Sérgio Francisco Barchet, Luís Bohn, Telma Naiara Pereira Valim Ribeiro e Giovane Ronaldo Rigon Vielmo
A Emater/RS tem incentivado, orientado e/ou acompanhado diversas experiências de resgate e disseminação de sementes crioulas baseadas na ação dos guardiões de sementes. Este artigo apresenta aquelas que vêm sendo desenvolvidas nos municípios de Ibarama e Mampituba. Ambas as iniciativas inovam metodologica- mente e alcançam resultados expressivos. Revelam, entre outros aspectos, a necessidade de ajustes locais aos métodos de promoção de trabalhos dessa natureza, sobretudo ao considerar as diversidades socioambientais dos contextos em que são desenvolvidos.
As duas experiências foram apresentadas e premiadas no Concurso Nacional de Sistematização de Experiências sobre Agroecologia e Agriculturas Alternativas, promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2004.
CONTEXTOS
O município de Mampituba está localizado na microrregião de Torres, no litoral norte do Rio Grande do Sul, numa região de mata atlântica que se diferencia do resto dos sistemas naturais do estado por estar abrigada dos ventos frios do inverno pela Serra do Mar. Os agricultores familiares ocupam as encostas, que possuem declividade média de 20%, e os vales das microbacias. As propriedades desses agricultores têm, como padrão geral de distribuição, 32% da área destinada para o cultivo da banana, 21% para potreiros e mais de 12% para as plantações de arroz. As demais áreas possuem mata nativa, capoeira, reflorestamento e culturas como milho, aipim, cana-de-açúcar, fumo, frutíferas, feijão, hortigranjeiros, açudes, tomate, maracujá, batata-doce e café.
A composição das famílias rurais do município caracteriza-se pela presença significativa de jovens que manifestam interesse em permanecer no meio rural. São grupos com muitos elos familiares, que herdaram da tradição cultural dos índios carijós que habitavam a região a prática de cultivo diversificado, que abriga nos sistemas de produção várias espécies nativas.
O município de Ibarama situa-se na microrregião Centro-Serra, no Vale do Rio Pardo, e tem sua economia baseada na agropecuária. Possui 197,7 km² e uma população total de 4.454 pessoas, das quais 3.498 estão no meio rural.
O tamanho médio das propriedades é de 23 hectares, nas quais predominam as culturas de milho, fumo, feijão, fruticultura e hortigranjeiros, produzidas por agricultores familiares. No caso do milho, a área total plantada é de 3,5 mil hectares, cultivados em cerca de mil estabelecimentos rurais. A área utilizada com sementes crioulas abrange, atualmente, em torno de 1,4 mil hectares que são cultivados por aproximadamente 650 famílias.
O CÂMBIO DE SEMENTES EM MAMPITUBA
A metodologia do câmbio de sementes vem sendo colocada em prática em Mampituba desde 2000, quando a Emater/RS promoveu um concurso sobre as hortas domésticas envolvendo participantes dos Clubes de Mães. Essa é uma iniciativa voltada para a identificação das práticas tradicionais nas comunidades, habituadas a cultivar, se alimentar e intercambiar sementes com pessoas do seu círculo de conveniência.
Desde então os trabalhos vêm sendo desenvolvidos em parceria com a Prefeitura Municipal, o Conselho Municipal de Clube de Mães (que articula 10 Clubes de Mães) e 33 grupos de vizinhança articulados pelo Movi- mento dos Pequenos Agricultores (MPA). Essa iniciativa desenvolve-se como parte do Projeto Alimentação, que tem como objetivo a promoção da segurança alimentar e da produção agroindustrial, tendo como princípio o fato de que a alimentação equilibrada, rica e diversificada é a base para a vida saudável.
O câmbio de sementes consiste na troca de plantas alimentícias cultivadas pelas famílias envolvidas. As práticas adotadas são: registro das pessoas, designadas como guardiões, e das sementes, mudas ou tubérculos das espécies cultivadas; coleta, registro e organização das informações sobre o cultivo dessas plantas, o consumo alimentar, a forma de preparo, bem como as formas de armazenamento; e desenvolvimento de atividades que facilitem as trocas de experiências e das plantas e sementes entre as famílias. As ações são realizadas diretamente nas hortas domésticas, pomares e roças.
O processo tem se mostrado eficaz no sentido de preservar e multiplicar grande diversidade de espécies cultivadas e suas variedades, além de mobilizar um número expressivo de famílias agricultoras. Até o momento, estão envolvidas 172 famílias de 15 comunidades que resgataram e vêm multiplicando cerca de 170 espécies.
Associado ao processo de conservação da agrobiodiversidade, esse trabalho tem promovido a diversificação da alimentação das famílias, com o aumento considerável no consumo dessas espécies resgatadas. A intensificação dos intercâmbios permite também que o agricultor não seja induzido à prática da monocultura, que traz perdas irreparáveis à biodiversidade, à cultura local e à segurança alimentar e nutricional das famílias.
As trocas de informações entre os agricultores e destes com os técnicos criaram as condições para a realização de um diagnóstico sobre a produção de alimentos e as formas como são consumidos pelas famílias. O diagnóstico identificou que muitos agricultores preservam hábitos antigos, tais como o cultivo segundo os mesmos manejos empregados pelos seus antepassados de espécies e/ou variedades locais, distintas daquelas encontradas em lojas agropecuárias, e que permanecem sendo utilizadas em seus cardápios alimentares.
A coleta e distribuição de sementes e tubérculos entre as participantes do Concurso de Hortas Domésticas, realizado em 2001, motivaram a elaboração da lista dos guardiões e a organização da coleção de sementes no município. Outras atividades foram sendo desencadeadas a partir desse processo, tais como as exposições das sementes e dos alimentos resgatados nas hortas domésticas na Festa do Colono, realizada na comunidade de Costãozinho, e na Feira da Cidadania, onde ocorreu a distribuição de mudas e sementes. Esse trabalho foi apresentado na assembléia do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), na comunidade do Rio de Dentro.
Em março de 2002, deu-se início à restituição e registro das sementes trocadas. Cada agricultor que levou seus punhados de sementes para cultivar em suas propriedades fez seu inço, separando uma parte das sementes produzidas para realimentar o processo de câmbio, ao disponibilizá-las a outros interessados. São três os espaços principais onde esses câmbios ocorrem: no próprio círculo de convivência dos participantes, da forma como a troca tradicionalmente se dá e, por essa razão, foi a modalidade mais incentivada e praticada; nos encontros e nos Clubes de Mães; e no escritório municipal da Emater/RS, onde se faz o controle do fluxo, o que permite o registro de dados para definição de indicadores, acompanhamento e avaliações do trabalho realizado. Essa combinação de estratégias tem permitido a constituição de estoques de sementes nas famílias guardiãs e no escritório municipal da Emater/RS.
A continuidade do Concurso de Hortas Domésticas, que desde 2002 passaram ser denominadas hortões, foi um fator fundamental na manutenção do processo. A fase de inscrições dos concorrentes, a distribuição de material informativo, a troca de informações e mudas nas reuniões dos Clubes de Mães e as visitas aos hortões para avaliação integram o conjunto de atividades voltadas para incentivar o câmbio de sementes.
Para atender às necessidades e preferências de cultivo das famílias participantes dos concursos, a Emater/ RS monta e distribui kits com as sementes das espécies e variedades estocadas. É por meio desse mecanismo que vem sendo garantida a multiplicação de algumas espécies em risco de extinção na região.
A irradiação e o amadurecimento do trabalho levaram os participantes a repensar a estratégia utilizada e a incorporar novas práticas, tais como:
- A identificação das misturas de feijões coloridos adotadas nos plantios. Algumas comunidades e famílias empregam misturas típicas, a exemplo da comunidade do Alto Rio de Dentro, que possui variedades de feijões com grãos pequenos e que apresentam pelo menos cinco cores diferentes. Embora a variedade chiquinha seja a menos empregada nas misturas, ela exerce um papel estratégico por ser a que melhor produz em situação de estiagem.
- A sistematização de receitas e informações de origem popular e acadêmica, como forma de aprofundamento dos conhecimentos sobre o uso alimentar de plantas utilizadas tradicionalmente.
- A organização das receitas, informações nutricionais, botânicas e culturais das plantas no formato de livreto distribuído nos Clubes de Mães, nas entidades municipais e em meio aos guardiões das sementes.
As 15 comunidades diretamente envolvidas no câmbio de sementes mantêm e conservam 170 variedades de diferentes espécies cultivadas, com destaque para as de feijão (51), milho (19) e cucurbitáceas (31). As famílias que participam dessas ações têm aumentado seus níveis de autonomia tecnológica ao prescindirem da aquisição anual de sementes para manter sua produção.
Cumpre assinalar que a participação efetiva dos agricultores durante a orientação e condução da iniciativa é que a torna um processo emancipatório. Esse trabalho contribuiu para que o volume da produção alimentar consumida localmente tenha aumentado significativamente, fazendo com que o município passasse de importador a exportador de alimentos. Além disso, sendo um dos municípios mais pobres do estado, o trabalho teve importante papel na queda dos níveis desnutrição e de mortalidade infantil. Entre outras evidências desses impactos positivos, destaca-se a redução em 70% dos atendimentos no posto de saúde local. Essas foram as razões pelas quais a experiência foi apresentada como referência nos debates da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em julho de 2007.
GUARDIÕES DAS SEMENTES NO RESGATE DO MILHO CRIOULO EM IBARAMA
As ações em Ibarama começaram em 1998, com a identificação de agricultores que mantinham o uso de sementes de milho crioulo no município. Com base nesse primeiro núcleo de agricultores, deu-se início a um processo de seleção e multiplicação de sementes em dez comunidades rurais. Essa iniciativa foi conduzida de forma a favorecer os próprios agricultores a atuarem como difusores e multiplicadores desses materiais junto aos seus vizinhos.
Em 2002, com o crescimento do trabalho, foi organizado o Dia da Troca de Sementes Crioulas. Nessa ocasião os agricultores levaram suas sementes e efetuaram a troca entre eles e a venda direta aos participantes que tinham interesse em semear variedades de milho crioulo. Também ficou acertado que o evento passaria a ocorrer todos os anos, sempre no mês de agosto.
Em sua quinta edição, em 2006, promoveu-se um amplo debate com a participação de diversas entidades que desenvolvem ações e pesquisas orientadas ao uso e preservação de sementes crioulas. Nos depoimentos de pesquisadores e extensionistas rurais, foram expostas as atividades que atualmente são executadas para proteger, preservar e multiplicar o patrimônio genético local e regional. Nessa oportunidade, contamos com as presenças de representantes da Embrapa Clima Temperado, do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), de Sindicatos dos Trabalha- dores Rurais (STRs), de Secretarias Municipais de Agricultura, entre outras.
Vale ressaltar que os depoimentos dos guardiões das sementes no evento foram de grande importância nos debates, na medida em que eles reafirmaram seus papéis na arte de preservar a biodiversidade agrícola, assim como deram o testemunho sobre as vantagens da manutenção De fato, o emprego dessas sementes crioulas tem possibilitado aos agricultores familiares a redução dos custos das lavouras, a diminuição significativa do uso de agro- químicos e o aumento da renda, por meio da comercialização de sementes para outros agricultores e para a rede de comércio local e regional, que também passou a oferecer o insumo.
Com o envolvimento de 75 famílias rurais, foi constituído o grupo de Guardiões das Sementes Crioulas do município. Esse grupo é responsável pela gestão do banco de sementes, com 23 cultivares de milho crioulo. Com essa estratégia, o emprego de sementes de milho híbrido utilizado no município caiu de mais de 90% – cuja totalidade é produzida fora de Ibarama – para menos de 50% do volume total.
A sensibilização dos agricultores sobre a importância do milho crioulo para os sistemas agroecológicos de produção foi um dos elementos que mais deu consistência à iniciativa no município e aglutinou os grupos em torno a esse trabalho. Além disso, os agricultores participaram de intercâmbios técnicos com os extensionistas rurais e assim aperfeiçoaram seus processos de produção de sementes de milho.
Além de atuar no apoio à organização dos grupos dos agricultores, o STR colabora na comercialização das sementes e disponibiliza espaço físico em sua sede para armazenamento do material destinado à venda. A Embrapa Clima Temperado tem contribuído com a realização de ensaios de cultivares que contemplam a diversidade dos materiais resgatados, bem como dando apoio técnico aos eventos. A Prefeitura Municipal, por meio da Secretaria da Agricultura, auxilia a Emater/RS nas visitas aos agricultores, disponibiliza local para a realização dos Dias da Troca e colabora no processo de identificação de novos agricultores que preservam cultivares de milho crioulo.
Em 2006, Ibarama também recebeu a primeira Festa Estadual do Milho Crioulo, atividade que foi incluída no calendário oficial de eventos do município e do estado do Rio Grande do Sul. Desde 2007, o Dia da Troca passou a ser descentralizado, devendo acontecer em distintos municípios da região Centro-Serra, como estratégia para promover a expansão horizontal e obter maior divulgação da experiência que vem sendo conduzida pelos agricultores, em parceria com as entidades e instituições locais.
Sérgio Francisco Barchet, Luís Bohn e Telma Naiara Pereira Valim Ribeiro
técnicos de campo da Emater/RS, Mampituba
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Giovane Vielmo
extensionista rural, chefe do escritório municipal da Emater/RS, Ibarama
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Baixe o artigo completo:
Revista V4N3 – Câmbio de sementes e seus guardiões: experiências de conservação da agrobiodiversidade em dois municípios do Rio Grande do Sul