Pablo Tittonell, Michael Misiko e Isaac Ekise
Nós pesquisadores frequentemente visitamos propriedades para extrair informações, coletar medidas e amostras, mas depois partimos e muitas vezes não voltamos. Publicamos nossos resulta- dos para a comunidade científica, assumindo que o produto de nossa pesquisa beneficiará os agricultores com o decorrer do tempo. No entanto, os agricultores não costumam receber um retorno direto desses resultados.
Ao conduzir pesquisas de campo sobre nutrientes do solo na região Oeste do Quênia, percebemos que os agricultores apreciam bastante quando repassamos informações sobre nossos estudos. Decidimos então organizar uma discussão com eles sobre processos básicos e, assim, ajudá-los a avaliar o uso de tecnologias, ao mesmo tempo em que eles nos ajudaram a entender melhor como tomam suas decisões de manejo.
O CONTEXTO DE NOSSA PESQUISA
A pesquisa foi conduzida em sessenta propriedades em Emuhaya, região Oeste do Quênia, e teve como objetivo compreender melhor o balanço de nutrientes do solo para aprimorar as estratégias de manejo integrado da fertilidade do solo (MIFS) (ver Quadro). O solo na pequena propriedade da África sub-Saariana tende a apresentar grande variação de qualidade. Principalmente em áreas densamente povoadas como o Oeste do Quênia, a fertilidade do solo normalmente decai nas propriedades à medida que se distancia do local de moradia. Esses padrões heterogêneos, conhecidos como gradientes de fertilidade do solo, resultam parcialmente da variabilidade do tipo de solos na paisagem. São também conseqüência das decisões do agricultor sobre a alocação de fontes de nutrientes (como estercos) e sobre onde melhor empregar seu trabalho. Quando as fontes de nutrientes ou a mão-de-obra são escassas, os agricultores tendem a concentrar esses recursos nos campos e cultivos mais próximos de suas moradas. Ao longo do tempo, esse padrão de uso dos recursos leva ao cenário típico observado nas diferentes áreas da África sub-Saariana: cultivos bem desenvolvidos no entorno das casas ou nas aldeias e cultivos falhados e de baixa produtividade nos terrenos mais distantes. Visivelmente, os gradientes de fertilidade do solo devem ser levados em consideração ao se desenhar estratégias de MIFS.
Nossa coleta de dados incluiu o desenho de mapas de fluxos de recursos (ver exemplo na Figura 1), o cálculo do balanço de nutrientes combinado à amostragem de solos dos diferentes campos das propriedades e o envio para análise em laboratório. Também observamos grandes variações ao medir a produtividade do milho em diferentes áreas das propriedades. Percebemos que os agricultores tendiam a concentrar nos quintais os aportes de resíduos orgânicos. Muito freqüentemente, restos culturais são também coletados em outras áreas e trazidos para pilhas de compostagem, onde são misturados com estercos para serem aplicados nos quintais antes dos próximos plantios. Em geral, os agricultores usam pouco fertilizante mineral, e aqueles que o fazem aplicam menos de 20 kg/ha (número notavelmente baixo quando comparado aos 200 kg/ha que são comuns na agricultura européia).
Os balanços parciais de nutrientes (entradas, como fertilizantes orgânicos e minerais, menos as saídas, com as colheitas e a remoção dos restos culturais) foram negativos para a maioria dos campos de todos os agricultores. Os balanços mais negativos foram os calculados para os campos próximos e a distâncias medianas das casas. Apesar de essas serem as parcelas que recebem os maiores aportes de nutrientes, são também as que mais produzem e que, portanto, mais exportam nutrientes com as colheitas. Já os campos mais distantes, embora recebam menores entradas de nutrientes, também são os que apresentam baixa produtividade. Portanto, a retirada de nutrientes deles é pequena. Ao longo de um gradiente da fertilidade do solo, as produtividades do milho variaram de quase 4 toneladas por hectare nas áreas próximas à moradia das famílias para menos de 0,5 tonelada por hectare em campos mais distantes.
TORNANDO OS RESULTADOS DAS PESQUISAS MAIS ACESSÍVEIS
Os agricultores estavam interessados em conhecer os resultados das nossas análises, mas entregar nossos relatórios com tabelas cheias de dados analíticos não faria muito sentido. Assim, decidimos primeiro discutir com a comunidade alguns conceitos básicos sobre balanço de nutrientes, disponibilidade dos nutrientes do solo e nutrição de plantas. Organizamos uma oficina com 15 agricultores e agricultoras na Escola Agrícola de Campo de Emanyonyi, em Emuhaya. Em primeiro lugar, desenhamos em uma cartolina uma propriedade típica do local. Os agricultores identificaram a existência de gradientes de fertilidade do solo e inclusive tinham nomes específicos para cada uma das áreas em suas propriedades, distinguindo-as entre quintais, áreas próximas e de distância mediana, campos distantes, baixa- das e pastagens. Durante as primeiras visitas às propriedades, os agricultores classificaram suas áreas conforme avaliavam sua fertilidade, usando sinais de +, –ou +/–no mapa para indicar áreas de alta, baixa ou média fertilidade do solo (ver Figura 2). Em seguida, relembramos toda nossa atividade de pesquisa em suas propriedades, tendo também em mãos os resultados das análises de solo. Fornecemos valores de referência para os diferentes indicadores do solo (carbono orgânico, nitrogênio total, pH, etc.), correspondendo a solos pobres e férteis da região.
ANALOGIAS ÚTEIS
Para tornar a discussão sobre nutrição de plantas e indicadores de fertilidade dos solos mais acessível aos agricultores, usamos uma analogia simples, tendo como base os alimentos típicos consumidos naquela região. A refeição típica inclui uma porção generosa de ugali (polenta de fubá de milho branco), uma porção um pouco menor de nyama (um picadinho de carne, cozido ou frito) e uma porção ainda menor de sukuma wikii (repolho ou outro legume cozido). Comparamos os cultivos com o corpo humano, que necessita de alimento para crescer e funcionar. Explicamos que os alimentos para os cultivos compreendem principalmente nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K), além de outros nutrientes em menores proporções. Utilizamos termos locais para cada um dos elementos e associamos N ao ugali, P ao nyama e K ao sukuma wikii. Nesse sentido, uma planta viçosa e saudável precisa de uma grande quantidade de ugali (N), uma quantidade menor de nyama (P) e algum sukuma (K). Em relação ao potássio (K), por exemplo, esse pressuposto funciona bastante bem para a realidade de Emuhaya, onde a deficiência do nutriente não é generalizada e apenas em alguns casos foi observada resposta à aplicação de fertilizantes potássicos. Explicamos ainda que, além do N, do P e do K, as plantas precisam de outros macro e micronutrientes, que são para os vegetais o correspondente a sopas, molhos, sal e outros temperos que consumimos em nossas refeições.
Observando os relatórios, alguns dos participantes perguntaram sobre o papel do carbono e do pH do solo. Seguindo a linha das analogias, indicamos que o carbono do solo representa o prato onde a comida é servida. Assim, a quantidade de comida pode ser farta e suficiente para uma boa produção, mas se o prato for pequeno, pouca comida poderá ser servida (baixa disponibilidade). Já o pH do solo foi comparado ao gosto dos alimentos. Baixo pH indica gosto ruim. Portanto, o ali- mento pode estar disponível, mas a planta não o absorverá completamente se ele não for apetitoso.
Com base nessas analogias lançamos mão de dois exemplos dos resultados das análises de solo, usando valores de referência para os solos locais, conforme havia sido fornecido aos agricultores, junto com os resultados analíticos. Um dos exemplos foi uma amostra de solo com teores relativamente altos de potássio e carbono e baixos para nitrogênio e fósforo, representada por um desenho de um pratão cheio de sukuma e pouco nyama e ugali. O outro exemplo apresentou teores baixos de carbono e nitrogênio, enquanto que os de potássio eram próximos aos adequados e os de fósforo estavam em excesso (o prato não era grande o suficiente para comportar todo o nyama). Perto do desenho de um prato com ugali, nyama e sukuma, colocamos gráficos de barras coloridas para representar esses indicadores de solo. Após desenhar os gráficos de barras repetidas vezes ao lado das refeições, os agricultores acabaram se familiarizando com a representação gráfica, de forma que daí em diante apenas os gráficos foram utilizados. Contudo, continuamos usando a analogia, já que os agricultores davam boas risadas de certas imagens, como a de uma pessoa que se alimentava exclusivamente de ugali e que engordava, mas ficava total- mente improdutiva.
COMPREENDENDO AS FONTES DE NUTRIENTES
Nosso objetivo seguinte foi caracterizar as várias fontes de nutrientes disponíveis aos agricultores com base nos conteúdos de cada uma. Quando pedimos que fossem lembradas as diferentes fontes de nutrientes que eles conhecem, os agricultores mencionaram primeiro os fertilizantes químicos, depois os estercos e por último a adubação verde e as plantas leguminosas. Alguns dos agricultores apontaram que o principal problema em relação aos estercos é sua baixa disponibilidade na propriedade, que restringe a adubação a apenas uma pequena parcela das terras. Já entre os agricultores que não mantinham os animais em currais, o esforço exigido para compostar, carregar e aplicar o adubo orgânico também foi citado como um limitante para o uso dos estercos como fertilizante. Poucos agricultores, entre- tanto, pareciam estar cientes de que a qualidade do esterco é influenciada pela dieta dos animais, tema que estimulou vários debates no grupo.
Uma agricultora perguntou por que ela conseguia maiores produções em certas áreas do que em outras, considerando que aplicava a mesma quantidade e tipo de fertilizante em toda a propriedade. Ela também usou a mesma variedade de milho em todas as áreas, que foram semeadas e capinadas ao mesmo tempo e plantadas no mesmo espaçamento. Além disso, ela não observou diferenças nas características visualmente perceptíveis dos solos de sua propriedade, como textura, declividade e profundidade. Os demais agricultores levantaram possibilidades para a variação de produção na propriedade, tais como diferenças nos níveis de incidência de insetos-praga e doenças ou na forma de dispor o adubo, talvez em função de ser aplicado por duas pessoas diferentes.
Em seguida utilizamos os relatórios com as análises de solo de sua propriedade e fizemos um desenho para ilustrar a variabilidade por ela observada, usando novamente a analogia dos alimentos. Com base nesse diagrama, levantamos a hipótese de que ela provavelmente aplicou no passado mais fontes de nutrientes em locais perto de sua casa. Ela confirmou. Esse passou a ser um exemplo muito útil, já que as análises de solo claramente indicavam maiores teores de N, P e K nas áreas mais próximas das moradias. Portanto, uma quantidade maior de nutrientes presentes no solo, somada àquelas aportadas pelos adubos, levou a maiores produções próximo de onde ela morava.
EXPLICANDO O BALANÇO DE NUTRIENTES
A discussão sobre o conceito de balanço de nutrientes mostrou-se mais difícil. Começamos comparando-o ao fluxo de caixa necessário para gerenciar uma loja: “Se queremos ter lucro, nosso balanço deve ser positivo, o que significa que as receitas devem ser maiores que as despesas.” Explicamos que, embora seja praticamente impossível obter balanços positivos em todos os campos de uma mesma propriedade, podemos ao menos evitar que sejam tão negativos. Os solos se degradarão se os balanços de nutrientes forem negativos por muito tempo. Foram também listados as transferências de nutrientes entre os campos de produção mais distantes e a moradia (alimentos consumidos pela família), bem como as saídas de nutrientes da propriedades com a venda dos produtos. Os agricultores ficaram surpresos com a idéia de que os nutrientes são trazidos para o sistema quando os animais criados em áreas coletivas são recolhidos à noite na propriedade. A discussão acabou com um sentimento geral de que o conceito do balanço de nutrientes é muito abstrato e confuso para os agricultores: “Então, os balanços de nutrientes são mais negativos nas áreas onde conseguimos as melhores produções?!!…”
A PONTE ENTRE O CONHECIMENTO CIENTÍFICO E O SABER DOS AGRICULTORES
Ao contrário das tecnologias que dependem puramente de aportes externos, o enfoque do manejo integrado da fertilidade do solo é intensivo em conhecimento. De maneira geral, as estratégias de MIFS podem ser desenvolvidas a partir do que os agricultores conhecem e de suas lógicas. O conhecimento dos agricultores é, em grande medida, construído com base em suas experiências anteriores, e sua capacidade adaptativa lhes permite manejar sistemas extremamente complexos. Em locais como o Oeste do Quênia, por exemplo, os agricultores têm conseguido manter suas famílias em menos de 1 hectare. Apesar disso, princípios como estoque de nutrientes, perdas de nutrientes ou eficiência de absorção de nutrientes, que são centrais para o MIFS, são freqüentemente muito abstratos. Mesmo o conceito de nutrientes é pouco familiar para muitos agricultores.
De qualquer forma, nossas discussões com os agricultores mostraram que eles apreciaram o contato direto com os pesquisadores, assim como o fato de serem capazes de acessar os resultados de suas pesquisas e de discutir assuntos tão complexos quanto a ciclagem de nutrientes. Eles demonstraram interesse em aprender mais a respeito dos processos que interferem na fertilidade dos solos e em particular sobre como suas opções contribuem para a heterogeneidade dos solos.
A experiência aqui apresentada sugere que as estratégias de MIFS não criarão raízes nas comunidades rurais a menos que sejam empregadas práticas paralelas que empoderem os agricultores a fazer suas próprias escolhas sobre a adoção e o uso de tecnologias. Especificamente em relação ao problema da baixa fertilidade dos solos, as estratégias para disseminar o MIFS devem ir além das áreas demonstrativas ou da simples comparação com outras tecnologias. Elas devem enfatizar a importância das discussões junto aos agricultores sobre os processos básicos que determinam a fertilidade dos solos.
PabloTittonell, Michael Misiko e Isaac Ekise
Tropical Soil Biology and Fertility Institute of the International Centre for Tropical Agriculture (TSBF CIAT)
[email protected]; [email protected];
[email protected]
Referências Bibliográficas:
MISIKO, M.. Fertile ground? Soil fertility management and the African smallholder. Holanda, Wageningen University, 2007.
TITTONEL, P. Msimu wa Kupanda – Targeting resources for integrated soil fertility management within diverse systems of East Africa. Holanda, Wageningen University, 2007.
VANLAUWE, B.; TITTONELL, P.; MUKALAMA, J. Within-farm soil fertility gradients affect response of maize to fertilizer application in western Kenya. Nutrient Cycling in Agroecosystems, 76: 171-182, 2006.
Baixe o artigo completo:
Revista V5N3 – Falando de ciência do solo com os agricultores