Irene Maria Cardoso e Eugênio Alvarenga Ferrari
Um dos pilares metodológicos da Agroecologia é o respeito, resgate e valorização dos conhecimentos de agricultores e agricultoras em processos de inovação orientados para a promoção de agroecossistemas mais sustentáveis.
Segundo o enfoque agroecológico, a produção de conhecimento não é uma atividade de domínio exclusivo dos profissionais da ciência, mas deve envolver a participação ativa de agricultores(as), desde a definição dos problemas das pesquisas até a divulgação de seus resultados. Isso significa o rompimento da concepção adotada na pesquisa clássica, na qual os(as) agricultores(as) são considerados meros receptores dos conhecimentos ou das tecnologias geradas pela atividade científica (Gonsalves et al., 2005). Essa necessidade de entrelaçar saberes populares e científicos nos processos de construção do conhecimento agro- ecológico encerra um grande desafio de natureza metodológica.
Este artigo apresenta a evolução das abordagens metodológicas adotadas em dinâmicas sociais de inovação agroecológica na Zona da Mata de Minas Gerais, promovidas a partir da interação entre o Centro de Tecnologias Alternativas (CTA), alguns departamentos da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e organizações de agricultores(as) familiares da região. A trajetória dessa parceria, que já se estende por mais de vinte anos, é rica em ensinamentos sobre abordagens de pesquisa científica integradas a processos locais de desenvolvimento agroecológico.
TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS, METODOLOGIAS CONVENCIONAIS: O INÍCIO DA INTERAÇÃO
Com sistemas produtivos baseados na associação da cafeicultura com a pecuária e o cultivo de culturas para o autoconsumo, tais como milho, feijão e mandioca, a agricultura familiar da Zona da Mata enfrenta problemas crônicos relacionados à queda de produtividade das lavouras, em razão de processos de degradação ambiental dos agroecossistemas e da grande oscilação dos preços do café, sua principal fonte de renda monetária.
A difusão dos pacotes técnicos associados à modernização da agricultura na região acentuou ainda mais as tendências históricas de superexploração do meio natural e tornou os sistemas produtivos familiares econômica e ambientalmente mais vulneráveis.
No final da década de 1980, logo depois de sua fundação, o CTA atuou com a perspectiva de difundir tecnologias alternativas aos pacotes técnicos da Revolução Verde. Essas alternativas eram identificadas junto às próprias famílias agricultoras da região ou já faziam parte do acervo dominado pela equipe técnica. Alguns experimentos foram conduzidos na área do CTA com o objetivo de comprovar a eficácia das tecnologias alternativas a serem difundidas. No entanto, essas iniciativas pouco mobilizavam ou estimulavam agricultores(as) e pesquisadores(as) de outras instituições.
Nessa fase inicial, o CTA criticava a natureza das tecnologias modernas, mas não logrou se desvencilhar dos fundamentos metodológicos empregados nos sistemas convencionais de produção e disseminação de conhecimentos. A noção de difusão de tecnologias ainda estava fortemente presente nas concepções da entidade. Em geral, limitava-se à identificação e sistematização de tecnologias populares (alternativas) que seriam posteriormente dissemina- das. Assim, embora a idéia de valorização dos conhecimentos dos(as) agricultores(as) figurasse como uma referência importante, não se sabia exatamente como integrá-los aos processos de inovação.
Portanto, a abordagem adotada significava um avanço considerável do ponto de vista metodológico, mas não alterava em essência os procedimentos convencionais dos sistemas oficiais de pesquisa e extensão rural. Entre outras razões, por não permitirem o estabelecimento de relações de poder mais horizontais entre assessores e agricultores. Apesar do respeito à cultura popular, o protagonismo do processo permanecia com os técnicos.
DAS TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS AOS AGROECOSSISTEMAS: UMA MUDANÇA DE ENFOQUE
Ao perceber as limitações na implementação das propostas técnicas difundidas, o CTA passou a realizar diagnósticos participativos de agroecossistemas. Com isso, pretendia aprofundar e sistematizar o conhecimento dos técnicos e agricultores acerca dos entraves e potencialidades em cada uma das regiões de sua atuação.
O CTA realizou vários diagnósticos, permitindo definir temas mobilizadores das dinâmicas de inovação agroecológica que passaram a orientar a interação entre agricultores(as), técnicos da entidade e professores da universidade.
Os primeiros diagnósticos foram realizados em 1990, nos municípios de Guidoval e Rodeiro. A partir da definição dos problemas produtivos e de possíveis soluções, foram conduzidas algumas experimentações em propriedades de agricultores, relacionadas ao manejo fitos- sanitário e à adubação verde em olerícolas.
Em 1991, o diagnóstico abordou a produção animal em Miradouro, envolvendo pesquisadores do Departamento de Zootecnia da UFV e do Centro de Pesquisa de Gado de Leite da Embrapa. Esse diagnóstico foi realizado a partir de uma demanda das organizações dos(as) agricultores(as), que buscavam na pecuária uma alternativa de renda para atenuar a crise provocada naquele período pela acentuada queda dos preços do café.
Em 1993, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araponga solicitou ao CTA uma assessoria para a elaboração de um plano de ação, cujo ponto de partida foi o apoio para a condução de um diagnóstico de agroecossistemas do município. Dois temas principais se destacaram: o enfraquecimento das terras agrícolas e a preocupação com a criação do Parque da Serra do Brigadeiro, o que, segundo o Instituto Estadual de Florestas (IEF), significaria a demarcação e desapropriação das terras de centenas de famílias que estavam acima da cota de mil metros de altitude. Para buscar soluções para esses problemas, foram criadas duas comissões compostas por agricultores, técnicos do CTA e do Departamento de Solos (DPS) /UFV: a Comissão Terra Forte e a Comissão do Parque.
A Comissão Terra Forte estimulou experimentações para o controle da erosão e reposição de nutrientes retirados pelos cultivos, principais razões diagnosticadas para o enfraquecimento das terras. Entre as inovações testadas nas comunidades, destacam-se o cultivo de cana-de-açúcar em cordão de contorno no cafeeiro, a roçagem da vegetação espontânea, o uso de calcário, o uso de leguminosas e as práticas agroflorestais.
Já a Comissão do Parque estimulou processos de mobilização dos sindicatos de trabalhadores rurais dos municípios do entorno da futura unidade de conservação. Um diagnóstico socioeconômico e ambiental do entorno da Serra foi realizado e várias pesquisas (inclusive de mestrado e doutorado) foram desenvolvidas, demonstrando as vantagens do envolvimento das famílias agricultoras na criação do parque e, posteriormente, no desenvolvimento de atividades produtivas sustentáveis. Estas assegurariam a conservação dos remanescentes florestais na região. Todo esse processo evitou as desapropriações e permitiu a criação participativa do parque, experiência até então inédita no Brasil.
MONITORAMENTO DE IMPACTOS
Após alguns anos de atuação em Araponga, as instituições parceiras deram início a processos sistemáticos de monitoramento das ações desenvolvidas no município. Os primeiros esforços nesse sentido contaram com a assessoria do instituto inglês IIED (International Institute for Environment and Development) e tiveram como objetivo aprimorar as capacidades dos agricultores(as) para registrarem e analisarem mudanças ocorridas em suas propriedades após a incorporação de inovações agroecológicas.
Durante o monitoramento, alguns métodos adotados pelos cientistas para conferir rigor às informações geradas foram colocados em cheque pelos agricultores. Foi preciso então redefinir metodologias para assegurar a produção de informações úteis e de relevância local. Essa experiência foi bastante reveladora do ponto de vista das dificuldades existentes quando agricultores e cientistas interagem para produzir novos conhecimentos. Esses processos requerem convergência de normas nos métodos de coleta e interpretação dos dados. Aprendemos que o método científico não pode prevalecer na interação, sob pena de os agricultores questionarem a qualidade de sua participação no processo.
Entre as várias atividades desenvolvidas em Araponga, decidiu-se monitorar os sistemas agroflorestais (SAFs), em particular no que se refere a seu impacto sobre o controle da erosão e o aumento da produtividade dos cultivos. Em pesquisa realizada pelo Departamento de Solos, comprovou-se de forma inequívoca a relação entre os SAFs e o controle da erosão. Apesar da comprovação desse efeito ambiental, o monitoramento revelou que os SAFs não produziam satisfatoriamente e demandavam muita mão-de-obra. Segundo os agricultores, a introdução de grande número de árvores no sistema dificultou muito as práticas de manejo. A tentativa de complexificar o sistema de uma só vez, tal como foi proposto pelos assessores, não trouxe bons resultados. Isso porque, normalmente, os agricultores incorporam as inovações pouco a pouco, por meio de um processo de experimentação. Essas conclusões abriram caminho para modificações no manejo e desenho dos SAFs. Espécies arbóreas foram retiradas do sistema e outras foram introduzidas, especialmente aquelas de mais fácil manejo (como as caducifólias, que não exigem podas) e aquelas geradoras de renda, como as frutíferas (abacate, banana, etc). Atualmente, os agricultores têm seus SAFs desenvolvidos segundo suas próprias lógicas e tempo e não a partir de modelos supostamente ideais, transplantados de outras realidades.
A SISTEMATIZAÇÃO PARTICIPATIVA DOS SAFS
Todo o processo de inovação com SAFs gerou muitas informações, várias delas documentadas em estudos acadêmicos, relatórios institucionais, material de divulgação, etc. Outras, porém, ficaram sob o domínio dos agricultores e/ou técnicos. Tais informações, registradas ou não, estavam dispersas, o que dificultava o seu uso por outros agricultores, pelos novos membros da equipe do CTA e por outras pessoas interessadas. Para superar essa deficiência, gerar conhecimentos novos e realçar as lições aprendidas, sistematizou-se de forma participativa as experiências com sistemas agroflorestais (Souza, 2006).
Várias lições importantes foram coletivamente assimiladas nesse processo. Entre elas, o reconhecimento, por parte dos agricultores, da compatibilidade de algumas espécies arbóreas nativas com o café. Essa constatação possibilitou o manejo de tais espécies nos SAFs, contrariando a tradição de sua eliminação total das áreas de cultivo.
A sistematização permitiu também identificar lacunas de conhecimento relacionadas ao funcionamento ecológico dos sistemas. Entre elas, destacamos a ciclagem de nutrientes, a identificação de espécies arbóreas potenciais, a análise e levantamento dos serviços ambientais prestados pelos SAFs, como os efeitos sobre a conservação de fauna silvestre, do solo e da água.
CAFÉ COM CIÊNCIA
Para responder algumas das questões identificadas durante a sistematização, diversos projetos de pesquisa foram elaborados. Tais projetos, ou parte deles, estão sendo desenvolvidos em ambientes controlados ou em laboratórios, mas sem deixar de estar imersos em um processo mais amplo da dinâmica social de inovação. Esses projetos têm os mesmos agroecossistemas como foco, mas cada um olha o agroecossistema a partir de seu ângulo específico. A convergência desses olhares não têm sido fácil. Em um esforço de integração, os participantes dos projetos realizam reuniões quinzenais para planejar as ações e discutir os resultados ou assuntos relacionados aos temas de pesquisa.
Buscando intensificar essa integração e subsidiar o avanço dos conhecimentos dos grupos de agricultores(as) envolvidos, foram criados encontros de- nominados Café com Ciência. O primeiro encontro foi realizado em Ara- ponga e teve como foco a discussão dos objetivos e metodologias a serem utilizadas nos projetos de pesquisa. Para aprofundar o debate e apresentar alguns resultados preliminares, foi realizado no campus da UFV o Café com Ciência II, que deu a oportunidade para as famílias observarem e manusearem parte do instrumental de laboratório adotado nas pesquisas.
Alguns agricultores que participaram desses eventos manifestaram explicitamente o interesse em entender o funcionamento das técnicas por eles utilizadas no manejo de seus sistemas. Por isso, avaliam positiva- mente esse tipo de iniciativa e consideram necessários os projetos de pesquisa. Outros encontros deverão ser realizados no campo e no campus, para que, todos juntos, possamos entender os porquês das coisas.
Esses eventos foram planejados a partir da cobrança feita durante a sistematização pelos agricultores, que expressaram o desejo de participar de todas as fases da pesquisa, desde a elaboração das perguntas, passando pelo desenvolvimento, análise e discussão dos dados. Em- bora muitas pesquisas acadêmicas estivessem sendo conduzidas com material coletado nas áreas de experimentação dos agricultores, eles não se sentiam suficientemente integrados às mesmas.
A CONTRIBUIÇÃO DA PESQUISA CIENTÍFICA
Os estudos acadêmicos produzidos durante a trajetória de interação da UFV com o processo de desenvolvimento local na Zona da Mata produziram, ao todo, onze teses (mestrado ou doutorado); sete capítulos de livros; quatro artigos publicados em periódicos nacionais e cinco em periódicos internacionais; mais de trinta resumos publicados em anais de eventos nacionais e três em eventos internacionais; onze palestras proferidas em eventos nacionais e cinco em eventos internacionais; e mais de 40 publicações de divulgação científica.
Muitos desses estudos podem ser considerados como pesquisa-ação, ou seja, foram orientados para responder perguntas do tipo “O que fazer?” (Tripp, 2005). Outras pesquisas foram direcionadas por questões do tipo “Por quê?”, procurando compreender os processos ecológicos envolvidos no funcionamento das inovações, como, por exemplo, o entendimento da melhoria da ciclagem de nutrientes nos SAFs. Para realizar esse tipo de investigação, muitas vezes foi e continua sendo necessário o desenvolvimento de trabalhos em laboratórios ou casas de vegetação, assim como devem ser conduzidos experimentos controlados tanto nas propriedades dos agricultores quanto em estação experimental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A longa trajetória de interação entre universidade, o CTA e agricultores(as) propiciou o desenvolvi- mento de uma relação profunda, marcada pelo respeito e a confiança mútua, condição fundamental para a realização de qualquer projeto de pesquisa dessa natureza. Professores da UFV passaram a integrar o quadro de asso- ciados do CTA, fazendo parte do seu conselho e diretoria, e participam das instâncias de planejamento e deliberação da entidade. Tudo isso contribui para o sentido de compromisso recíproco entre os diversos atores na construção da Agroecologia na Zona da Mata de Minas Gerais.
Muitos desafios ainda permanecem. Entre eles, a incorporação de pesquisadores de outras áreas de estudo e o aprendizado multi/transdiciplinar na análise dos agroecossistemas. Para superar esses desafios, é preciso mudanças institucionais na organização da pesquisa e nas suas formas de financiamento, que permanecem fragmentadoras e distantes da realidade. É preciso também que a universidade reconheça oficialmente o verdadeiro valor dos agricultores(as) no desenvolvimento e produção do conhecimento, desconstruindo o mito da superioridade do saber científico.
Irene Maria Cardoso
professora do Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa
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Eugênio Alvarenga Ferrari
coordenador executivo do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata
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Referências Bibliográficas:
GONSALVES, J. et al. Participatory Research and Development for Sustainable Agriculture and Natural Resource Management: a sourcebook. Canadá, 2005.
SOUZA, H.N. Sistematização da experiência participativa com sistemas agroflorestais: rumo à sustentabilidade da agricultura familiar na Zona da Mata mineira, 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Viçosa. 163 p.
TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica, 2005. p. 443-466.
Baixe o artigo completo:
Revista V3N4 – Construindo o conhecimento agroecológico: trajetória de interação entre ONG, universidade e organizações de agricultores