Num contexto de crise econômica e ecológica gerado pela disseminação da agricultura industrial, camponeses do norte da Holanda se mobilizaram para construir alternativas técnicas e institucionais que atualmente assumem um papel fundamental como referência para a institucionalização da Agroecologia.
Leonardo van den Berg
O advento da agricultura industrial e da gestão ambiental centralizada tem exercido uma pressão considerável sobre os agricultores europeus, levando muitos a abandonarem a agricultura. Após a Segunda Guerra Mundial, a política e as ciências agrárias europeias foram orientadas para a industrialização da agricultura, com ênfase no crescimento dos estabelecimentos agrícolas e no incentivo à implantação de monoculturas, ao uso de fertilizantes químicos e à importação de forragens. Quando a poluição das águas subterrâneas e as chuvas ácidas atingiram muitas partes do continente nos anos 1980, ficaram evidentes as consequências da industrialização. Diante desse cenário crítico, a União Européia adotou diretrizes para reduzir a emissão de amônia e proteger as áreas naturais.
DESAFIANDO A AGRICULTURA INDUSTRIAL
Os camponeses das florestas do norte da Frísia, região situada no norte da Holanda, nunca se identificaram com a perspectiva produtivista da agricultura industrial. Afinal, ela contrariava seus modos de vida, baseados em pequenos estabelecimentos dedicados à produção leiteira, compostos por pequenos campos delimitados e produzindo em harmonia com lagoas, cercas vivas e quebra-ventos de amieiros, carvalhos e espécies de arbustos variados. Na década de 1980, seguindo as diretrizes europeias, uma nova lei ambiental impôs uma série de limitações às atividades agrícolas realizadas ao redor das cercas vivas, por considerá-las sensíveis à acidez. Os camponeses das florestas no norte da Frísia se sentiram tolhidos em suas práticas tradicionais e começaram a se organizar para reagir.
Eles conseguiram convencer as autoridades municipais e provinciais de que seus modos de produção agrícola de fato favoreciam – e não prejudicavam – a conservação das cercas vivas. Os agricultores se comprometeram a preservar as cercas vivas, as lagoas, os quebra-ventos de amieiro e as estradas arenosas que enriqueciam a paisagem. Em troca, ficariam isentos dos novos regulamentos.
Esse foi apenas o primeiro de muitos desafios. A crescente pressão para intensificar a produção e torna-la cada vez mais barata para atender o mercado, combinada com regulamentos ambientais mais rigorosos, ameaçavam os territórios camponeses que sempre haviam conciliado a agricultura com a natureza. Mas os camponeses das florestas do norte da Frísia não ficaram passivos, respondendo a esses desafios com a fundação das primeiras cooperativas territoriais.
Outros agricultores seguiram o exemplo e, em 2002, todas as cooperativas territoriais da região aderiram à cooperativa Florestas da Frísia do Norte (NFW, na sigla em holandês), que atualmente conta com a participação de mais de mil produtores de leite.
As cooperativas buscam não só lidar com as novas ameaças, mas também atuam para criar alternativas que fortaleçam o seu território. Para tanto, atuam em três níveis: o nível do estabelecimento agrícola, o nível da paisagem (ou territorial) e o nível político-institucional, o qual eles tiveram que influenciar para remover restrições institucionais que impediam o desenvolvimento de outras inovações sociotécnicas.
CRIANDO ESPAÇO POLÍTICO PARA A AGRICULTURA DE CICLO FECHADO
No nível do estabelecimento rural, os camponeses enfrentaram uma nova regulação que os proibia de espalhar o esterco sobre a terra, como sempre fizeram. Com o objetivo de reduzir as emissões de amônia, deveriam a partir de então incorporar o esterco ao solo. No entanto, os agricultores consideraram essa medida inadequada ao seu modo de agricultura. Por um lado, a maquinaria para a injeção do esterco líquido no solo era dispendiosa e seus campos eram muito pequenos e úmidos para suportar aquelas máquinas pesadas. Um segundo aspecto ainda mais importante foi que os camponeses sabiam que a injeção do esterco levaria a uma maior lixiviação de nutrientes para as águas subterrâneas e que isso comprometeria a vida do solo.
Por mais uma vez eles conseguiram convencer o governo de que poderiam elaborar melhores soluções para reduzir a lixiviação de amônia por meio do desenvolvimento de um modelo agrícola alternativo baseado em uma gestão ambiental integrada. Em 1995, a cooperativa foi isenta da regulamentação relacionada à injeção do esterco no solo, e o governo lhe concedeu o status de experimento. Em 1998, pesquisadores da Universidade de Wageningen associaram-se à experiência. Utilizando abordagens de pesquisa-ação inovadoras, realizaram-se testes de campo com mais de 60 agricultores e com pesquisadores de diferentes disciplinas.
A partir desses experimentos, foi concebido o enfoque denominado kringlooplandbouw, um modo de agricultura que pode ser traduzido como de ciclo fechado. A agricultura de ciclo fechado procura maximizar o uso e a qualidade dos recursos produtivos disponíveis no estabelecimento rural e no território. Para melhorar a qualidade do esterco, os camponeses começaram a cultivar alimentos com mais fibra para seu gado, incluindo uma diversidade de espécies gramíneas e outras herbáceas.
Também passaram a alimentar seu gado com menos soja e menos proteína, o que contribuiu para a saúde dos animais, bem como para a melhoria da qualidade do esterco. Antes da aplicação no solo, o esterco é misturado com palha. Essas e outras mudanças não só reduziram a lixiviação de nitrogênio, mas também melhoraram a qualidade do leite e do solo, ao mesmo tempo em que diminuíram os gastos com fertilizantes químicos e cuidados com a saúde dos animais.
O sucesso da agricultura de ciclo fechado não passou despercebido, tendo extrapolado os limites das florestas do norte da Frísia. A abordagem já foi adotada por mais de 5% de todas as propriedades leiteiras na Holanda.
ALIANÇAS ENTRE CAMPONESES E AMBIENTALISTAS
No nível da paisagem, a cooperativa NFW formou alianças inéditas com organizações que atuavam na defesa da conservação da natureza. Inéditas porque, historicamente, agricultores e ambientalistas do país mantinham uma relação antagônica. Essas novas alianças conseguiram convencer as autoridades provinciais a extinguir a legislação que excluía a agricultura do rol de atividades de manejo da paisagem e da natureza. Por meio dessa aliança, foi elaborado um plano de manejo ecológico da paisagem que concilia agricultura e conservação da natureza. Cerca de 80% da paisagem natural da área atualmente é manejada pela cooperativa. Isso inclui 1.650 km de cinturão de árvores quebra-ventos, 400 lagoas e 6.900 hectares de áreas coletivas que abrigam aves de pradaria e 4.000 hectares que abrigam gansos. Como resultado, a área se tornou mais rica em biodiversidade e a paisagem tornou-se mais atraente. A cooperativa NFW aproveitou a oportunidade para fomentar o turismo na região, reabrindo trilhas antigas para ciclismo e caminhadas.
Apesar dos êxitos da cooperativa NFW, a ideia de ter agricultores manejando paisagens ainda é vista com reticência ou é marginalizada pelos formuladores de políticas ambientais e pelas organizações de agricultores hegemônicas, que tendem a assumir posturas conservadoras. Além disso, tradicionalmente, a maior parte dos subsídios europeus e holandeses colocados à disposição para iniciativas de manejo da paisagem e conservação da natureza continua sendo destinada a organizações ambientalistas. No entanto, nos últimos anos, a cooperativa NFW uniu forças com outras cooperativas territoriais na Holanda para negociar um maior apoio financeiro para suas atividades de manejo da paisagem. Isso contribuiu para novas orientações na Política Agrícola Comum da União Europeia de 2015, que passou a recompensar financeiramente os grupos de agricultores pelos serviços que eles prestam à sociedade, incluindo o manejo da biodiversidade.
INSTITUCIONALIZAÇÃO E AMPLIAÇÃO DA ESCALA
Para o desenvolvimento e a aceitação da agricultura de ciclo fechado e das paisagens manejadas pelos agricultores, os camponeses das florestas do norte da Frísia tiveram que influenciar o ambiente político-institucional. Em um primeiro momento, decidiram se afastar do mesmo. Mais especificamente, os camponeses rejeitaram orientações de agrônomos, veterinários e serviços de assistência técnica convencional sobre alimentação de animais, aplicação de fertilizantes químicos, avaliação da saúde animal e manejo de pastagens. Dessa forma, desafiaram o histórico antagonismo entre a agricultura e a conservação da natureza que, em muitos casos, ainda está profundamente enraizado nos governos, nas políticas e nas legislações. Além disso, distanciaram-se das formas convencionais de pesquisa para se dedicarem a processos de inovação conduzidos com o protagonismo dos próprios agricultores.
Os desafios continuam: embora a NFW continue isenta de punições, o governo nacional ainda não considerou rever suas leis sobre injeção de esterco líquido no solo. Além disso, a compensação que os camponeses obtêm por manejarem suas paisagens ainda é insuficiente. Seja como for, o sucesso da NFW é incontestável. Agora que a agricultura de ciclo fechado e as paisagens manejadas pelos camponeses estão bem desenvolvidas e reconhecidas, pode-se dizer que as cooperativas territoriais e seus aliados conseguiram transformar o ambiente institucional mais amplo da agricultura na Holanda.
Contrariando os preceitos da modernização agrícola para alimentar bovinos com forragem de alto teor proteico, serviços de assistência técnica e veterinários passaram a recomendar a inclusão de mais fibra na alimentação. Pesquisadores apoiam agricultores pioneiros em escalas muito maiores do que antes. Províncias (e a União Europeia) agora reconhecem que a agricultura não necessariamente prejudica a natureza. Pelo contrário, deve ser promovida como importante aliada para a conservação ambiental. Os processadores de produtos lácteos já reconhecem que as propriedades de ciclo fechado produzem leite de qualidade superior e alguns estão começando a pagar preços mais elevados por isso. Esses são avanços importantes para a transição agroecológica, oferecendo um caminho alternativo promissor para os camponeses que não podem (ou não querem) sobreviver no setor agrícola industrial na Holanda.
Leonardo van den Berg
(leonardo@cultivatecollective. org) é um dos cofundadores do coletivo Cultivate! e atualmente também está conduzindo uma pesquisa no programa de Doutorado da Universidade de Viçosa (MG) sobre os múltiplos níveis da institucionalização da Agroecologia no Brasil.
O autor gostaria de agradecer Henk Kieft e Attje Meekma por suas contribuições para uma versão mais estendida deste artigo (ver Berg et al., 2016). Este artigo também foi parcialmente baseado em Van den Berg, L .; Kieft, H.; Meekma, A. Closed-Loop Farming and Cooperative Innovation in the Northern Frisian Woodlands. In: Brescia, Steve. (Org.). Fertile Ground: Scaling up Agroecology from the Ground Up. Oakland, CA: Food First, 2017.
Baixe o artigo completo:
Agriculturas V14,N1 – Dos territórios à política: Agroecologia camponesa na Holanda