Vanessa Schottz, Maitê Maronhas e Elisabeth Cardoso
O grupo de trabalho de mulheres da Articulação nacional de Agroecologia (GT Mulheres da ANA) constitui um espaço de auto-organização das mulheres no campo agroecológico e de diálogo entre o feminismo e a Agroecologia, sendo formado por mais de duzentas organizações mistas, feministas e movimentos sociais.
A partir da constatação de que havia uma falta de problematização sobre as desigualdades nas relações de poder e nos papéis desempenhados por cada membro das famílias agricultoras, o GT iniciou, em 2008, a sistematização de experiências agroecológicas protagonizadas por mulheres agricultoras, camponesas, agroextrativistas, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhas, entre outras. A ideia era dar visibilidade e valorizar o trabalho desenvolvido pelas mulheres na Agroecologia, além de aprimorar a capacidade das mesmas de refletir sobre suas próprias experiências, seu papel na construção da Agroecologia e o papel da Agroecologia em suas vidas (CARDOSO; SCHOTTZ, 2010). Ao todo, foram sistematizadas 56 experiências individuais e coletivas em diferentes contextos socioambientais.
À luz da economia feminista consideramos qualquer tarefa realizada em um agroecossistema como trabalho, que pode ser categorizado como reprodutivo ou produtivo. O trabalho reprodutivo é aquele que tem como função a produção doméstica de bens e serviços, além da execução de tarefas de cuidado e/ou apoio a pessoas dependentes (BORDERIAS; CARRASCO, 1994), enquanto o produtivo é aquele que gera bens/produtos com finalidade comercial e econômica. Ainda que o trabalho reprodutivo seja imprescindível à vida, há uma hierarquização, na qual o trabalho produtivo, atribuído em geral ao domínio masculino, recebe maior reconhecimento social, por ter valor mercantil e gerar trocas monetárias (HIRATA; KERGOAT, 2007). Já o trabalho reprodutivo é associado ao afeto, com pouco valor e visibilidade, o que o aproxima de um não trabalho.
É TRABALHO, NÃO É AJUDA!
Ao levar em conta todos os componentes do sistema de produção, a Agroecologia tem o potencial de contribuir para dar visibilidade ao trabalho desenvolvido pelas mulheres, considerando-o fundamental para a sustentabilidade do sistema e para a reprodução familiar. Todavia, as sistematizações apontaram que esse reconhecimento não ocorre de maneira automática. Ao refletir sobre suas experiências, muitas mulheres perceberam que há uma enorme desvalorização do seu trabalho por parte dos maridos e também da própria comunidade, que enxergam as suas iniciativas de organizar-se em grupos produtivos como perda de tempo ou invenção de moda de quem não tem nada pra fazer. O grupo de mulheres ecologistas do Morro do Forno (Rio Grande do Sul) relata que, no início, os moradores da comunidade mandavam a gente ir dormir, já que não tínhamos outra coisa pra fazer.
Diversos depoimentos destacam que a postura de alguns maridos restringe ou mesmo impede a participação das mulheres em grupos produtivos e em espaços de auto-organização.
“Muitos maridos e companheiros não acreditavam que a experiência fosse dar certo, desestimularam muitas delas e, em outros casos mais extremos, muitos homens não deixavam as mulheres mais sair de casa para participar do grupo.” (Grupo de Mulheres da Agroindústria São José, no município de Porto Vera Cruz/RS)
No Rio Grande do Norte, o Grupo de Mulheres Decididas a Vencer do Assentamento Mulugunzinho, em Mossoró, identificou o machismo e a divisão sexual do trabalho como as principais barreiras enfrentadas ao longo de sua trajetória. Segundo as agricultoras, seus companheiros não compreendiam a lógica das reuniões e se recusavam a cuidar dos filhos quando elas se ausentavam de casa para ir aos encontros de mulheres.
As sistematizações também apontaram que, assim como o trabalho das mulheres é invisível aos olhos dos homens e da sociedade, as rendas monetária e não monetária obtidas por elas também contam com pouco reconhecimento social e dificilmente são consideradas pelas políticas públicas.
Uma das situações que expressam essa invisibilidade refere-se à dificuldade das agricultoras em obter crédito junto aos bancos, sobretudo quando sua produção é destinada ao autoconsumo, ainda que formalmente exista uma linha de financiamento específica para as mulheres (o Pronaf Mulher). Para justificar a recusa do crédito, os bancos alegam ser baixa a capacidade de pagamento por parte das mulheres. Portanto, ainda que o autoconsumo configure uma das principais estratégias de garantia da soberania alimentar, assegurando a qualidade da alimentação, reduzindo as despesas com alimentos e, consequentemente, conferindo maior autonomia da família frente ao mercado, tal prática carece de maior valorização e apoio por parte das políticas públicas, incluindo programas de fomento e crédito.
Assim, o trabalho reprodutivo, ainda que não gere renda monetária, também precisa ser contabilizado na análise econômica dos agroecossistemas, uma vez que no espaço doméstico muitos produtos são beneficiados, serviços in – dispensáveis para o bem-estar da família e da comunidade são diariamente realizados, muitas horas são trabalhadas e recursos da família estão ali investidos.
Mesmo no caso da renda monetária obtida pelas mulheres, a percepção é de que sua contribuição para a economia familiar também seja pouco relevante por ser prioritariamente destinada a suprir necessidades domésticas invisíveis, como roupas, calçados, material escolar para as crianças, entre outros itens.
Observou-se ainda que, associada à hierarquização entre o trabalho produtivo e o reprodutivo, ocorre uma divisão não igualitária das atribuições domésticas e de âmbito familiar. Tarefas como cuidado com idosos, educação e cuidado com crianças, lavar roupas, preparação de comida e limpeza da casa são realizadas quase que exclusivamente pelas mulheres, cabendo ao homem, quando presente nesse espaço, o papel de ajudante que deve se envolver em tarefas mais masculinas, como poda de árvores e arbustos, manutenção de carros, motos e ferramentas.
Essa sobrecarga tem consequências para a vida das mulheres, da comunidade e da sociedade em geral. Ao gastarem mais horas na realização de suas funções, quando comparamos aos homens, essas mulheres dispõem de menos tempo para investir em sua educação, lazer e participação social.
“No início das atividades, o grupo era formado por vinte mulheres entusiasmadas com a nova experiência de trabalho coletivo e geração de renda. Mas ocorreu que muitas dessas mulheres não tinham o apoio da família. (…) Este também foi um fato de desistência de algumas mulheres que não venciam trabalhar em casa e na agroindústria.” (Grupo de Mulheres da Agroindústria São José, no município de Porto Vera Cruz/RS)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sistematização, segundo a avaliação das próprias mulheres, colaborou muito para que elas refletissem sobre suas experiências e percebessem que sua contribuição para a Agroecologia não configura uma mera ajuda e que, portanto, precisa ser reconhecida e valorizada como trabalho. Além disso, identificaram a importância do fortalecimento de sua identidade como agricultoras.
Em várias situações, a sistematização possibilitou que as mulheres reconhecessem a importância da renda conseguida com a venda de seus produtos, como hortaliças, doces e artesanato. Esse processo evidenciou também as diversas formas de opressão sofridas pelas mulheres, que relataram se sentirem mais fortalecidas ao saber que outras vivenciavam a mesma situação. A sistematização estimulou também a reflexão sobre as dimensões da autonomia econômica e apontou para a participação cada vez maior das mulheres em espaços muitas vezes ocupados somente por homens.
“Hoje me sinto mais valorizada. Não tive muita dificuldade, mas mudou muito na divisão das tarefas de casa, na criação dos filhos, foi uma mudança e aprendizado muito grande. Antes, com meu pai, só a mulher ia para a cozinha. Com meu marido e filhos, isso já mudou muito, todos ajudam. Considero que hoje sou mais respeitada, como também aprendi a respeitar.” (Didi, agricultora de Montes Claros/MG)
Decidir sobre sua própria vida, tomar parte em decisões que influenciam a vida de todos (comunidade, sociedade) é uma questão de poder. Nas relações de gênero desiguais, como as que vivenciamos, as pequenas parcelas de poder ou os pequenos poderes que lhes tocam e que lhes permitem romper, em alguns momentos ou circunstâncias, a supremacia masculina, são poderes tremendamente desiguais (COSTA, 1998, p. 19)
A posição e a condição social em que as mulheres se reconhecem e são reconhecidas propiciam que as mesmas acumulem conhecimentos sobre questões ligadas à valorização e à reprodução da vida e que se encontram no cerne do desenvolvimento da Agroecologia, como a produção de alimentos saudáveis; a rejeição ao uso de agrotóxicos e cultivos transgênicos, considerando suas consequências sociais, para a saúde e para o meio ambiente; a luta contra a perda da biodiversidade, notadamente de cultivos crioulos e tradicionais; a guarda de sementes crioulas e/ou tradicionais; a manutenção de relações de solidariedade, cuidados, entre outros aspectos.
Ao mesmo tempo que é importante reconhecer esses conhecimentos, é fundamental não assumir uma perspectiva essencialista sobre os mesmos. Afinal, as mulheres se tornam mulheres através de um processo de construção social de gênero tanto quanto os homens se tornam homens. É necessário, portanto, que todos os sujeitos – mulheres, homens, jovens, adultos e idosos – sejam capazes de exercitar e valorizar esses conhecimentos, pois são essenciais para a construção desse novo paradigma de desenvolvimento que é a Agroecologia.
As sistematizações apontaram para a existência de experiências em que a produção agroecológica contribuiu para o empoderamento das mulheres, que, a partir de então, puderam sair do âmbito estritamente doméstico, aumentando a sua participação em espaços públicos e obtendo mais independência e autoestima. Todavia, essas conquistas só foram possíveis quando a produção agroecológica foi efetivamente articulada a estratégias de garantia da autonomia econômica e política das mulheres, numa perspectiva ativa de superação da divisão sexual do trabalho.
Vanessa Schottz
professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do GT Mulheres da ANA [email protected]
Maitê Maronhas
assessora na Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil) e integrante do GT Mulheres da ANA
Elisabeth Cardoso
Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM) e integrante do GT Mulheres da ANA
Referências Bibliográficas:
ANA (Articulação Nacional de Agroecologia). Mulheres construindo a agroecologia . Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia. Rio de Janeiro, 2008.
BORDERíAS, C.; CARRASCO, C. Las Mujeres y el Trabajo: aproximaciones historicas, sociológicas y econômicas In: BORDERíAS; CARRASCO; ALEMANY (Org.). Las Mujeres y el Trabajo: rupturas conceptuales. Barcelona: Icaria-Suhem, 1994.
CARDOSO, Elisabeth Maria; SCHOTTZ, Vanessa. Mulheres construindo a Agroecologia no Brasil. Revista Agriculturas, v.6, n.4, dez. 2009.
COSTA, ANA ALICE. As donas no poder. Mulher e política na Bahia. Salvador: NEIM/Ufba e Assembleia Legislativa da Bahia, 1998. (Coleção Bahianas, vol.2).
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas Configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cad. Pesqui., São Paulo, v.37, n.132, set./dez. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/cp/v37n132/a0537132.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2014.
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Revista V12N4 – É trabalho, não é ajuda! Um olhar feminista sobre o trabalho das mulheres na Agroecologia