Romier Sousa, Roberta Coelho, Adebaro Reis, Franciara Silva, Hueliton Azevedo e Rodrigo Gomes
As ciências agrárias têm sido historicamente marcadas por um ensino de caráter tecnicista, homogeneizador e fragmentado, o que em grande medida foi potencializado pela ampla disseminação do modelo de desenvolvimento rural baseado na chamada Revolução Verde. Um dos problemas desse modelo hegemônico é a supervalorização do conhecimento técnico-científico, caracterizando o ensino, a pesquisa e a extensão como processos hierárquicos e descompassados com relação à diversidade das realidades da agricultura familiar camponesa.
Diante dessa realidade, autores como Mussoi (2011) apontam a necessidade de pensar uma nova maneira de promover a formação para o desenvolvimento rural sustentável. Nesse mesmo contexto, diversos grupos de pesquisadores, extensionistas e educadores vêm fomentando formas de resistência social e construindo abordagens diferenciadas para a formação técnica e profissional. É nessa direção que se verifica uma verdadeira ocupação da escola por filhos e filhas de famílias agricultoras, assentadas da Reforma Agrária e de uma diversidade de categoria sociais, que operam segundo a lógica cultural e econômica do modo camponês de produção (PLOEG, 2008).
Esse movimento renovador vem sendo paulatinamente institucionalizado e pode ser mensurado pelo aumento significativo de cursos, grupos de pesquisa e núcleos de Agroecologia em vários estados brasileiros. Essa evolução positiva ocorre mesmo que, na maioria das vezes, não haja apoio político e financeiro das universidades, centros de pesquisa e empresas de assessoria.
Em relação aos cursos, identificam-se vários de nível médio, superior e de pós-graduação em diversas áreas das Ciências Agrárias com ênfase ou habilitação em Agroecologia. Existem também núcleos de extensão e pesquisa em Agroecologia institucionalizados a partir de editais do CNPq, bem como grupos de Agroecologia, agricultura ecológica, agrofloresta, entre outros, organizados por estudantes de diferentes cursos de várias universidades e institutos no país.
Entretanto, a inserção do enfoque agroecológico nas instituições de ensino, pesquisa e extensão tem enfrentado diversos desafios, entre eles: a) a sua consolidação enquanto lógica de produzir e disseminar conhecimentos; b) a ampliação da participação das organizações sociais e dos agricultores nas tomadas de decisão sobre as prioridades na geração de conhecimentos; c) a mudança efetiva na episteme hegemônica e a consolidação de um campo metodológico específico que conceda suporte a essa nova forma de gerar conhecimentos; e d) a ampliação dessas ações no âmbito das políticas públicas, rompendo com a noção de que sua incidência deve ficar restrita a experiências em escala local.
Tomando como referência essas questões de fundo, este artigo busca refletir sobre como o enfoque agroecológico foi introduzido no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) – Campus Castanhal e como tem influenciado a forma de construir conhecimento junto aos agricultores familiares na Amazônia paraense.
UMA TRANSIÇÃO INSTITUCIONAL
O IFPA – Campus Castanhal localiza-se no município de Castanhal, mesorregião do nordeste paraense. Ao longo de seus mais de 90 anos de ensino agrícola, o instituto promoveu uma prática educacional fortemente atrelada ao padrão tecnicista de agricultura. No entanto, a partir de 2003, a instituição vem passando por uma série de mudanças de ordem curricular, pedagógica e de infraestrutura. Embora desencadeadas por fatores administrativos e políticos, tais mudanças também decorreram da inserção de novos profissionais portadores de uma proposta de educação diferenciada em seu quadro permanente e giram em torno da ressignificação do ensino agrícola, aproximando-o dos preceitos da Educação do Campo. E foi assim que o enfoque agroecológico se inseriu na instituição, a fim de formar sujeitos comprometidos com o desenvolvimento rural sustentável da região.
Pode-se dizer que o princípio desse processo de internalização do paradigma agroecológico na instituição se deu em um âmbito mais pragmático, com a implantação de unidades de experimentação de base ecológica. Essas unidades resultaram de atividades práticas de disciplinas do curso de nível técnico em Agropecuária. A inserção inicial buscou dialogar com a crescente demanda por formação nessa área dos educandos à época, ou seja, a sua perspectiva era eminentemente técnica. Contudo, percebeu-se que o avanço do debate sobre a Agroecologia deve- ria articular o conjunto das organizações da agricultura familiar na região, tendo em vista as características de seus sistemas de produção e a disputa de projetos de desenvolvimento rural estabelecida no território.
Diante desse desafio, constituiu- se uma turma específica de filhos de famílias agricultoras vinculadas a movi- mentos sociais. Essa ação foi desenvolvida a partir do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (SOUSA, 2011) e possibilitou uma série de novas dinâmicas: (a) a aproximação da escola com movimentos sociais e comunidades tradicionais; (b) a participação dessa turma em eventos de discussão sobre os rumos da Educação do Campo; (c) o estabelecimento de parcerias entre o IFPA e instituições da sociedade civil; e (d) a realização de cursos de formação em Agroecologia para camponeses.
DIVERSIFICANDO ESTRATÉGIAS PARA A INTERNALIZAÇÃO DO ENFOQUE AGROECOLÓGICO
A criação do Núcleo de Estudos em Agroecologia e Fortalecimento da Agricultura Familiar Camponesa (NEA) foi fundamental para a articulação de professores, educandos e técnicos que desenvolviam atividades no campo agroecológico, mas que muitas vezes se encontravam dispersos no campus.
No campo tecnológico, a implantação de experiências práticas em estabelecimentos rurais de agricultores da região tem sido uma importante estratégia de articulação entre o instituto e a sociedade, uma vez que possibilita que as ações de construção do conhecimento agroecológico ocorram também fora dos muros da instituição.
Do ponto de vista metodológico, tem-se adotado a implantação de Unidades de Pesquisa Pedagógicas de Experimentação Agroecológica (Upeas) como espaços físicos de ensino–pesquisa–extensão concebidos com a finalidade de apoiar a diversificação produtiva e estimular o desenvolvimento de inovações tecnológicas contextualizadas à realidade. Uma das características mais expressivas dessas atividades é a busca constante pelo estabelecimento de diálogo e articulação entre os conhecimentos dos educadores, educandos e agricultores envolvidos em dinâmicas de experimentação local, rompendo a lógica de hierarquiza- ção na produção do conhecimento científico.
Assim, a partir de uma realidade concreta ou de um problema identificado, os atores conduzem pesquisas, desenvolvem atividades e constroem conhecimentos coletivamente. O trabalho pode consistir em implantar um SAF, iniciar uma criação de abelhas ou uma bioconstrução. O importante é garantir um processo horizontal de geração e disseminação de conhecimentos com enfoque agroecológico. Como exemplo desses espaços de diálogo e articulação, temos a Upea de apicultura implantada a partir da identificação de uma demanda de famílias ribeirinhas da Ilha do Capim, no município de Abaetetuba (ver Quadro 1).
Outra estratégia importante na geração e disseminação de conhecimentos junto aos agricultores camponeses foi a criação da Incubadora Tecnológica de Desenvolvimento e Inovação de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Incubitec), que tem por objetivo a promoção de tecnologias sociais através da criação de empreendimentos econômicos solidários (associações e cooperativas). Tendo como foco aumentar a capacidade de autogestão dos agricultores e o desenvolvimento sustentável, são conduzidas atividades de desenvolvimento e inovação de tecnologias e processos voltados para a formação dos agricultores, o fortalecimento da organização social, a produção e a comercialização.
Atualmente, o NEA e a Incubitec realizam ações de assessoria técnica em diversos municípios da região, envolvendo 15 empreendimentos, totalizando quase mil famílias atendidas. As ações são voltadas especialmente para assessorar processos de fortalecimento organizacional, cooperativismo e práticas de base ecológica.
Quadro 1. (Link para o artigo completo no final do post)
A AGROECOLOGIA NO ENSINO SUPERIOR
A criação dos cursos superiores no Campus Castanhal (Agronomia e Tecnologia em Aquicultura) possibilitou o aprofundamento do diálogo com as comunidades por meio da extensão tecnológica com enfoque agroecológico e da economia solidária.
O curso de Agronomia ofertado no instituto possui uma proposta inovadora e um desenho curricular que tem como ponto forte a formação para o entendimento da lógica de funcionamento da agricultura familiar amazônica, buscando compreender os saberes e as práticas desenvolvidas por esses grupos sociais. Além do enfoque sistêmico em seu currículo, o curso prevê um estágio de vivência supervisionado, realizado nos 3º, 7º e 8º semestres, que tem como objetivo a imersão dos educandos no meio rural, momento que possibilita fazer uma análise dos sistemas de produção dos estabelecimentos rurais familiares e da relação destes com o meio circundante.
ENSINAMENTOS E DESAFIOS
A partir da experiência no IFPA, percebe-se que não é necessário possuir um curso formal de Agroecologia ou mesmo uma disciplina específica para desenvolver o enfoque agroecológico, mesmo em instituições com formação historicamente conservadora. Assim, o que determina seu grau de internalização é a correlação de forças existentes. A participação das comunidades rurais e da sociedade civil organizada pode contribuir na construção dessa inserção, tendo em vista a geração de demandas reais e a pressão social exercida pelos grupos sociais organizados.
Outro elemento importante diz respeito ao processo de produção de conhecimento científico, que deve levar em consideração os saberes acumulados pelos camponeses e valorizar a sua capacidade de também produzir conheci- mento, especialmente na Amazônia, onde o modelo de modernização não se consagrou em grande parte do território. Nessa perspectiva, verifica-se que a relação direta com as comunidades e as demandas dos agricultores familiares proporcionam a promoção de inovações e/ou novidades contextualizadas e que possuem aplicação real. E é dessa forma que o processo de produção de conhecimento e a própria formação dos educandos da instituição têm favorecido o que Long e Ploeg (2005) denominam de criação conjunta do conhecimento.
Porém, ainda que esse procedimento se diferencie do padrão pedagógico convencional, ele traz consigo expressivos desafios. Uma das questões é a resistência por parte de alguns educandos e educadores em fugir dos modelos convencionais. Essa resistência se deve em grande medida à própria formação profissional dos educadores envolvidos nessas ações, já que, historicamente, eles não foram preparados para trabalhar com um enfoque holístico ou mesmo exercitar práticas educativas em que a dialogicidade esteja no centro da construção social de conhecimento (FREIRE, 2005).
Por fim, o desafio se refere à falta de compatibilidade entre a duração dos períodos letivos e o tempo necessário para que os trabalhos de extensão produzam resultados, uma vez que a maior parte deles está atrelada a processos de desenvolvimento comunitários de longo prazo que exigem uma constância das atividades. Porém, muito por conta da dinâmica dos cursos e da própria instituição, essas atividades de extensão têm dificuldades de se estabelecer de maneira mais continuada. Ademais, os próprios projetos, tanto de extensão rural como aqueles de extensão universitária financiados por instituições públicas, têm curta duração, sendo dificilmente renovados para períodos subsequentes, o que também não permite ações continuadas de média ou longa duração.
Romier Sousa
Eng. agrônomo, MSc., professor do IFPA – Campus Castanhal
[email protected]
Roberta Coelho
Eng. florestal, Dra., professora do IFPA – Campus Castanhal
[email protected]
Adebaro Reis
Economista, MSc., professor do IFPA – Campus Castanhal
[email protected]
Franciara Silva
Educanda do curso de Agronomia do IFPA – Campus Castanhal
[email protected]
Hueliton Azevedo
Educando do curso de Agronomia do IFPA – Campus Castanhal
[email protected]
Rodrigo Gomes
Educando do curso de Agronomia do IFPA – Campus Castanhal
[email protected]
Referências Bibliográficas:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
MUSSOI, E. M. Política de Extensión Rural Agroecológica en Brasil: avances e desafíos en la transición en las instituciones oficiales. 2011. Dissertação (Mestrado) – UNIA/ UCO/UPO, Córdoba.
LONG, Norman; PLOEG, Jan Douwe van der. Heterogeneidade, ator e estrutura: para a reconstituição do conceito de estrutura. In: BOOTH, D. (Ed.) Rethinking Social Development: theory, research and practice. Inglaterra: Longman, 2005. p. 62-90.
PLOEG, J.D. van der. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.
SOUSA, Romier da P. Rompiendo las cercas: formación pro- fesional y Agroecología. Una mirada crítica de una experiencia en la Amazonia brasileña. Baeza: UNIA/UCO/UPO, 2011.
WIESE, H. Apicultura: novos tempos. Guaíba: Agropecuária, 2000.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N3 – Fortalecendo territórios de vida: agricultores familiares e educadores unidos na construção da Agroecologia na Amazônia paraense