “tipo caipira” comercializadas no estado;
- melhor aproveitamento de pastagens, piquetes e áreas não-agricultáveis;
- viabilidade para instalações de baixo custo;
- alimentação alternativa, reduzindo custos e a dependência de ração;
- utilização de fitoterapia e homeopatia no manejo sanitário;
- resgate e melhoramento de matrizes “crioulas” e produção de pintos para consumo familiar;
- integração com outras criações e/ou culturas.
A Epagri, a partir do seu projeto Avicultura Agroecológica, desenvolve atividades de pesquisa e extensão no sentido de contribuir com o atendimento dessas demandas. Os estudos se concentram na Unidade de Pesquisa da Estação Experimental de Campos Novos-SC, mas também são realizados em parceria com produtores individuais ou em grupos, tanto para produção em escala comercial como para o consumo familiar.
Duas importantes ações de fomento e pesquisa em produção agroecológica de frango e ovos têm mostrado resultados muito promissores. A primeira é a realizada na Cooperativa de Produção Agropecuária do Assenta- mento 30 de Outubro (Copagro) e a segunda no Assentamento Sepé Tiarajú, ambos no município de Campos No- vos, maior produtor estadual de grãos, situado no planalto sul catarinense.
A EXPERIÊNCIA DA COPAGRO
O Assentamento 30 de Outubro, localizado às margens da BR-282, é formado por 86 famílias, divididas em três comunidades, que ocupam 511 ha. Cinqüenta e nove famílias trabalham de forma individual (em lotes de 17 ha), enquanto 27 outras trabalham coletivamente. Destas, 17 decidiram fundar a Cooperativa. A principal fonte de renda dos produtores “individuais” é a comercialização de grãos e leite. Os produtores cooperados canalizam a venda de seus produtos (frango colonial, hortaliças, queijos e mel) em dois pontos de venda: a feira municipal da agricultura familiar (duas vezes por semana) e um quiosque na beira da rodovia.
Nos últimos cinco anos, a Copagro têm evoluído na produção e comercialização de frangos, criados em sistema semi-extensivo e conforme as normas do Mapa. Produz uma média de quatro lotes de 600 frangos por ano, sendo que 30% é para consumo familiar e o restante é comercializado no município. Durante esse período, o grupo adquiriu bastante experiência. Já criou diversas linhagens comerciais “tipo caipira ” e híbridos industriais. Também começou a empregar diferentes modelos de galpões e piquetes, um sistema de aproveitamento de subprodutos (horta e laticínios) e o preparo de ração sem aditivo de antimicrobianos (utilizando o núcleo vitamínico-mineral “natural”).
Eventualmente, as aves são vendidas vivas diretamente para os consumidores, ou abatidas em um pequeno frigorífico particular com inspeção estadual, no município de Luzerna. No entanto, devido aos altos custos do abate terceirizado, as aves acabaram sendo abatidas e comercializadas informalmente.
Com o objetivo de legalizar esse processo e atender à crescente demanda de frango colonial, a Copagro está em fase de organização técnica e gerencial para viabilizar economicamente a produção, o processamento e a comercialização. Para tanto, valendo-se de recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e da Prefeitura Municipal de Campos Novos, construiu um abatedouro com capacidade inicial de 500 aves por dia. Todo esse processo organizacional tem sido desenvolvido de forma participativa, com o apoio da Epagri, da Prefeitura e da equipe técnica da Cooperativa de Trabalhadores da Reforma Agrária (Coptrasc).
A primeira meta é estruturar-se regionalmente, com uma produção mensal de quatro toneladas de frango criado em consonância com as normas de produção do “frango caipira/colonial”, explorando o potencial e aceitação da marca “Terra Viva” (representando diversos produtos da Reforma Agrária de Santa Catarina). Após a estabilidade nesse mercado, e com a melhoria das capacidades gerenciais e organizativas das cadeias produtivas e de processamento, o objetivo é atingir o mercado da capital catarinense, onde existe um excelente canal de venda, a Feira dos Produtos da Reforma Agrária.
A EXPERIÊNCIA NO ASSENTAMENTO SEPÉ TIARAJÚ
No Assentamento Sepé Tiarajú, os agricultores trabalham coletivamente na produção agroecológica de hortaliças, grãos, leite em pastoreio rotacionado (em processo de conversão), suínos para consumo e também em sistema de integração convencional, este na produção de biogás. O trabalho visa o abastecimento de 20 famílias com carne de frango e ovos (40 aves e 70 dúzias de ovos/ mês).
Há dois anos foi iniciada a reestruturação da criação avícola, priorizando melhorias das condições higiênico-sanitárias, organizando manejo de piquetes, separando aves por idade e espécie e investindo na produção de pintos em incubadora artificial de pequeno porte. As matrizes e os reprodutores são selecionados do próprio plantel de híbridos comerciais “tipo colonial”, comprados uma vez ao ano para o abastecimento do sistema. A utilização de plantas para prevenção e controle de algumas enfermidades é rotina e tem se mostrado bastante eficiente. Verificou-se, por exemplo, a redução de cerca de 70% na infestação de piolhos com o uso do alho (Allium sativum) na água, e da erva-de-santa-maria (Chenopodium ambrosioides), colocada na cama e ninhos.
A alimentação das aves é assegurada com a produção local de milho e de hortaliças orgânicos. Apenas o farelo de soja e o núcleo vitamínico-mineral natural são adquiridos no mercado. Apesar de produzirem soja “orgânica”, o processo térmico “caseiro” (for- no a gás ou a lenha) para desnaturação dos fatores anti-nutricionais é muito instável, comprometendo os níveis protéicos da alimentação, principalmente das aves jovens.
O grupo do Sepé nunca demonstrou interesse em produzir frango e ovos com objetivos comerciais, mas possui viabilidade técnica para tanto. Esse potencial poderá ser explorado após a estruturação de um projeto de parceria que está iniciando com a Copagro.
Riscos para o avanço da atividade
O risco iminente de introdução do vírus da influenza aviária no país (entre outras enfermidades, como a Newcastle) pode comprometer o status sanitário da avicultura e, portanto, provoca um grande questionamento: qual é o impacto potencial na produção agroecológica que pode ser causado pelas medidas que vêm sendo propostas pelos setores industrial e de vigilância sanitária?
É fundamental que todos os segmentos (produtores, defesa sanitária, instituições de pesquisa e extensão – governamentais ou não –, indústrias e consumi- dores) participem efetivamente dessa discussão, para que o Plano Nacional de Sanidade Avícola/Mapa não desconsidere esse importante setor produtivo em emergência no país. A produção de frangos de corte e ovos agroecológicos em escala comercial, ou para o auto-consumo das famílias, deve ser fomentada e administrada com seriedade, respeitando principalmente sua viabilidade econômica e os preceitos de biossegurança, visando a preservação do equilíbrio ambiental, a sanidade avícola e a qualidade de vida da família rural.
Nelton Antônio Menezes:
médico veterinário, Msc e pesquisador da Estação Experimental da Epagri Campos Novos/SC
[email protected] – (49) 3541.0748
Baixe o artigo completo:
Revista V2N4 – Avicultura agroecológica no planalto sul catarinense