Clodoaldo da Silva Jorge
A Associação das Cooperativas de Apoio à Economia Familiar (Ascoob) foi criada em setembro de 1999 por cinco cooperativas de crédito rural presentes no semiárido e no litoral da Bahia. A criação da entidade foi inspirada nas práticas inovadoras do Movimento de Organização Comunitária (MOC) e de movimentos sociais no campo, com o intuito de unir esforços para o cumprimento dos princípios do cooperativismo de crédito, tendo por base o fortalecimento da economia familiar rural. A Ascoob conta atualmente com 45 mil cooperados e coo- peradas. As onze cooperativas a ela filiadas possuem pontos de atendimento em 36 municípios do estado presentes nos territórios do Sisal, Bacia do Jacuípe, Portal do Sertão, Recôncavo Sul, Piemonte da Diamantina, Litoral Norte e Agreste de Alagoinhas, Irecê e Baixo Sul.
A associação tem sua atuação orientada por duas principais motivações. Em primeiro lugar, garantir a operacionalização eficiente das cooperativas de crédito rural, criadas e fortalecidas a partir de 1994 pelas organizações sociais do estado. Isso implica o desafio de prover as famílias rurais de acesso ao crédito seguro, sistemático e de baixo custo, em contraposição ao estilo operacional dos agentes financeiros tradicionais (bancos) que exclui os mais pobres. Em segundo lugar, visa constituir-se como uma frente de cooperativas para a efetivação de negociações coletivas por recursos junto aos agentes financeiros e ao governo federal, bem como difundir e expandir a utilização do microcrédito para as po- pulações de baixa renda como instrumento de desenvolvimento sustentável.
Desde a sua criação, a Ascoob vem conquistando um expressivo alcance social e espacial, exercendo papel importante na articulação das cooperativas em torno a agendas comuns, tais como a melhor operacionalização do crédito e as negociações de recursos oficiais do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Para desempenhar suas funções, celebrou convênios com o Banco do Brasil e o Banco do Nordeste do Brasil (BNB). Também tem atuado junto a redes da sociedade civil, com destaque para a Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural das Organizações Não-Governamentais do Nordeste (Rede Ater/NE) e organizações em nível local e regional, nos municípios e estado, voltadas para a promoção da agricultura familiar e da economia solidária. Mantém ainda articulações nos âmbitos estadual e nacional com a Cooperativa Central de Crédito da Agricultura Familiar e Economia Solidária da Bahia (Ascoob Central), a Associação do Cooperativismo de Economia Familiar e Solidária (Ancosol) e a União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes).
ABRANGÊNCIA E CARACTERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS DE ATUAÇÃO
Nos territórios de abrangência da Ascoob, sobretudo no Território da Cidadania do Sisal, os problemas estruturais da sociedade causaram a degradação da vida humana na área rural, levando milhares de famílias à situação de extrema pobreza. Entre as principais dificuldades enfrentadas pela população de baixa renda, destaca-se a falta de terra em quantidade e qualidade suficientes para a alimentação e a geração de renda. Somam-se a isso os impactos ambientais negativos gerados pela adoção de uma base tecnológica e produtiva oriunda da Revolução Verde.
No âmbito dos territórios, as políticas públicas implementadas são direcionadas para a estruturação de cadeias produtivas especializadas (caprinovinocultura, apicultura, leite, cacau, etc) e uma agricultura baseada na economia de escala, focada na produção empresarial. As políticas de crédito, em especial, têm induzido a essa especialização produtiva e à forte dependência de insumos externos aos agroecossistemas. Da mesma forma, a assistência técnica está diretamente vinculada aos projetos de crédito financiados pelos bancos.
A partir da década de 1980, as políticas de crédito e assistência técnica no Território do Sisal estimularam a implantação da cultura do sisal por considerá-la como única alternativa de produção e geração de renda, altamente atrelada a um mercado até então favorável. O processo de especialização produtiva desencadeado resultou, porém, na desestruturação dos agroecossistemas e na crescente vulnerabilidade das economias da agricultura familiar da região. Apesar dos resulta- dos negativos dessa lógica de investimento, os programas estadual e nacional voltados para o desenvolvimento territorial permanecem incentivando a estruturação de cadeias produtivas especializadas, a partir, por exemplo, da distribuição de matrizes e reprodutores ovinos e caprinos.
A OPERACIONALIZAÇÃO DO PRONAF
Praticamente todas as cooperativas filiadas à Ascoob têm ou já tiveram alguma experiência com financiamento, o que produziu efeitos significativos para a geração de renda, o emprego e a formação da cidadania, sobretudo quando as beneficiárias são famílias de baixa renda. Entretanto, a escala de atendimento era limitada, dada a restrição dos recursos disponíveis.
Cientes de que as cooperativas de crédito contribuem consideravelmente para o desenvolvimento da agricultura familiar e diante da necessidade da ampliação do volume de recursos para as famílias mais empobrecidas, a Ascoob celebrou convênios negociais Pronaf com o Banco do Brasil e o BNB, nos quais o crédito chega aos agricultores familiares acompanhado de um processo de assistência técnica.
Além de assegurar o dinamismo das atividades financiadas, sempre esteve em pauta a discussão sobre a capacidade de pagamento dos empréstimos nas reuniões da Ascoob. Nesse sentido, tratava-se de ter o cuidado de financiar projetos viáveis economicamente, de modo a garantir não só o progresso dos beneficiários, como também o reembolso dos recursos.
Esses projetos são operações de investimento com um valor médio de R$ 4 mil. O reembolso pode ser feito em até oito anos, com até três anos de carência e juros que variam de 1% a 5%. Os projetos elaborados pelos(as) técnicos(as) de campo são negociados pelas cooperativas e recebem posteriormente a assessoria técnica da Ascoob.
Para a operacionalização dos projetos pelo Banco do Brasil, são disponibilizados os aplicativos Cadastro Massificado Rural (CMR) e Canal Facilitador de Crédito (CFC), que possibilitam o envio de arquivos pelas cooperativas filiadas para as agências do banco operadoras do convênio.
Apesar dos avanços em relação à democratização do crédito rural e à expansão do microcrédito produtivo, as ações desenvolvidas pelos(as) técnicos(as) e os próprios projetos continuavam com a mesma roupagem do modelo convencional, ou seja, enfocados no financiamento de insumos e, consequentemente, gerando dependência externa. A assessoria e o crédito eram concebidos a partir de um enfoque parcial sobre os agroecossistemas de base familiar e, na mesma ótica dos agentes financeiros oficiais, visavam exclusivamente estimular a produção de escala sempre atrelada à lógica do mercado. Dessa forma, as complexas relações sociais, econômicas e ecológicas responsáveis pelo funciona- mento dos agroecossistemas não eram consideradas como referenciais de análise.
Em 2003, a partir do espaço de interação e aprendizagem proporcionado pela Rede Ater/NE, diversos processos foram desencadeados, em particular, os módulos de for- mação sobre construção do conhecimento agroecológico. Essas atividades levaram o departamento de assistência técnica da Ascoob a realizar profunda reflexão relacionada às características necessárias para o financiamento dos agroecossistemas familiares. Assim, a extensão rural convencional com foco na modernização e especialização da agricultura vem sendo substituída por processos educativos alicerçados em uma prática dialógica e pedagogicamente construtivista, tendo em vista as novas demandas e complexidades sociais correntes no meio rural.
A partir dessa nova compreensão, do enfoque sistêmico e holístico, da Agroecologia como norteadora das ações, do foco nas famílias e nas suas condições socioprodutivas e da incorporação de jovens e mulheres, os departamentos de de Ater, crédito, educação e microfinanças passaram a conduzir ações conjuntas e integradas na perspectiva de pensar o desenvolvimento não apenas no âmbito das unidades familiares, mas, sobretudo, fomentando processos de desen- volvimento comunitário. Assim, na base de cada cooperativa de crédito filiada são organizados os Departamentos de Desenvolvimento Comunitário (DDCs), por meio dos quais educadores(as), técnicos(as) e agentes de crédito planejam e executam atividades de sensibilização, educação, gestão das unidades familiares, organização da produção, valorização e interação dos conhecimentos dos agricultores e promoção da cidadania.
Com o objetivo de superar os paradigmas convencionais que orientam os projetos de assessoria técnica e crédito, a Ascoob intensificou o debate com as instituições financeiras no sentido de viabilizar projetos orientados pelo enfoque agroecológico. Dessa forma, a assessoria técnica passou a identificar as tendências evolutivas dos sistemas e as estratégias das famílias agricultoras para conceber os projetos de crédito como instrumento de apoio à estruturação de agroecossistemas segundo os princípios da convivência com o semiárido. Difere, portanto, do sistema oficial de crédito, que difunde o modelo impulsionado pela Revolução Verde com uma concepção reducionista que ainda persiste na mente de muitos técnicos(as) e, infelizmente, também na de muitos agricultores e agricultoras.
O diálogo da Ascoob com as instituições financeiras, em especial com a Superintendência do Banco do Brasil e as agências operadoras dos convênios negociais, tem sido capaz de promover inovações nos projetos por meio da incorporação de itens – objetos de financiamento – antes ausentes nas bases de dados do banco, tais como cisternas (placas e calçadão), equipamentos de tração animal e financiamento da mão de obra familiar. Dessa forma, vem sendo possível substituir a lógica estreita das planilhas vinculadas a produções específicas.
METODOLOGIA E ESTRATÉGIA
A elaboração de um projeto de crédito se inicia com um diagnóstico participativo envolvendo as famílias em todos os processos de planejamento da propriedade. Como primeiro passo, os agricultores familiares desenham sua propriedade tal como se apresenta na atualidade. Representam os roçados, as instalações, as fontes de água e de forragem, as áreas de vegetação nativa, entre outros elementos estruturais do agroecossistema. No segundo momento, é feito um novo desenho com a propriedade do jeito que eles gostariam que fosse.
É por meio do desenho que a família indica seu projeto estratégico e o que cada membro pode fazer para aproveitar melhor os recursos da unidade familiar. Assim, as interpretações do primeiro desenho da propriedade, as reflexões complementares e, evidentemente, a participação efetiva de todos os membros da família tornam possível obter um diagnóstico mais fiel da realidade. E, munida com essas informações, a assessoria técnica contribui para a elaboração de projetos de crédito voltados a reorganizar os agroecossistemas.
O desenho da propriedade do futuro explicita objetivos estratégicos que podem ser visualizados por meio da composição do sistema idealizado, seus subsistemas e interações. Ajuda também a identificar potencialidades e limitações e definir arranjos locais a serem experimentados tendo em vista a promoção de melhores níveis de segurança alimentar e renda, bem como a sustentabilidade ambiental.
O financiamento do agroecossistema passa a ser então concebido com base em percepções compartilhadas com as famílias. As inovações técnicas e as infraestruturas financiadas são incorporadas a partir de uma visão mais clara sobre suas funções sistêmicas.
A assistência técnica é realizada de forma sistemática por meio de reuniões, oficinas e intercâmbios. Nessas ocasiões, busca-se promover a reflexão sobre as diferentes práticas realizadas pelos agricultores e agricultoras, tendo em vista a sustentabilidade e a autonomia dos agroecossistemas. Dessa forma, a assessoria aos agricultores e suas famílias não está apenas vinculada ao projeto de crédito, mas ao enfoque sistêmico aplicado a projetos de transição agroecológica.
RESULTADOS ALCANÇADOS
Além de assegurar a estruturação e o dinamismo dos agroecossistemas financiados, os projetos têm conseguido garantir o reembolso dos recursos. Isso pode ser comprovado pelo nível de inadimplência das operações do Pronaf das famílias que ter se mantido abaixo de 2%.
Para medir o grau de evolução da renda das famílias beneficiadas é primeiramente definido o marco zero, que cor- responde ao perfil verificado no momento que antecede a implantação do projeto financiado. Em seguida, são realizados diagnósticos periódicos. Esses exercícios procuram evidenciar a situação das famílias considerando aspectos como renda, produção, relações sociais, alimentação e saúde em diferentes momentos. Dessa forma, espera-se aferir os efetivos resultados dos financiamentos sobre as condições de vida das famílias agricultoras.
Percebe-se, portanto, que com o acesso ao crédito e à assistência técnica os agricultores e agricultoras vêm conseguindo estruturar os seus sistemas, o que tem lhes auxiliado no aprimoramento dos manejos técnicos empregados em suas propriedades. Além disso, é importante destacar que os resultados desse processo extrapolam o plano meramente econômico, já que também são notáveis os avanços em termos de inclusão social.
Clodoaldo da Silva Jorge
técnico em Agropecuária coordenador do Departamento de Ater e Crédito da Ascoob
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Revista V7N2 – Fortalecendo a economia solidária e a agricultura familiar: a experiência da Ascoob na Bahia