Morgana Mara Vaz da Silva Maselli
A medida que os agricultores e as áreas agrícolas vão sendo afastados das cidades pelos processos de industrialização e urbanização, os laços sociais que mantêm as comunidades rurais unidas e que conectam campo e cidade vão se desintegrando. Ao mesmo tempo, é desencadeado um processo de dissociação entre a origem dos alimentos e a natureza, fazendo com que os consumidores urbanos deixem de considerar de onde vêm seus alimentos e os processos naturais envolvidos em sua produção (StEEl, 2008).
A agricultura marca presença na cidade do Rio de Janeiro em diferentes bairros e com práticas muito variadas. Um mapeamento realizado pelo Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (Consea-Rio), em 2011, identificou mais de 200 experiências conduzidas pelo poder público e pela sociedade civil. São hortas escolares, comunitárias, institucionais, hortos ou agroflorestas, quintais urbanos, grupos de assessoria, iniciativas de consumo (feiras ecológicas, grupos de consumidores, atividades culinárias) e comunidades de agricultores familiares. No entanto, essas iniciativas, em sua maioria, estão isoladas entre si, possuem pouca visibilidade pública, são descontínuas e carecem do apoio de políticas públicas.
Diante desse contexto de diversidade e adversidade, enfocamos neste artigo as experiências dos agricultores familiares presentes no entorno dos Maciços da Pedra Branca e do Mendanha, Zona Oeste do município, e suas ações voltadas à venda da produção por intermédio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
A AGRICULTURA NA ZONA OESTE DO RIO DE JANEIRO
A área rural do município do Rio de Janeiro, assim como dos demais municípios da Região Metropolitana, vem sofrendo drástica e sistemática redução ao longo dos anos, principal- mente devido ao avanço da urbanização e à ausência de apoio oficial. Na Zona Oeste, a paisagem rural deu lugar a loteamentos urbanos periféricos impulsionados pela especulação imobiliária, pela política de remoção de favelas das áreas nobres da cidade para a periferia, pela implantação de polos industriais, entre outros. Dessa forma, a produção agrícola ainda existente na cidade, eminentemente de base familiar, vem sendo marginalizada.
Do ponto de vista normativo, não existem áreas consideradas rurais na cidade do Rio de Janeiro. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município, de 2011, indica que o território do município é integralmente urbano. Sendo assim, a agricultura praticada nessa cidade pode ser dita agricultura urbana, categoria de identificação abraçada por boa parte dos agricultores e utilizada na reivindicação de direitos, por meio das mobilizações promovidas pela Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede Cau).
Nesse sentido, os Planos Diretores se configuram como um instrumento político de extrema importância e arena de disputas de interesses locais sobre o uso da terra e sobre a orientação das políticas públicas. As reivindicações da Rede Cau nos espaços de controle social visam alterar a redação do Plano, enfatizando a existência oficial de áreas agrícolas na cidade do Rio de Janeiro, de forma a garantir o reconhecimento político e a permanência dos agricultores em suas terras para a prática agrícola.
Os dados do Censo Agropecuário do IBGE levantados em 2006 evidenciam a relevância da agricultura na cidade. Concentrando 53% da população da Região Metropolitana, o município do Rio de Janeiro apresenta 1.055 estabelecimentos agrícolas, sendo 790 da agricultura familiar. Segundo a Emater -RJ, esses estabelecimentos responderam pela maior produção agrícola colhida dentre os municípios da Região Metropolitana no ano de 2010.
Desde os anos 1960, são raras as iniciativas de órgãos públicos que tratam diretamente do tema, oferecendo capacitação e assistência técnica, e os espaços tradicionalmente voltados para essa finalidade, como a Fazenda Modelo, estão subutilizados, sem recursos e sem pessoal.
Recentemente, em meados de 2013, após pressões dos agricultores e de organizações da sociedade civil, foi criada a Secretaria Especial de Abastecimento e Segurança Alimentar (Seab), que tem como objetivo promover a Política Municipal de Agricultura, Pecuária, Pesqueira, Aquicultura, Abasteci- mento e Segurança Alimentar no município do Rio de Janeiro.
Embora o cenário das políticas públicas não seja favorável, uma rede de atores não governamentais vem trabalhando in- tensamente para que a agricultura na cidade do Rio de Janeiro se mantenha, cresça e ganhe visibilidade. Muito tem sido feito no sentido de possibilitar o acesso desses agricultores a novos mercados, institucionais ou não, assim como para facilitar o acesso dos consumidores aos produtos oriundos da agricultura familiar local.
O Consea-Rio tem procurado também estabelecer um diálogo com diferentes esferas do poder público municipal, incentivando, por exemplo, a criação de uma Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional na Câmara Municipal.
A eleição do agricultor Francisco Caldeira como presidente do Consea-Rio, em março de 2014, expressa o quanto o tema ganhou espaço na esfera institucional, sendo pautado intensa- mente nos últimos anos na agenda do conselho, ampliando a discussão sobre o potencial da agricultura urbana do município para as ações de segurança alimentar e nutricional (SAN). Durante a IV Conferência Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro, realizada em junho de 2015, o tema foi central nos debates, e a mobilização culminou com a eleição de três delegados, além do presidente, para a conferência estadual, representando a Rede Cau.
Uma das principais reivindicações dos agricultores do município é o acesso às políticas públicas para a agricultura familiar, bem como o acesso aos mercados institucionais, especialmente o Pnae, que permite o incremento da comercialização e a ampliação do debate sobre agricultura, alimentação e saúde junto aos jovens do município.
O PNAE E AS ESPECIFICIDADES DO RIO DE JANEIRO
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) foi implantado em 1955, visando, entre outros aspectos, promover a formação de hábitos alimentares saudáveis no público escolar por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições no ambiente escolar. Em 2009, com a aprovação da Lei n˚ 11.497, as diretrizes do Pnae se aproximaram ainda mais da implementação das políticas de SAN e desenvolvimento sustentável, ao alterar a forma de aquisição de alimentos. Essa lei incluiu a obrigatoriedade de estados e municípios destinarem, no mínimo, 30% dos recursos da alimentação escolar à compra de produtos da agricultura familiar local.
Essa mudança tem sido vista como um marco nas políticas públicas de SAN, tanto pelo efeito positivo sobre os beneficiários do Pnae como pelo fomento oferecido aos agricultores familiares. A partir de então, abriu-se um leque de possibilidades para que os gestores do programa o operacionalizassem, colaborando para o estreitamento da cadeia de abastecimento alimentar, aproximando produtores e consumidores e fortalecendo os pequenos produtores rurais. No entanto, a sua implementação ainda é problemática em muitos municípios. Segundo Triches (2010), a maior parte deles ainda utiliza os recursos para adquirir os gêneros alimentícios de fornecedores grandes e especializados.
Para Belik e Siliprandi (2012), a alta taxa de residentes em áreas urbanas precisa ser levada em conta quando do planejamento de programas de desenvolvimento rural que almejem o abastecimento de grandes cidades, como é o caso do Pnae. Afinal, a aplicação dessa lei nos grandes municípios enfrenta diversas dificuldades de logística para o abastecimento das escolas: elevado número de pontos de entrega, problemas de transporte, armazenamento dos produtos, manipulação adequada dos alimentos, etc.
Outro aspecto a ser considerado é a discrepância entre a de- manda de abastecimento e o número de agricultores locais no município. Com o processo de desagregação da agricultura, as áreas produtoras vêm se afastando cada vez mais dos consumidores, sendo, portanto, preciso fazer uma relativização do conceito de local. Como destacam Belik e Siliprandi (2012), devido à desativação da agricultura, boa parte dos produtos consumidos no programa terá que vir, necessariamente, de outras regiões produtoras, dada a magnitude da demanda. O programa pode, no entanto, ajudar no desenvolvimento de regiões próximas aos grandes centros, sem que tenham que ser oriundos, necessariamente, da área rural do próprio município (BELIK; SILIPRAN- DI, 2012, p. 66).
Inserida nesse cenário de grande urbanização da Região Metropolitana, a cidade do Rio de Janeiro encontra muitos obstáculos para efetivar a compra de produtos da agricultura familiar para as suas mais de 1.600 unidades escolares municipais. Além das dificuldades de se enfrentar os grandes empresários do setor de alimentos e para resolver as burocracias internas à prefeitura, a implementação da compra da agricultura familiar esbarra em dois entraves principais no município.
O primeiro deles é a dificuldade dos agricultores para acessar a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), ponto que tem sido alvo de intensas reivindicações. A Emater-RJ, instituição que emite este documento na região, alega tanto a falta de técnicos como o fato de os agricultores estarem em área urbana e terem também renda oriunda de atividades não agrícolas. Dessa forma, a inserção dos agricultores do município nos mercados institucionais fica inviabilizada.
Para se ter ideia da dimensão do problema, uma das primeiras DAPs para um agricultor do Maciço da Pedra Branca foi emitida apenas em junho de 2012, mediante grande esforço de entidades da sociedade civil e dos agricultores. Pedro Mesquita, agricultor da Agrovargem, foi, por isso, o primeiro agricultor carioca a conseguir realizar uma venda para o Pnae, em setembro de 2012, sendo que essa venda foi feita para uma escola estadual.
Já o segundo entrave está relacionado ao fato de a aquisição de gêneros alimentícios para as escolas da rede municipal ser feita de forma centralizada pela Secretaria Municipal de Administração (SMA). Para participar das chamadas públicas, os interessados devem se inscrever no Cadastro de Fornecedores da Prefeitura do Rio de Janeiro, órgão responsável por todas as compras institucionais, sejam alimentos ou não. De acordo com as informações disponibilizadas no site do órgão, cobra- se do Grupo Formal de agricultores uma série de documentos que extrapola as exigências estabelecidas na Lei n˚ 11.497/09 e nas resoluções do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que regulamentam o tema.
Diante disso, o Conselho de Alimentação Escolar (CAE) e o Consea-Rio, junto com os agricultores, têm cobrado regular- mente do governo municipal a eliminação desses entraves e o cumprimento da lei. Algumas mudanças começam a acontecer. Em março de 2015, a prefeitura realizou o evento Fornece Rio, quando foram esclarecidas dúvidas sobre o processo de compra para o Pnae, a elaboração das chamadas públicas e o cadastramento de agricultores. No entanto, durante o evento, o representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) orientou a prefeitura a realizar compras apenas através de DAPs jurídicas, excluindo os agricultores individuais. Segundo o MDA, somente uma cooperativa com sede no município possui esse documento, mas ela representa agricultores de todo o estado, e não do município, inviabilizando a participação dos produtores locais.
Essa problemática foi debatida durante as atividades preparatórias para a IV Conferência Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, o que gerou a abertura de um novo canal de diálogo entre a prefeitura e os agricultores do município para superar essa barreira. Negociações têm sido feitas no sentido de criar uma chamada diferenciada para as escolas da Zona Oeste do município, inicialmente, dada a sua proximidade com as áreas agrícolas.
Já no âmbito das escolas da rede estadual de ensino, os recursos do Pnae são descentralizados, o que confere mais autonomia ao gestor de cada unidade escolar. Estando mais livres dos processos burocráticos, as escolas estaduais podem realizar mais facilmente a compra da agricultura familiar dentro dos critérios estabelecidos pela lei, sem impor entraves ao agricultor.
Vimos que, se de um lado, o mercado do Pnae representa uma grande conquista para os agricultores, por outro, traz um desafio para as organizações produtivas dos agricultores. O programa é bastante complexo, com muitos atores e instituições envolvidos em sua execução. Para garantir o sucesso da inserção da agricultura familiar e identificar as melhores formas de comercialização dos produtos nesse mercado, é preciso compreender essas complexidades e as especificidades de cada região.
Nas regiões metropolitanas, esses desafios se tornam ainda mais intensos, pois, com o elevado grau de urbanização, o número de agricultores familiares locais é reduzido. Assim, ainda que essas regiões apresentem condições específicas de um mercado institucional de grande porte, elas não abrigam uma quantidade de agricultores familiares capaz de atender à demanda.
Os atores locais envolvidos na implementação do programa (consumidores, produtores e gestores públicos) detêm o po- der de construir novas formas de interação entre os diferentes elos da cadeia e, assim, produzir mudanças em diferentes níveis. Em que pesem os avanços conquistados, os desafios na cidade do Rio de Janeiro ainda são grandes. Sem dúvida, esses desafios não serão transpostos sem a força proveniente da mobilização social de agricultores e consumidores.
Morgana Mara Vaz Da Silva Maselli
Historiadora, mestranda do Programa de Práticas em Desenvolvimento Sustentável da UFRRJ
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Referências Bibliográficas:
BELIK, W; SILIPRANDI, E. A agricultura familiar e o atendi- mento à demanda institucional das grandes cidades. In: SE- CRETARIA DA AGRICULTURA FAMILIAR/MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Projeto Nutre SP: análise da inclusão da agricultura familiar na alimentação escolar no estado de São Paulo. São Paulo: Instituto Via Pública, 2012.
STEEL, Carolyn. Hungry City: how food shapes our lives. Londres: Vintage Books, 2008.
TRICHES, Rozane Márcia. Reconectando a produção ao consumo: a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar para o programa de alimentação escolar. 2012. 297 f. Tese (Doutorado) –UFRGS, Porto Alegre.
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Revista V12N2 – Conflitos e resistências na agricultura familiar da cidade do Rio de Janeiro