Erika Speelman, Jeroen Groot, Kasper Kok, Pablo Tittonell e Luis García-Barrios
As comunidades rurais formadas por agricultores familiares e as paisagens em que vivem estão sendo cada vez mais afetadas pelos impactos locais causados por mudanças econômicas e institucionais globais. O livre comércio, a queda dos preços pagos aos produtores e a crescente importação de produtos baratos são alguns dos fatores que tendem a fazer com que os agricultores intensifiquem a sua produção com base nos pacotes tecnológicos da Revolução Verde. Ao mesmo tempo, muitas vezes sob pressão de corporações transnacionais e tratados internacionais, há políticas governamentais sendo implementadas para proteger os recursos naturais, o que pode reduzir ainda mais as opções de uso da terra pelos agricultores. Em um dos estados mais pobres do México, Chiapas, uma comunidade de pequenos agricultores mostra como conseguiu lidar com essas adversidades. Ao fortalecer a capacidade comunitária de tomar decisões e aumentar a colaboração entre as famílias, modos de vida e paisagens mais sustentáveis foram desenvolvidas.
TERRA E LIBERDADE
A comunidade de pequenos agricultores Terra e Liberdade, no município de Villaflores, Chiapas, foi criada oficial- mente em 1972, quando o governo mexicano concedeu a uma centena de famílias o direito de usar 2.200 hectares de terras para usufruto comunal, sob a forma jurídica conhecida como ejido. A área havia sido primeiramente povoada nos anos 1960, quando uma serraria foi construída para explorar as suas ricas florestas. Essa atividade atraiu muitos trabalha- dores remunerados, que complementavam os salários muito baixos coletando e vendendo folhas ornamentais da palmeira camedórea (Chamaedorea spp.), nativa da floresta. Quando a serraria fechou em 1972, os trabalhadores desempregados pediram para o governo estabelecer um ejido. Logo após a sua criação, a terra foi efetivamente dividida. Algumas famílias deram início ao cultivo do milho, enquanto outras continuaram tendo a extração insustentável das folhas das palmeiras como uma importante fonte de renda, levando à formação de dois grupos distintos, tendo como base os valores e a dependência das famílias em relação à agricultura ou à extração florestal.
USUFRUTO E O SISTEMA DOS EJIDOS
A palavra usufruto (um substantivo de origem romana) descreve o direito legal de usar ou desfrutar dos frutos ou lucros de algo que pertence a outra pessoa, podendo se referir à terra ou a outro tipo de propriedade. Os direitos de uso podem ser concedidos a uma ou várias pessoas ou de- tidos em regime comunal, sob a condição de que o bem não seja danificado ou destruído. O titular de um usufruto tem o direito de usar (usus) a propriedade e desfrutar de seus frutos (fructus), o que pode ser assumido literalmente, como a colheita de plantas e animais silvestres, mas inclui também os lucros obtidos com a venda de qualquer coisa produzida na terra ou a partir de seu arrendamento. Além de usus e fructus, a lei romana antiga prevê um terceiro direito de propriedade: o direito de abusar, consumir ou destruir a propriedade (abusus) ou o direito de vender para outra pessoa. Para se ter a propriedade plena, é preciso deter todos os três direitos.
O ejido tradicional do México foi baseado no sistema capulli asteca e usado até final dos anos 1600, quando foi substituído pela colonial encomienda. Depois da Revolução de 1917, o ejido foi reintegrado em alguns estados e, após 1934, tornou-se uma referência importante para o processo de re- forma agrária nacional. Sob o regime do ejido, indivíduos ou grupos podem adquirir somente o usufruto da propriedade, e não o título legal pleno, embora possam usar a terra por tempo indeterminado e passar os direitos para os seus filhos.
MUDANÇAS GLOBAIS, IMPACTOS LOCAIS
Nos 50 anos desde a sua criação, Terra e Liberdade tem enfrentado muitos desafios, mas nenhum se compara aos efeitos locais gerados pelos movimentos globais de liberalização do comércio e de preservação da natureza que convergiram a partir de meados da década de 1990.
A partir de 1950, as políticas agrícolas mexicanas voltaram-se para proteger os mercados nacionais e alcançar a autossuficiência na produção de milho e outros ali- mentos básicos. Depois de um período de estabilidade, a crise da dívida latino-americana de 1982 forçou o México a implementar políticas comerciais neoliberais, culminando com a ratificação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), em 1994, com um efeito devastador sobre o setor produtivo e os mercados locais. O preço do milho caiu drasticamente e o seu cultivo comercial deixou de ser viável para os pequenos produtores. Um agricultor do ejido vizinho de Los Angeles resumiu de forma simples os impactos sentidos: Antes do Nafta, nós vendíamos uma tonelada de milho para comprar duas toneladas de fertilizantes. Após o Nafta, temos que vender duas toneladas de milho para comprar uma tonelada de fertilizante.
Na mesma época, houve uma crescente conscientização global sobre a importância da biodiversidade. A Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, em 1992, levou à criação da Convenção sobre Diversidade Biológica e de novas políticas voltadas à conservação ambiental. A Reserva da Biosfera denominada La Sepultura foi criada na Sierra Madre de Chiapas em 1995, mas com o mínimo de envolvimento ou consideração em relação aos interesses das comunidades locais. Todo o território comunal tornou-se parte da zona de amortecimento da Reserva e, a partir daí, fortes limitações para o uso da terra foram impostas à comunidade. O uso tradicional do fogo para limpar a terra de cultivo e a extração de qualquer produto florestal se tornaram práticas proibidas.
AS PRIMEIRAS RESPOSTAS DA COMUNIDADE
Estratégias de vida baseadas no extrativismo florestal ou na produção de milho passaram a não ser mais viáveis ou permitidas. Como resultado dessas rápidas mudanças no arcabouço econômico e institucional, a comunidade perdeu segurança econômica, sobre- tudo em função dos impactos negativos sobre seus modos tradicionais de ocupação e uso do solo. As famílias com suficiente dinheiro, capacidade de trabalho e terra tinham condições de converter campos de milho em pastagens e começar a criar gado para ganhar a vida. Mas muitas outras não tinham essa opção, sendo obrigadas a abandonar a terra para procurar trabalho remunerado em outros lugares, principalmente nos EUA. Foram tempos difíceis, especialmente para as mulheres, que permaneceram em suas terras e tiveram que assumir também tarefas normalmente desempenhadas pelos homens nos sistemas sociais marcados pelo patriarca- lismo, como os ejidos. Como lembrou uma mulher: Quando meu marido estava nos EUA, eu tinha que trabalhar no campo com meus filhos antes de correr para uma reunião da escola, enquanto o meu filho mais velho ia participar de uma reunião da escola de suas irmãs mais novas. Além disso, a comunidade foi uma das poucas a resistir abertamente à criação da Re- serva da Biosfera, o que gerou um conflito aberto entre 2000 e 2004.
AJUDA QUE VEIO DE FORA
Em 2004, as autoridades da Re- serva pediram a pesquisadores da Universidade Autônoma de Chapingo que avaliassem a situação e sugerissem maneiras de contornar o conflito com a comunidade. Isso levou a um projeto participativo voltado a aprimorar as estruturas organizacionais locais e os mecanismos de tomada de decisão coletiva. Com apoio financeiro da própria Reserva, esse trabalho foi conduzido pela ONG mexicana Pronatura-Sur AC, que combina ações em defesa da biodiversidade e enfoques que visam à participação e o desenvolvimento social da comunidade.
O contato intenso e o compartilhamento de interesses, necessidades e expectativas fizeram com que a comunidade construísse uma relação de confiança com a ONG, que assumiu um papel de mediação entre os interesses locais e os externos. Os mecanismos de tomada de decisão comunitária foram reforçados pelo desenvolvimento de uma equipe mais consistente de gestão da comunidade e diversas comissões responsáveis por elaborar planos, normas e regulamentos, incluindo multas por quebra de contratos. Durante as reuniões mensais, chamadas de assembleias, toda a comunidade participava das decisões. Tais melhorias organizacionais também aumentaram a coesão social dentro da comunidade e posteriormente geraram mais confiança com relação a atores externos, como as autoridades da Reserva.
DESENVOLVENDO NOVOS SISTEMAS AGRÍCOLAS
Com seus meios de subsistência ainda ameaçados e muitos antigos migrantes regressando, a comunidade convidou a ONG para ajudá-los a desenvolver sistemas agrícolas mais sustentáveis. Os líderes locais assumiram o desafio e estabeleceram grupos democráticos que trabalharam juntos na produção, na transformação e na comercialização.
O primeiro projeto destinou-se ao cultivo de palmeira ornamental, que antes só era encontrada como espécie silvestre. A ideia de cultivar a palmeira já havia sido experimentada, mas todas as tentativas anteriores falharam devido à falta de participação local no desenho, no planejamento e na execução do projeto. Os agricultores envolvidos no cultivo da palmeira definiram suas próprias necessidades de assistência técnica. A ONG ajudou a estabelecer viveiros para a produção de mudas e a organizar reuniões e visitas de campo para proporcionar intercâmbio de conhecimentos sobre técnicas de gestão, produção e colheita da palmeira. Os agricultores começaram a fazer seu próprio beneficiamento e logo se tornaram capazes de assumir de forma autônoma as negociações com compradores nacionais e internacionais.
Depois de aprimorar suas habilidades de auto-organização, foram estruturados grupos para a produção de café e o manejo do fogo. Como eram limitadas as opções para incrementar seus meios de vida, muitas famílias agricultoras expandiram o cultivo de café de sombra nas parcelas florestais. Por meio da troca de conhecimentos e experiências, da certificação orgânica e da venda coletiva dos produtos, o grupo conseguiu aumentar a quantidade e a qualidade da produção e elevar os preços que recebiam.
Essa comunidade e sua paisagem tiveram que superar desafios vindos de várias frentes – mudanças nos mercados nacionais e globais, bem como a criação de uma Reserva da Biosfera com impactos significativos sobre as suas formas tradicionais de uso da terra. Felizmente, lideranças locais fortes e democráticas entraram em cena. Com as decisões tomadas em âmbito comunitário, sistemas novos e sustentáveis de uso da terra foram desenvolvidos, gerando fontes de renda mais seguras, empoderando a comunidade e promovendo uma reavaliação coletiva sobre a importância da floresta para a integridade da paisagem agrícola. Um agricultor expressou assim sua própria mudança de percepção: Eu nunca havia pensado sobre a forma como explorávamos as árvores e colhíamos as folhas da palmeira no passado. Só agora percebo que precisamos ser responsáveis na forma como manejamos a floresta para permitir a continuação da vida aqui para os nossos filhos e netos.
PLANEJAMENTO TERRITORIAL DA PAISAGEM
Os avanços descritos aqui podem ser atribuídos a uma população local altamente motivada e bem organizada, ao apoio de longo prazo de uma ONG e à grande área de floresta sob gestão comunitária. Para aumentar sua capacidade de adaptação às mudanças futuras, em 2010, a comunidade embarcou em um projeto de planejamento participativo do território comunal. Conduzido pela Pronatura-Sur e por pesquisadores da Universidade de Wageningen, o projeto voltou-se à identificação e à discussão das formas atuais e futuras de uso da terra. Os campos agrícolas e as atividades neles realizadas foram mapeados de maneira colaborativa. Esse exercício gerou muitos debates, levando os agricultores a refletirem sobre mudanças nos regimes de propriedade e uso da terra dentro da comunidade. Esse processo também permitiu que todos os envolvidos desenvolvessem uma melhor compreensão sobre o território comunal.
Algumas pessoas apontaram a necessidade de continuar a avaliar os valores atribuídos à floresta por diferentes grupos da comunidade, ressaltando que é preciso fortalecer os laços de cooperação entre os agricultores. Para tanto, os autores deste artigo desenvolveram ferramentas inovadoras, como jogos de tabuleiro adaptados às especificidades da comunidade, buscando envolver ativamente as pessoas a trabalhar a prática da comunicação, da coordenação e da colaboração entre os agricultores. Os jogadores foram desafiados a balancear suas decisões sobre os usos da terra tomadas individual e coletivamente, levando-os a refletir mais profundamente sobre o papel da floresta na paisagem. Dessa forma, embora diferentes visões sobre o valor da floresta permaneçam existindo entre os agricultores, o fortalecimento dos processos democráticos de tomada de decisão, bem como o emprego de ferramentas para facilitar os debates e os processos cooperativos têm apoiado firmemente a comunidade rumo à construção de consensos sobre a importância da gestão da paisagem para o seu futuro.
Erika Speelman
Universidade de Wageningen, Holanda
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Jeroen Groot
Universidade de Wageningen, Holanda
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Kasper Kok
Universidade de Wageningen, Holanda
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Pablo Tittonell
Universidade de Wageningen, Holanda
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Luis García-Barrios
Colegio de la Frontera Sur, Chiapas, México
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Baixe o artigo completo:
Revista V11N3 – Cooperação comunitária: enfrentando ameaças econômicas e institucionais em Chiapas, México