Evandro Vasconcelos Holanda Júnior
Historicamente, no semi-árido brasileiro, a combinação de policultivos e criação animal contribuiu para a produção e a reprodução social da agricultura familiar. A redução da renda proveniente da agricultura e das áreas de pastoreio coletivo e a implantação de monoculturas de palma forrageira (Opuntia fícus-indica Mill) e capim buffel (Cenchrus sp.) geraram processos de degradação dos solos e dos recursos forrageiros da caatinga, estabelecendo um círculo vicioso de insustentabilidade ambiental, econômica, social e política.
Para contribuir com o enfrentamento dessa realidade, a Embrapa Semi-árido, em Petrolina (PE), deu início a um projeto de pesquisa e desenvolvimento de um sistema tecnológico e de uma cadeia produtiva piloto para a criação e comercialização do “Cabrito Ecológico da Caatinga”. A iniciativa visa promover a economia do sistema familiar com base no uso sustentado dos recursos naturais, na conservação da riqueza cultural das comunidades locais e no aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos consumidos pela população do sertão baiano e pernambucano do São Francisco.
REFERÊNCIAS PARA A PRODUÇÃO DO “CABRITO ECOLÓGICO DA CAATINGA”
A criação de caprinos é uma alternativa produtiva ajustada à agricultura familiar do semi-árido do Nordeste brasileiro. Além de se adequar às condições ambientais e socioculturais da região, não exige grandes investimentos para ser estabelecida e permite a geração segura de renda mesmo quando praticada em pequena escala, já que oferece produtos cada vez mais valorizados nos mercados. Para tirar partido dessas potencialidades, os sistemas inovadores de produção de caprinos devem prezar pela biodiversidade e saber aproveitar os espaços produtivos nas propriedades de forma a aumentar a estabilidade e a resistência dos agroecossistemas e minimizar os impactos dos períodos de seca.
O projeto original previa a implementação de um modelo de produção orgânica de caprinos no Campo Experimental da Embrapa Semi-árido. Instalado no início de 2003, esse modelo reunia práticas já adotadas pelos produtores e tecnologias geradas pelo Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária. Com essa combinação, pretendia-se estabelecer um sistema inovador que estivesse ajustado às condições socioeconômicas e agrícolas da maioria dos agricultores da região. Embora a reprodução da realidade dos agricultores seja uma tarefa impossível em uma estação experimental, o modelo permitiu gerar referências técnicas para a produção agroecológica de caprinos no semi-árido. Entre outros fatores, demonstrou potencial para aumentar de forma considerável a produção de caprinos pelos agricultores familiares, já que prepara animais para a venda a uma taxa anual de 1,43 cabritos por matriz exposta contra os 0,12 cabritos por matriz exposta nos sistemas tradicionais da região.
DE UNIDADES DE VALIDAÇÃO A ESPAÇOS DE DESENVOLVIMENTO PARTICIPATIVO DE TECNOLOGIAS
Além da unidade instalada na área experimental da Embrapa, o projeto previa a implantação de duas unidades de validação em propriedades da região. A escolha dos locais para a instalação dessas unidades foi realizada juntamente com as organizações de produtores e contou com apoio do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA). Corroborando com Hecht (2002), as disparidades entre as condições físicas e socioeconômicas da estação experimental e as das famílias agricultoras inviabilizaram a reprodução integral do modelo nas unidades produtivas selecionadas.
Diante dessa constatação, foram realizados ajustes metodológicos no projeto, com o objetivo de incrementar a efetiva participação dos agricultores na análise da realidade, na seleção das alternativas tecnológicas, na execução das ações, na construção de novos conhecimentos e na disseminação das inovações. Assim, as unidades de validação passaram a representar espaços físicos para o desenvolvimento participativo de tecnologias agroecológicas, propiciando a apropriação das tecnologias pelos produtores, a caracterização funcional dos sistemas de produção, a validação técnico-econômica e social das tecnologias e o registro da evolução dos sistemas de produção.
Antes da implantação dessas unidades, foram realizadas visitas técnicas e ministrados cursos sobre diversos temas: tecnologias para o aproveitamento sustentável dos recursos naturais da caatinga; reserva estratégica de forrageiras tolerantes à seca; conservação de forragens; conservação e manejo de solos; e uso de fitoterápicos, de produtos homeopáticos e de métodos e práticas ecológicas no tratamento e prevenção das doenças dos animais, assim como no manejo geral do rebanho.
Três aspectos puderam ser percebidos logo no primeiro ano da adoção dessa metodologia. Em primeiro lugar, a revalorização, por parte dos produtores, das forrageiras nativas da caatinga, o que tem contribuído para o aproveitamento racional desses recursos e, por conseguinte, para sua preservação. Nota-se também o efeito dessa prática sobre o aumento do estoque forrageiro nas propriedades. Finalmente, ressalta-se uma maior confiança dos produtores quanto à eficiência da fitoterapia e da homeopatia para controle das verminoses.
PRÓXIMOS PASSOS
O processo de desenvolvimento participativo de tecnologias agroecológicas, que se iniciou em 2004 em duas unidades produtivas de Pernambuco, será ampliado, em 2006, para outros estados do Nordeste. Isso permitirá a instalação de uma rede de referências e de acúmulo de experiências sobre a criação agroecológica de caprinos no semi-árido brasileiro.
Até o momento, as experiências acumuladas demonstram que as múltiplas e complexas realidades dos sistemas de produção do semi-árido exigem inovações tecnológicas que privilegiem a diversificação produtiva e a complementaridade das criações animais e dos cultivos, bem como promovam a revalorização da biodiversidade como instrumento para a construção da sustentabilidade ambiental, social, econômica, cultural e política. São esses caminhos que esperamos seguir…
Evandro Vasconcelos Holanda Júnior:
pesquisador da Embrapa – Sistema de Produção Animal
[email protected] ou [email protected]
Referência:
HECHT, S. B. A evolução do pensamento agroecológico. In: ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. Guaíba: Editora Agropecuária, Rio de Janeiro: AS-PTA, 2002. p. 47-51.
Baixe o artigo completo:
Revista V2N4 – Cabrito ecológico da caatinga: um projeto em movimento