Flavio Luiz Valente
Movimentos sociais e organizações da sociedade civil enviaram uma mensagem contundente para os governos de todo o mundo durante a segunda conferência internacional sobre Nutrição (CIN2), realizada em Roma, entre os dias 19 e 21 de novembro de 2014. Durante os três dias que antecederam a conferência, cerca de 200 representantes de todos os setores sociais se reuniram para preparar uma posição conjunta da sociedade civil que foi apresentada à plenária final da conferência. Este texto traz um breve relato do que aconteceu e do que foi dito.
Representantes da agricultura familiar, de comunidades pesqueiras e pastoris, de consumidores e pobres urbanos, das mulheres, dos jovens, dos povos indígenas e dos trabalha- dores rurais se uniram para compartilhar seus valores e suas aspirações. Uniram-se para construir uma visão comum sobre como erradicar a má nutrição em todas as suas expressões, assim como para pressionar governos e organizações intergovernamentais a prestarem conta a respeito de suas obrigações e compromissos.
A declaração conjunta apresentada aos governos de todo o mundo começa afirmando que É inaceitável que, em um mundo de abundância, mais de 800 milhões de irmãos e irmãs vão para a cama com fome todas as noites e mais de 500 milhões sejam obesos e obesas. (…) Esta situação injusta fez com que milhares de crianças tenham morrido desde que esta Conferência começou. Estes problemas deveriam ter sido resolvidos há muito tempo.
As conclusões das negociações oficiais da CIN2 são promissoras, em especial as voltadas à erradicação da má nutrição em todas as suas formas, à ênfase na análise do ciclo de vida dos alimentos e à consequente necessidade de reestruturação do sistema agroalimentar. Tais conclusões são bem-vindas, mas são insuficientes para enfrentar a magnitude do desafio da má nutrição, sobretudo ao considerar que os documentos finais não prestam a devida atenção às causas do problema.
QUESTÕES VITAIS IGNORADAS
Algumas dessas causas foram tratadas de forma negligente ou foram efetivamente varridas para debaixo do tapete proverbial. Uma das questões vitais é o impacto negativo cada vez maior de iniciativas predatórias do setor privado e das corporações transnacionais, especialmente através da grilagem de terras, mas também por meio da usurpação dos oceanos e lagos, das sementes e dos recursos genéticos nativos e dos bens culturais e sociais.
Outra questão que tem sido ocultada está relacionada aos graves impactos negativos causados pelos sistemas agroalimentares dominantes que degradam e contaminam nosso solo e água, acidificam o oceano, destroem a biodiversidade e a diversidade da dieta, além de agravar o fenômeno das mudanças climáticas globais. O marketing agressivo do setor de alimentos altamente processados é a principal causa da epidemia de obesidade, assim como a propaganda de substitutos do leite materno desvaloriza todos os benefícios do aleitamento materno à saúde. Por fim, nas conclusões da declaração oficial, não consta nenhuma menção à necessidade de acabar com a violência contra as mulheres e as violações de seus direitos, incluindo o casamento infantil e a gravidez indesejada na adolescência, que continuam a ser uma das mais importantes causas da desnutrição entre crianças e mulheres.
CONSIDERANDO AS CAUSAS DO PROBLEMA
A declaração da sociedade civil enfatiza todas essas questões negligenciadas no discurso oficial, afirmando que a nutrição adequada só é possível no contexto de sistemas alimentares locais vivos e dinâmicos, com bases agroecológicas, sustentáveis e adequados social e culturalmente. Estamos convencidos de que a soberania alimentar é um pré-requisito fundamental para garantir a segurança alimentar e nutricional e para realizar o direito humano à alimentação e nutrição adequadas. Nesse contexto, é necessário reafirmar a centralidade dos(as) produtores(as) de base familiar, sendo estes(as) os sujeitos chave e os condutores dos sistemas alimentares locais e os maiores investidores na agricultura. A garantia do acesso e controle dos recursos, tais como terra, água e recursos aquáticos, vias de mobilidade adequadas, a sementes crioulas, a raças nativas e todos os demais recursos genéticos locais, recursos técnicos e financeiros, bem como a proteção social, em particular para as mulheres, são todos fatores essenciais para a garantia de uma alimentação diversificada e nutrição adequada.
A declaração também reafirma a nossa compreensão de que não se pode desassociar os alimentos da nutrição: A alimentação é a expressão de valores, culturas, relações sociais e autodeterminação dos povos, e o ato de alimentar-se a si e aos outros expressa nossa soberania e empoderamento. Quando nos nutrimos e nos alimentamos com nossas famílias, amigos e comunidade, reafirmamos as nossas identidades culturais, a interdependência com a natureza, o controle de nossa trajetória de vida e a dignidade humana. Compreender o desafio da má nutrição em todas as suas formas de expressão, portanto, requer uma análise holística e multidisciplinar, que combina as perspectivas política e técnica.
GARANTIA DE DIREITOS
Ao mesmo tempo, exigimos que o marco referencial de qualquer política, programa e plano de ação sobre alimentação, nutrição e outros assuntos relacionados deve partir da com- preensão inequívoca de que os direitos à alimentação e nutrição adequadas, à saúde e água potável são direitos humanos fundamentais. Exigimos também que na declaração oficial da CIN2 constasse uma cláusula destinada a proibir o uso dos alimentos como arma política e econômica.
No entanto, não foi simples incorporar esses aspectos no documento oficial. Alguns governos poderosos paralisaram as discussões com o objetivo de retirar do texto as referências ao direito humano à alimentação e nutrição adequadas. Com isso, conseguiram enfraquecer significativamente a declaração e o Marco de Ação da CIN2. Mas alguns governos latino-americanos, asiáticos e africanos, em conjunto com alguns europeus, juntaram forças para assegurar a manutenção de parte dessas propostas. Essa união de forças garantiu que o direito humano à alimentação adequada fosse mencionado em pelo menos um parágrafo, mas não com suficiente realce para que esse conceito fosse inseri- do como marco referencial dentro do qual a nutrição deve ser tratada, sendo o atual modelo agrícola reconhecido como um dos principais obstáculos para a garantia desse direito.
Alguns governos queriam retirar a governança global da segurança alimentar e nutricional do âmbito do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, Embora este espaço seja a plataforma intergovernamental mais inclusiva na atualidade. No entanto, a intenção desses governos de lançar uma rede de governança separada da ONU poucos dias antes da CIN2 foi trazida à tona pela sociedade civil e, consequentemente, abortada sob pressão dos Estados-Membros.
Nos corredores de Roma, ouvimos que vários governos de todos os continentes estão defendendo o mecanismo de governança para a alimentação e nutrição proposto pela sociedade civil. Na verdade, nossa proposta coloca o Comitê de Segurança Alimentar Mundial no centro da promoção de políticas de alimentação e nutrição coerentes com a efetivação dos direitos humanos para todos. Também instamos os Estados-Membros a solicitarem ao Conselho de Direitos Humanos que assegure que o acompanhamento dos desdobramentos da CIN2 seja coerente com o respeito, a proteção e a realização do direito humano à alimentação e nutrição adequadas e aos direitos a ele relacionados.
Flavio Luiz Valente
Secretário-Geral da Fian Internacional, rede internacional que atua na defesa do direito à alimentação
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Revista V11N4 – Basta de fome e má nutrição!