Sílvio Gomes de Almeida, Paulo Petersen, Adriana Galvão Freire e Luciano Silveira
Agreste da Paraíba é uma região ambientalmente heterogênea marcada por diferentes graus de semi-aridez, instabilidade climática e longos períodos de seca. Essas características ambientais incidem diretamente na composição de diversificados sistemas de produção que combinam policulturas com criações.
Embora a região apresente um predomínio quantitativo de unidades familiares, que correspondem a 95% dos estabelecimentos rurais (ou aproximadamente 14 mil unidades), elas ocupam somente 52% do território (IBGE: Censo 95/96). Com pouca disponibilidade de terra, as famílias são levadas a intensificar o uso do solo e da vegetação, o que gera uma incapacidade de regeneração da fertilidade do ecossistema, alimentando, dessa forma, um círculo vicioso de insustentabilidade ambiental, econômica e social. Do total das unidades familiares presentes, 61% são consideradas como “quase sem renda” (IBGE, 1995), o que define um universo significativo de muita pobreza e exclusão social.
Desde 1993, a AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa mantém um programa voltado à promoção do desenvolvimento rural no Agreste da Paraíba em estreita articulação com organizações locais da agricultura familiar. O programa centra suas ações no estímulo à geração, adaptação e difusão de inovações técnicas e sócio-organizativas voltadas para a conversão agroecológica dos sistemas de produção. A hipótese que orienta o programa é a de que a superação do círculo vicioso de pobreza passa pela conversão agroecológica das propriedades de forma a permitir a conservação da base física e biológica dos ecossistemas, bem como o incremento da renda.
As ações do programa, que inicialmente atingiam poucas comunidades em três municípios, abrangem atualmente o conjunto de 16 municípios envolvendo 5 mil famílias agricultoras. Embora seja notável o aumento da escala geográfica e do alcance social do programa, sua evolução colocou para a AS-PTA e as organizações parceiras questionamentos sobre a capacidade das ações de inserirem as famílias mais empobrecidas nas dinâmicas de inovação agroecológica.
Para avaliar essa questão e dar pistas para o aprimoramento estratégico do programa, decidiu-se pela realização de um estudo específico em três comunidades situadas em área de forte concentração de ações do programa e de presença de número expressivo de famílias em situação de extrema pobreza. Este artigo apresenta as principais conclusões do estudo, realizado em 2002, lançando um olhar também sobre as evoluções mais significativas ocorridas desde então.
O ESTUDO
Construindo o conceito de pobreza
O estudo iniciou-se por um debate que envolveu a assessoria, lideranças de agricultores e representantes comunitários da região, buscando aproximar e compartilhar as diferentes visões sobre o conceito de pobreza. O debate teve como referência situações concretas vivenciadas localmente e as distintas percepções sobre essa realidade. Esse esforço inicial permitiu traduzir as diversas concepções num conjunto organizado de características determinantes da pobreza e das privações que limitam o exercício e a expansão das capacidades individuais e coletivas.
Com esse enfoque, o estudo revelou que, nas condições locais, a pobreza se expressa em um conjunto de características: privação do acesso ou acesso precário à terra, à água e à biodiversidade; fome e insegurança alimentar; marginalização nas relações com os mercados; privação do acesso aos serviços básicos e aos benefícios das políticas públicas; dependência política e sujeição nas relações de trabalho; e não-inclusão nos processos locais de desenvolvimento.
A identificação dessas características que se combinam de variadas formas nos permitiu abordar objetivamente a pobreza como a expressão de um conjunto complexo e interdependente de dimensões. Em primeiro lugar, a pobreza não se restringe à dimensão econômica e à privação dos bens materiais que constituem sua expressão mais explícita. Ela envolve também uma dimensão política e cultural. Em segundo lugar, a pobreza se manifesta de forma irregular no tempo e no espaço. A ocorrência de períodos de seca, por exemplo, exacerba a pobreza e amplia o contingente de pobres, ocorrendo uma tendência ao nivelamento por baixo dos distintos níveis de pobreza. Ao mesmo tempo, ao tomar as famílias pobres como unidade de referência, não podemos desconsiderar a existência de níveis diferenciados de privações dentro dos núcleos familiares, que atingem de forma desigual homens, mulheres, jovens e idosos.
Quem são os mais pobres?
Os dados iniciais da realidade levantados e organizados levaram à identificação da privação do acesso à terra como o elemento estruturador do conjunto das privações que define a categoria das famílias mais pobres. São elas que apresentam maiores dificuldades para se integrarem às dinâmicas sociais locais de promoção da Agroecologia. Essa categoria é composta pelos sem-terra, pelas famílias com muito pouca terra e por aquelas que vivem em terras de parentes.
Outra forma de manifestação de privações sociais e materiais foi identificada no âmbito dos núcleos familiares. De forma quase indiferenciada entre as famílias da comunidade, são as mulheres e os jovens e, principalmente, as mulheres jovens, que se deparam com sérios bloqueios culturais para participarem dos processos decisórios sobre a gestão econômica das propriedades e se beneficiarem dos frutos do trabalho familiar em condições de igualdade com os homens adultos.
Formas de expressão da pobreza
O estudo identificou que a condição de mais pobre se expressa em quatro campos principais que representam obstáculos para o acesso às inovações e para a inclusão nos processos sociais de desenvolvimento: o acesso aos recursos materiais básicos, aos benefícios das políticas públicas, aos mercados e às organizações da sociedade civil.
No quadro das principais privações materiais, encontramos os obstáculos para o acesso à água, à alimentação, à renda e, sobretudo, à terra, fator decisivo. A exclusão da posse da terra ou as condições precárias de seu uso atingiam 64% dos mais pobres. Essa situação adversa resultava no estabelecimento de relações de dependência econômica e política para o uso da terra de terceiros, o que tornava inviável ou desestimulava a incorporação de inovações voltadas para a estruturação progressiva dos sistemas agrícolas em termos técnicos e econômicos.
Além disso, quase 70% das famílias nas comunidades estudadas não dispunham de infraestrutura própria de captação e armazenamento de água e eram obrigadas a recorrer a fontes externas, tanto comunitárias como privadas, freqüentemente situadas a grandes distâncias.
A insegurança alimentar, com eventuais períodos de fome, era outro componente permanente da vida dessas famílias. Submetidas a condições socioeconômicas, técnicas e ambientais de produção extremamente desfavoráveis e erráticas, elas não conseguiam prover autonomamente as suas necessidades de consumo entre as safras, nem mesmo dispor de sementes para o plantio no período subseqüente.
Para assegurar uma renda mínima, os membros das famílias mais pobres buscam trabalho nas mais diversas atividades como diaristas, puxadores de agave, em serviços domésticos e outros. Além de incertas, essas ocupações não geram renda monetária fixa. Em alguns casos a renda dessas famílias é complementada por remessas de familiares que migraram, pela aposentadoria de algum membro ou pelo acesso a programas governamentais compensatórios.
O precário acesso aos mercados, seja para a venda de seus produtos ou para a compra de bens necessários, constitui outro campo de exclusão das famílias mais pobres. Não dispondo de recursos para o transporte, raramente participam das feiras, tendo que vender suas mercadorias ou se abastecer em condições desfavoráveis, sujeitando-se aos preços dos bodegueiros e atravessadores. O isolamento, a falta de recursos para colocar diretamente os produtos nas feiras, o desconhecimento dos preços, a urgência para vender a produção para o pagamento de dívidas fazem com que suas produções sejam sempre desvalorizadas. Mesmo nas poucas ocasiões em que compare- cem às feiras, seus produtos, em peque- na quantidade e expostos no chão, acabam desprezados pelos compradores.
Também no acesso aos benefícios das políticas públicas as famílias mais pobres são penalizadas. Nas comunidades estudadas, a educação formal, a saúde pública e os serviços de transporte eram precários. A merenda escolar sofria longas interrupções. Não havia programas de saneamento básico na zona rural. A rede de energia elétrica passava ao lado das casas e as famílias também não dispunham de condições para o pagamento desse serviço. Embora constituíssem um importante aporte de renda para um número razoável de famílias, os programas sociais do governo existentes na época (Bolsa Renda, Bolsa Escola e Vale Gás) eram irregulares e sujeitos a desvio de finalidade em função de relações clientelistas, deixando à margem grande parte de seu público-alvo, justamente os mais pobres. As modalidades de crédito oficial também eram inadequadas às condições dos mais pobres. Além das dificuldades institucionais de acesso, quando concedido, o crédito transformava-se freqüentemente em instrumento de desestruturação e não de fortalecimento dos sistemas produtivos.
A fraca participação das famílias mais pobres em espaços de organização da sociedade também foi identificada como um fator agravante da exclusão social. Essa condição se reproduzia por duas razões principais: de um lado, pela existência de limitantes econômicos para o pagamento de transporte e para a compra de roupas mais cuidadas para ir às reuniões. De outro, pela ausência de propostas das organizações sociais dirigidas ao enfrentamento das questões específicas desse segmento.
OS APRENDIZADOS E OS DESDOBRAMENTOS DO ESTUDO
Ao identificar as formas locais de manifestação da pobreza, o estudo permitiu desvelar estratégias de ação capazes de enfrentar os mecanismos de reprodução da exclusão sociocultural que atinge considerável parte da população rural. O primeiro e mais significativo ensinamento nesse sentido veio do reconhecimento de que, para contornar as privações a que estão submetidas, as famílias mais pobres implementam estratégias próprias de sobrevivência. Fortemente marcadas pela necessidade de garantir, no curto prazo, as condições mínimas de reprodução biológica, essas estratégias não chegam a romper o círculo vicioso da pobreza. Por outro lado, elas revelam as capacidades criativas dessas famílias de manejar, de forma individual ou coletiva, as limitadas margens de manobra que possuem para atenuar as manifestações mais agudas da pobreza.
Exemplo disso são os mecanismos de reciprocidade exercitados no cotidiano das comunidades, que funcionam como dispositivos atenuadores da privação extrema. Os mutirões, o empréstimo e/ou doação de sementes, água e alimentos são procedimentos locais que permitem a redistribuição dos parcos recursos excedentes na comunidade em benefício dos mais pobres. Esses mecanismos perdem vigência nos anos de seca, quando os sistemas produtivos não são capazes de prover excedentes a serem socializados na comunidade. Nessas circunstâncias, a migração, ainda que temporária, é a principal alternativa que resta para os mais pobres.
Além dos mecanismos coletivos de resistência às privações extremas, manifestam-se estratégias individuais por meio das quais as famílias asseguram o acesso a recursos essenciais à sua reprodução. Essas estratégias operam através de diversificadas modalidades de parcerias desiguais, como a cessão de áreas de cultivo em troca de trabalho, meações, compensações, créditos informais para compra de alimentos, entre outras. Elas se confundem muitas vezes com a manutenção de relações de sujeição e dependência econômica e política estabelecidas com proprietários de terra, comerciantes e políticos locais e, ao mesmo tempo, demonstram a baixa capacidade desse segmento mais empobrecido para desvincular suas formas de sobrevivência dos mecanismos reprodutores de sua pobreza.
Ao trazer à luz essas estratégias de sobrevivência, o estudo chamou a atenção para a necessidade de reorientar propostas e metodologias do programa de forma a potencializar as capacidades de iniciativa espontânea dos setores mais pobres para acessar e manejar recursos produtivos autonomamente. De fato, essa necessidade de reorientação estratégica foi confirmada pela análise dos impactos das ações anteriores do programa sobre a realidade dos mais pobres nas três comunidades estudadas. Embora houvesse alto nível de participação das famílias mais pobres nos bancos de sementes comunitários (69% dos sem-terra, 58% dos moradores em casa de parentes e 48% dos proprietários com muito pouca terra), ocorria limitada integração dessas mesmas famílias nos fundos rotativos solidários destina- dos ao financiamento de infra-estruturas hídricas para o abastecimento doméstico. Além disso, ainda que muitas vezes correspondessem às suas demandas e carências, outras propostas inovadoras também não foram incorporadas por essas famílias pelo fato de não serem adequadas às suas condições precárias de posse da terra. Entre essas inovações, destacam-se a rearborização dos sistemas produtivos, o aprimoramento do sistema pecuário, a construção de instalações, as práticas de fertilização orgânica dos solos, etc.
CAMINHOS PARA O EMPODERAMENTO DOS MAIS POBRES
Após cinco anos da realização do estudo nas três comunidades, as condições de vida das famílias mais pobres sinalizam mudanças significativas que, em essência, revelam a instauração de trajetórias de ruptura com o círculo vicioso da pobreza, resultantes de dois fatores combinados: de um lado, os métodos de ação do programa foram ajustados de forma a estimular a interação das famílias mais pobres nas dinâmicas locais de inovação agroecológica, possibilitando melhores condições para que elas se apropriassem de propostas inovadoras amadurecidas localmente. De outro, o maior envolvi- mento dessas famílias nos processos comunitários criou condições propícias para que elas pudessem tirar partido das políticas governamentais, sobretudo aquelas voltadas para garantir o acesso e o uso autônomo da terra.
Entre os ajustes nos métodos do programa, destacam-se:
- Diversificação dos itens financiáveis pelos Fundos Rotativos Solidários (FRS): até 2002, os FRS eram exclusivamente orientados para o financiamento de cisternas para estocagem de água de uso doméstico. Desde então, passaram a financiar outros itens, como esterco, pequenos animais, telas para a confecção de cercas para a contenção de pequenos criatórios, embalagens para a comercialização de produtos, entre outros.
- Diversificação e melhoramento de infra-estruturas hídricas para captação e armazenamento de água para uso doméstico e na agricultura: essa iniciativa foi desencadeada pela revitalização dos mutirões comunitários a partir da ação da Catequese Familiar, grupo pastoral com forte atuação local. Destaca-se também a implantação da técnica das bombas populares destinadas à captação de água de poços para o consumo animal. Essa inovação possibilitou que os mais pobres não sejam obrigados a vender seus animais nos períodos de seca.
- Melhoria dos arredores de casa: iniciativa também polarizada pela Catequese Familiar e voltada para a intensificação produtiva dos quintais domésticos. Ao mesmo tempo em que vem impactando positivamente as condições de segurança alimentar das famílias mais pobres, essa linha de ação tem criado um ambiente social favorável ao empoderamento das mulheres, que nesses espaços têm seus trabalhos socialmente reconhecidos.
Um grupo de 30 famílias sem-terra residentes nas três comunidades estudadas se organizou para se beneficiar de programa do governo federal de acesso a terra. Ao romper com o principal limitante para o ingresso nas dinâmicas comunitárias de inovação agroecológica, essas famílias lograram mudanças qualitativas de grande alcance em suas condições de vida e trabalho, bem como em sua inserção social. Tendo constituído um assenta- mento que assegurou a posse de 17 hectares para cada família, além de uma área comunitária de cinco hectares, essas famílias puderam se apropriar do leque mais amplo de inovações promovidas pelo programa, rompendo com a marginalização a que estavam até então confrontadas. Passaram assim a gerir seus próprios sistemas produtivos geradores de renda e de segurança alimentar e hídrica, e puderam se desvincular das relações de subordinação política e econômica com os latifundiários em cujas terras habitavam em troca de trabalho. Ao mesmo tempo, elas começaram a participar dos eventos de formação do programa, buscando incorporar progressivamente novos conhecimentos técnicos e se inserir nas organizações da agricultura familiar da região. Em 2007, por ocasião do Dia Mundial da Água, essas famílias sediaram um evento de âmbito regional, no qual puderam apresentar para agricultores de vários municípios suas experiências familiares e coletivas de gestão de recursos hídricos.
LIÇÕES E DESAFIOS
A realização do estudo e os seus desdobramentos chamam a atenção para dois desafios recorrentes colocados para programas de desenvolvimento rural:
- Identificar as estratégias de sobrevivência fundadas em mecanismos de reciprocidade e na valorização dos recursos locais em comunidades rurais pobres e, a partir disso, adotar enfoques de desenvolvimento rural que potencializem essas estratégias. Nesse sentido, constatamos que o enfoque agroecológico foi capaz de impulsionar processos sociais que permitiram a tradução dessas estratégias de sobrevivência em um projeto coletivo de desenvolvimento local ao atuar em diversas frentes para superar o círculo vicioso da pobreza que mantém um contingente significativo de famílias excluído dos benefícios da produção social de riquezas e da vida cultural.
- Estimular a capacidade das famílias agricultoras mais pobres para construir seus próprios projetos de inserção social, condição essencial para que elas tirem partido das políticas públicas como instrumentos de superação das amarras que as prendem aos mecanismos sociais de reprodução da pobreza. As políticas de caráter assistencialista são ineficazes para romper essas amarras, em que pese o fato de serem necessárias para o enfrentamento de situações de emergência social. As políticas de desenvolvimento econômico têm igual- mente se mostrado incapazes de romper com os ciclos de pobreza, na medida em que são formatadas segundo uma concepção técnica e econômica que não se adequa às vivências e expectativas das famílias mais pobres. Portanto, para serem efetivas na inclusão das populações rurais que vivenciam a pobreza extrema nos processos de desenvolvimento, essas políticas públicas devem ser capazes de promover a integração das dimensões sociocultural e econômica por meio de enfoques que assegurem o empoderamento desses atores marginalizados nas dinâmicas sociais.
Sílvio Gomes de Almeida
diretor executivo da AS-PTA
[email protected]
Paulo Petersen
diretor executivo da AS-PTA
[email protected]
Adriana Galvão Freire
assessora técnica da AS-PTA
[email protected]
Luciano Silveira
coordenador do Programa de Desenvolvimento Local do Agreste da Paraíba da AS-PTA
[email protected]
Baixe o artigo completo:
Revista V5N4 – Caminhos da inclusão social no Agreste da Paraíba