Bibi Cintrão, Denise Gonçalves, Miriam Langenbach e Mônica Chiffoleau
Em seu livro A reconstrução ecológica da agricultura, Khatounian pergunta se a agricultura ecológica poderá alimentar o mundo. E argumenta que, sem uma reeducação dos consumidores, não será possível conjugar abaste- cimento seguro, boa nutrição humana e preservação dos recursos naturais. Essa reeducação implica um conjunto variado de mudanças nos atuais padrões de consumo, tanto em termos mais amplos, como no âmbito das relações entre os países, como no nível pessoal, considerando valores éticos, os conceitos de bem-estar e os próprios objetivos de vida.
É necessária uma diversificação das atuais dietas alimenta- res, padronizadas drasticamente nas últimas décadas com a crescente industrialização da agricultura, o aumento do consumo de produtos de origem animal e o estreitamento da base alimentar a poucos produtos (como trigo, soja e milho) produzidos em grandes monoculturas e transportados por grandes distâncias. Por essa razão, a reeducação alimentar é fundamental, com a valorização da biodiversidade, da sazonalidade e da regionalidade dos alimentos, recuperando hábitos que haviam sido secularmente desenvolvidos com base no uso de espécies vegetais e animais adaptadas às condições locais. Com isso, ganha-se em qualidade e sabor dos alimentos, assim como possibilita conciliar saúde dos seres humanos e do ambiente, preservação dos recursos não renováveis, redução da dependência dos agricultores em relação à indústria e dos países pobres em relação aos ricos, reforçando soluções locais, dentro da percepção de pensar global e agir local (KHATOUNIAN, 2001).
Neste artigo, partimos da nossa experiência de participação na Rede Ecológica do Rio de Janeiro para refletir sobre a importância das compras coletivas na reeducação e na construção de novos padrões de consumo e de relações entre campo e cidade. A Rede Ecológica foi criada em 2001 e é atualmente um dos maiores e mais antigos grupos de consumo do Brasil, envolvendo em torno de 230 famílias, organizadas em 11 núcleos, situados em bairros de classe média urbana do Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu e Itaipava. A rede se define como um movimento social que visa fomentar o consumo ético, solidário e ecológico e é formada por consumidores que realizam compras coletivas numa interação direta com produtores, viabilizando o abastecimento de produtos agroecológicos a preços acessíveis e apoiando iniciativas que seguem a mesma ideologia. O artigo enfocará alguns elementos dessa experiência, que exemplificam o papel diferenciado das compras coletivas e dos grupos de consumo.
AS COMPRAS COLETIVAS E OS GRUPOS DE CONSUMO RESPONSÁVEL COMO PRÁXIS TRANSFORMADORA
Levantamentos realizados pelo Instituto Kairós, em 2010 e 2013, apontam a existência de 17 experiências de grupos de consumo no Brasil, que declaravam realizar práticas de compras coletivas segundo princípios da Agroecologia e da economia solidária. Os Grupos de Consumo Responsável são definidos como consumidores organizados que se propõem a fazer do seu ato de compra um ato político, visando à sustentabilidade da própria experiência e o bem-estar do planeta, constituindo uma ação educativa para o consumo responsável (KAIRÓS, 2010).
Frente às 140 feiras ecológicas identificadas em 2012 pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) em 22 das 27 capitais brasileiras –número que tende a crescer (DAROLT et al., 2013) –, esses grupos podem parecer insignificantes do ponto de vista quantitativo. No entanto, devemos considerá-los enquanto espaços importantes de autogestão, participação e formação, que se somam e podem reforçar outras iniciativas de ampliação dos mercados de produtos agroecológicos.
Os mercados, por sua vez, devem ser vistos como espaços que extrapolam a função de venda e escoamento de produtos, sendo a politização das compras e do consumo essencial para mudanças de valores, comportamentos, desejose cultura e, consequentemente, para o avanço da Agroecologia. É fundamental buscar mecanismos para que os consumidores deixem de assimilar passiva- mente o que o mercado lhes oferece, assim como é preciso que aqueles que estão despertando para o consumo de produtos orgânicos conheçam as dificuldades enfrentadas pelos agriculto- res e assumam um papel de cidadãos e parceiros proativos no grande desafio de construção de novos paradigmas de desenvolvimento. Nesse sentido, a experiência da Rede Ecológica aponta que os grupos de consumo são um espaço importante para essa politização.
CRITÉRIOS PARA A INCLUSÃO DE PRODUTOS E PRODUTORES NA REDE
Um dos elementos centrais que norteou a estruturação da Rede Ecológica foi o questionamento da lógica dos supermercados, não apenas no que se refere à provisão de alimentos orgânicos (que tendem a seguir os mesmos padrões da agricultura convencional, com sistemas de produção pouco diversificados e de maior escala), mas também pelo conjunto de elementos que os mesmos simbolizam, como concentração da produção e distribuição e venda de alimentos deslocalizados, ultraprocessados e com uso excessivo de embalagens e aditivos químicos.
Desde seu início, a rede buscou fortalecer iniciativas econômicas solidárias e ambientalmente sustentáveis e fornecer aos seus consumidores um conjunto de produtos que lhes permitisse evitar ao máximo comprar em supermercados. Para isso, foram estruturadas duas modalidades de compras: uma semanal (denominada de frescos) e outra mensal, com produtos menos perecíveis e importantes na alimentação cotidiana, como arroz, feijão, farinhas, açúcar, café, etc.
Os critérios estabelecidos para a inclusão de produtos e produtores incluem a exigência de serem orgânicos, a distância (quanto mais próximos, melhor), a importância do fortaleci- mento de coletivos de produtores e assentamentos de reforma agrária, entre outros. Embora a certificação de orgânicos seja considerada conveniente, estabeleceram-se critérios próprios que priorizam laços de confiança e solidariedade entre produtores e consumidores.
COMISSÕES DA REDE ECOLÓGICA
O funcionamento autogestionário se dá por meio de comissões (de acompanhamento a produtores, cuidados com o núcleo, logística, finanças), além de outros mecanismos, que possibilitam discussões e a participação ativa nas diversas atividades conduzidas pelo grupo. As decisões são partilhadas entre os consumidores, num processo permanente de seleção de produtos e produtores, com trocas de opiniões e informações. Há também trocas de receitas, informações sobre safra, sobre dificuldades enfrentadas pelos produtores, sobre produções mais adaptadas. Problemas com os produtos são apresentados aos produtores visando encontrar formas de resolvê-los, envolvendo revisões de parte a parte. É um processo trabalhoso, mas extremamente rico, que propicia um constante aprendizado e a reavaliação de valores e comportamentos de consumo, diferenciando os grupos de compra de outros espaços de comercialização alternativa, onde a participação dos consumidores é mais passiva, restringindo-se à compra.
O PRINCÍPIO DOS 3 RS – REDUZIR, REAPROVEITAR E RECICLAR
A Rede Ecológica segue o princípio dos 3 Rs – Reduzir, Reaproveitar e Reciclar –, enfatizando a hierarquia entre eles e indo na contracorrente dos modelos de consumo atuais. Em primeiro lugar, deve vir a redução do consumo, em segundo, o reaproveitamento e apenas como última opção a reciclagem. Essa percepção é de crítica à indústria, que fomenta o uso de descartáveis e confunde reaproveitamento com reciclagem.
A incorporação desses princípios no cotidiano da rede vem envolvendo diversas ações. Prioriza-se, por exemplo, o recebimento de produtos a granel e incentiva-se que os consumidores levem suas próprias sacolas. Foi criada uma comissão para tratar especificamente das embalagens (um dos principais desafios), estimulando a devolução de embalagens reutilizáveis pelos produtores. Compartilham-se também informações sobre os danos à saúde e ao ambiente causados pelo plástico e a busca de alternativas ao seu uso. A rede foi a proponente da campanha Xô Saco Plástico, visando conscientizar produtores e consumidores das feiras orgânicas da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro sobre a necessidade de redução do uso das embalagens plásticas.
Além disso, a rede divulga e troca experiências sobre práticas de compostagem caseira ou comunitária, estimulando a diminuição do lixo e a criação de hortas na cidade. Incentiva ainda a produção e a venda de cadernos ecológicos, feitos a partir de papel usado, e realiza oficinas com esse tema em diversos eventos.
DE CONSUMIDOR A CIDADÃO – O TRABALHO VOLUNTÁRIO E O COMPROMISSO COM UMA PROPOSTA MAIS AMPLA
Na sua construção, a Rede Ecológica buscou estabelecer uma estrutura o mais leve possível, baseada em relações informais e solidárias, evitando custos permanentes e se valendo ao máximo de trabalhos voluntários. Isso contribui para baixar o custo dos produtos, estreitar laços entre os participantes e promover uma socialização dos conhecimentos e aprendizados, que é feita através do site, da Carta semanal (um informativo simplificado, enviado juntamente com as chamadas para as compras) e de um blog de receitas (Ecos da Rede).
Os integrantes da rede tomaram também a decisão de não crescer muito, mantendo-se no limite de 250 associados. Atualmente, a participação nas compras implica uma afiliação com pagamento de uma mensalidade fixa, que cobre os custos operacionais e possibilita a venda dos produtos pelo preço do produtor. Para se associar, é necessária uma etapa preparatória, com a participação num mutirão de entrega mensal e em duas reuniões com a comissão de acolhida, quando são apresentados os princípios e o funcionamento da rede. Para os iniciantes, deve ficar claro que a associação à rede representa um compromisso político com sua proposta mais geral. A participação no mutirão mensal ao menos uma vez por ano é obrigatória para todos os associados e é um elemento importante do trabalho autogestionário.
A exigência de participação no trabalho coletivo é um grande desafio na vida corrida das grandes cidades, sendo eventualmente foco de tensões e uma das principais causas de desistência. Mas, ao mesmo tempo, tornou-se uma marca da Rede Ecológica e se revelou importantíssima para a consolidação de um grupo de pessoas com maior conhecimento e capacidade de reflexão e intervenção em diferentes espaços, dentro e fora da rede. Esse cotidiano de participação nas compras coletivas permite um aprendizado a partir da prática e ganha um senti- do de ação política, consolidando a Rede Ecológica enquanto movimento de consumidores-cidadãos, com legitimidade e capacidade de intervenção qualificada em outros espaços, como articulações e redes de Agroecologia, no movimento Slow Food, na rede nacional de grupos de consumo, na Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, entre outros. Mesmo com sua estrutura informal, a Rede Ecológica é reconhecida em conselhos de controle social e comissões formais. A presença nesses espaços de diálogos com a sociedade enriquece e dá novo sentido às compras coletivas.
Exemplo importante é a inserção da Rede Ecológica, a partir de 2010, como representante dos consumidores no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (Consea-Rio). O grupo vem exercendo papel central na câmara temática Segurança Alimentar nas Estratégias de Desenvolvimento, no mapeamento das iniciativas de agricultura urbana e educação alimentar, na organização de oficinas e seminários e nas Conferências Municipais de Segurança Alimentar. A participação no Consea aproximou a Rede Ecológica dos movimentos de agricultura urbana e teve como desdobra- mento a inclusão de produtos desses agricultores nas compras coletivas e o envolvimento da rede na criação de novas feiras agroecológicas na Zona Oeste.
REFLEXÕES FINAIS SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS GRUPOS DE CONSUMO
A experiência da Rede Ecológica aponta para especificidades dos grupos de consumo, que os diferenciam de outras formas de comercialização de produtos agroecológicos. Nos grupos de consumidores, a autogestão é um elemento importante, as definições de compra são compartilhadas e a aproximação com os produtores se dá enquanto organização coletiva. O acúmulo de conhecimentos e saberes favorece mudanças nas práticas cotidianas, abrindo caminho para outra realidade humano-social do sistema alimentar, porque são as escolhas dos consumidores que constroem essa realidade.
O contínuo processo de formação que as compras coletivas ensejam permite aos consumidores urbanos irem além de cuidados pessoais com a saúde, construindo novos valores em defesa da vida e enfrentando desafios colocados para as futuras gerações. Mesmo numericamente pequenos, esses grupos podem constituir-se como espaços privilegiados para uma aproximação mais profunda entre campo e cidade e para a consolidação de movimentos de consumidores-cidadãos fundamentais na construção de modelos de produção e consumo mais sustentáveis.
No entanto, a multiplicação dos grupos de consumo ainda é pouco priorizada pelos movimentos sociais e tem se dado de maneira bastante lenta. Ciente desse cenário, a Rede Ecológica passou, em 2015, a oferecer um curso de formação de novos grupos de compras agroecológicas, visando à expansão dessas ideias e práticas. Espera com isso elaborar materiais e metodologias de apoio à estruturação de outros grupos e ampliar a proposta de maior proximidade entre e campo e cidade para a construção de novos padrões de consumo.
Bibi Cintrão
Consumidora da Rede Ecológica – Núcleo Santa Teresa; Comissão de Acompanhamento aos Produtores Participante do Movimento Slow Food Brasil
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Denise Gonçalves
Consumidora da Rede Ecológica – Núcleo Itaipava; Comissão de Acompanhamento aos Produtores. Integrante do Grupo de Trabalho Slow Food Brasil
Queijos Artesanais
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Miriam Langenbach
Fundadora da Rede Ecológica – Núcleo Urca; Comissão Gestora; Comissão da Carta Semanal [email protected]
Mônica Chiffoleau
Consumidora da Rede Ecológica – Núcleo Vargem Grande; Representante da Rede Ecológica no Consea Municipal do Rio de Janeiro. Mestranda do Programa História das Ciências e das técnicas e epistemologia/UFRJ
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Referências Bibliográficas:
CARNEIRO, Camila B.M. Compras coletivas de produtos orgânicos e participação política: um estudo de caso da Rede Ecológica (RJ). 2012. Dissertação (Mestrado) – CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro. Disponível em: <http:// r1.ufrrj.br/cpda/dissertacoes-e-teses/dissertacoes-mestra- do-2011-2/>. Acesso em: 10 set. 2015.
DAROLT, Moacir R.; LAMINE, Claire; BRANDENBURG, Alfio. A diversidade dos circuitos curtos de alimentos eco – lógicos: ensinamentos do caso brasileiro e francês. Revista Agriculturas, v. 10, n. 2, jun. 2013 Disponível em: <http://www.agriculturesnetwork.org/magazines/brazil/mercados/diversidade-circuitos- curtos-alimentos-ecologicos >. Acesso em: 10 set. 2015.
INSTITUTO KAIRÓS. Levantamento do Perfil dos Grupos de Consumo no Brasil “Consumo como intervenção – Um olhar sobre as experiências de consumo coletivo no Brasil”. Dezembro 2010. Disponível em: <http://ins- titutokairos.net/2012/03/levantamento-do-perfil-dos-grupos-de-consumo-no-brasil-2/>. Acesso em: 10 set. 2015.
KHATOUNIAN, Carlos Armênio. A reconstrução ecológica da agricultura. Botucatu: Agroecológica, 2001. Disponível em: <http://aao.org.br/aao/pdfs/publicacoes/a-reconstrucao-ecologica-da-agricultura.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015.
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Revista V12N2 – Compras coletivas e a formação de consumidores-cidadãos: a experiência da Rede Ecológica do Rio de Janeiro