Matias köhler e Paulo Brack
O Brasil possui a maior diversidade de plantas do mundo. Da Amazônia ao Pampa, passando pela Caatinga, pelo Cerrado, pelo pantanal e pela mata Atlântica, a riqueza de paisagens naturais está associada à variedade de espécies que nelas habitam. Os levantamentos mais recentes apontam em torno de 32.797 diferentes espécies de angiospermas (plantas com flores e frutos) coabitando os nossos limites geográficos. Somente no rio Grande do sul, mais de 4,5 mil angiospermas são conhecidas (FiOrAVANti, 2016).
Mas qual a relevância desse conhecimento para a nossa sociedade? O que a biodiversidade tem a agregar ao nosso dia a dia? A questão é que, acompanhando essa riqueza de espécies vegetais, praticamente indissociável, está a diversidade cultural de populações humanas que convivem com essas plantas e com elas apreendem muitos ensinamentos: desde o reconhecimento de sua importância ecossistêmica ao aproveitamento como fonte de alimentos, remédios, fibras, corantes, abrigo e tantas outras funcionalidades.
Eis que, então, emerge a socioagrobiodiversidade. Ou seja, o conjunto de elementos da biodiversidade (plantas, animais, insetos, polinizadores, fungos, etc.) aplicado na agricultura por comunidades humanas que carregam e fortalecem a identidade dessa relação. Na prática, são famílias agricultoras, comunidades tradicionais, coletivos autônomos que buscam explorar os recursos da biodiversidade de forma sustentável, por meio de sistemas de produção ecológica, garantindo a conservação ambiental, a geração de renda e a promoção de soberania alimentar.
Neste artigo, compartilhamos relatos e experiências sobre como as frutas nativas, parte desses recursos da agrobiodiversidade, têm sido promovidas, cultivadas e valorizadas no estado do Rio Grande do Sul (RS) por diferentes atores e segmentos da sociedade.
POTENCIAL NEGLIGENCIADO
Embora a nossa flora seja a mais diversa do mundo, quantas de suas plantas conhecemos de fato? Quais são seus usos, características e potenciais? Na prática, sabemos muito pouco, e isso é refletido em nossa estreita base da dieta alimentar. Atualmente, apenas 15 espécies de plantas são responsáveis por mais de 90% da energia alimentar que a população mundial obtém (FAO, 2005), sendo que, dessas, apenas duas podem ser consideradas nativas do Brasil: o amendoim e a mandioca.
Mas esse reduzido número de espécies utilizadas na alimentação não significa que existem poucas plantas alimentícias. Surpreendentemente, a quantidade é bem significativa e sua variedade não é nem um pouco monótona. Uma das publicações com maior número de plantas alimentícias citadas é a do botânico alemão Günther W. H. Kunkel, que em 1984 listou 12,5 mil espécies, sendo que a lista contempla basicamente a flora dos países europeus, com poucos representantes da flora tropical (KUN- KEL, 1984).
Outras publicações apontam que, em média, cerca de 10% do total de espécies de um bioma seria de plantas alimentícias (DÍAZ-BETANCOURT, 1999). Para a Região Metropolitana de Porto Alegre, Valdely F. Kinupp, notório pesquisador das Plantas Alimentícias Não Convencionais (Pancs), demonstrou que 21% da flora local, estimada em 1,5 mil espécies, é alimentícia (KINUPP, 2007).
No Rio Grande do Sul, um estudo preliminar realizado em 2007 identificou 109 espécies nativas que possuem frutos ou sementes alimentícias, entre árvores, arbustos e palmeiras (BRACK et al., 2007). Em outro levantamento mais recente, mas ainda não publicado (comunicação pessoal), os autores ampliam o reconhecimento para 200 espécies incluindo, agora, as plantas herbáceas, trepadeiras e epífitas.
Percebe-se, portanto, que a monotonia alimentar não se deve à falta de opções. Deve-se, primeiramente, à deficiência de conhecimento sobre a existência das espécies, suas características e seus potenciais de uso, em amplo sentido, tanto do ponto de vista técnico — em termos de métodos de colheita, plantio, manejo, processamento, etc. — como do ponto de vista mais básico — simplesmente saber se uma planta é comestível ou não.
Transposto esse primeiro desafio, a falta de opção pode se dar quando o grande público vai atrás desses alimentos em feiras ou mercados e não os encontra. Mas esse problema pode ser alterado em sua origem, que é o limitado incentivo por parte das políticas de governo à transição das grandes monoculturas para sistemas de produção de base ecológica, integrando e valorizando recursos da socioagrobiodiversidade.
Contudo, o fato é que, desde a progressiva colonização europeia e a pressão sobre as comunidades indígenas, os hábitos e culturas do Velho Mundo foram sobrepondo-se à diversidade das tradições e das culturas locais. Em 1587, apenas oitenta e poucos anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, Gabriel Soares de Souza já testemunhava a disseminação de plantas euro-asiáticas em solo brasileiro, como a cana-de-açúcar, o trigo, a cevada, bem como as uvas, a maçã, o marmelo e o figo (SOUSA, 1938).
Assim, toda a diversidade de alimentos associada à cultura indígena local foi sendo gradativamente desprezada. Ingás, cajás, araticuns, araçás, cambucás, pequis, jatobás e tantas outras espécies, que integravam a dieta e a cultura das populações nativas, foram marginalizadas e até tratadas com demérito. Mesmo assim, diversos recursos indígenas foram incorporados pelos europeus invasores, tanto por uma questão de sobrevivência quanto pela apreciação e degustação, sendo o caso do abacaxi, do aipim, das abóboras, do guaraná, da mandioca, dentre outras espécies.
Em geral, a inserção de plantas e alimentos exóticos em nossa cultura foi tão massiva que chegamos ao ponto de ter dificuldade de reconhecer o que são e quais são as plantas nativas, fenômeno que Crosby (2011) denominou de imperialismo ecológico. Tal fato se torna caricato ao vermos frutas nativas serem chamadas de exóticas, em mercados ou publicidades, enquanto as frutas consideradas convencionais são aquelas padronizadas e encontradas em praticamente todos os mercados do mundo. Não por acaso, neste artigo e em outras proposições, as frutas nativas são consideradas plantas alimentícias não convencionais, pois, em sua maioria, passam despercebidas ou são desconhecidas por grande parte da população, especialmente a urbana, tornando-se necessário apresentá-las e falar de seus usos, características e potenciais.
O SUCESSO NO EXTERIOR
Um dos casos mais emblemáticos é o da goiaba-serrana, também conhecida como feijoa ou goiaba-do-mato (Acca sellowiana (O. Berg) Burret). O fruto ocorre naturalmente nos estados do Sul do Brasil, estendendo-se para regiões de países vizinhos, como Uruguai e Argentina. Possui sabor peculiar, de extrema apreciação, mas encontrá-lo em feiras e supermercados brasileiros é um grande desafio, pois há poucos cultivos locais e sua comercialização é rara. E, quando se encontra, a probabilidade do fruto ter sido importado é grande.
Ocorre que a goiaba-serrana é muito bem explorada em outros países, com domesticação e seleção de cultivares desde o início do século XX, sendo que Nova Zelândia e Colômbia são os maiores produtores mundiais, ultrapassando a marca de 1,5 mil toneladas por safra. Grande parte da produção é exportada para países da Europa, além de abastecer o mercado interno para a elaboração de mais de dez produtos derivados da fruta (entre sorvetes, geleias, espumantes, vinagres, sucos, molhos e alimentos processados), que agregam valor e aumentam as receitas gera- das (CORADIN et al. 2011; MONROY, 2014).
Esses casos de sucesso no exterior motivaram pesquisadores da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a desenvolver um programa de pesquisa com o objetivo de viabilizar a implementação de cultivos comerciais de goiaba-serrana na região onde ela é nativa. Tal feito tem dado resultados, tendo em vista que, recentemente, quatro cultivares foram lançados: Alcantara, Helena, Mattos e Nonante. A iniciativa tem como base um método de melhoramento participativo, reconhecendo a importância dos agricultores familiares no processo de domesticação de plantas silvestres, assim como abre oportunidades para a exploração dessa fruta nativa em agroecossistemas (VOLPATTO et.al, 2011).
Embora no Brasil o potencial de aproveitamento, promoção e uso de nossas frutas nativas seja de extrema valia e relevância, esse tema ainda não é devidamente considerado, sendo tratado, inclusive, com demérito e preconceito. Já nos meados do século passado, o botânico Frederico Hoehne, pioneiro no estudo das frutas indígenas brasileiras, denunciava o descaso de autoridades e dos setores da fruticultura nacional com nossas espécies (HOEHNE, 1946). Até hoje, muitas espécies nativas são menosprezadas e recebem adjetivos depreciativos, como fruta do mato, fruta para passarinho e fruta pequeninha. Contudo, vale ressaltar que nenhum desses adjetivos por si só deveria remeter a algo pejorativo, bastando ver que, na realidade, existe uma crescente procura e valoração das pequenas frutas no mercado, caso dos mirtilos (Vaccinium spp.), do physalis (Physalis spp.), da amora (Rubus spp.), dentre outras (ANTUNES; HOFFMAN, 2012).
ATORES EM MOVIMENTO
A promoção das frutas nativas no Rio Grande do Sul não é mérito exclusivo de uma instituição. São diversos protagonistas, em diferentes setores da sociedade, que atuam ora de forma isolada ora em conjunto, mas com propósitos muito semelhantes. Citar, reconhecer e contemplar neste artigo todas as instituições ou organizações que de alguma maneira interagem com o tema seria tarefa árdua e fadada ao fracasso. Por isso, ao menos um aspecto geral é apresentado a seguir, focando os casos relacionados com a agricultura familiar, mas sem deslegitimar outros atores e protagonistas envolvidos.
Há mais de 15 anos, as organizações não governamentais (ONGs) se destacam no sentido de fomentar o aproveitamento de frutas nativas no âmbito da agricultura familiar. Transformando o paradigma que enxerga a vegetação nativa como um empecilho para a produção agrícola, as propostas, inicialmente, se pautaram no resgate do conhecimento popular e tradicional relacionado às espécies que as comunidades rurais detêm desde sua infância. É muito comum e recorrente, nesse momento, ouvir nos relatos algo como essa frutinha eu comia quando era criança, ou esse cheiro/sabor lembra quando subíamos nos galhos da pitangueira….
Nascido em meio ao turbilhão de acontecimentos ligados às questões socioambientais na década de 1980, o Centro Ecológico (CE) foi, e continua sendo, uma importante organização a pautar a inserção do tema das plantas nativas nos seus programas, tendo sempre como base a construção de uma agricultura ecológica nas regiões da Serra Gaúcha e do Litoral Norte do Estado. Por meio de suas atividades de capacitação, assessoria, reuniões, cursos e oficinas, o CE tem estimulado diversas famílias de agricultores (as) a buscar alternativas com o uso das frutas nativas, seja para incremento de renda, aproveitamento de áreas antes não produtivas ou para uma transição agroecológica fortemente atrelada à valorização dessas espécies.
De maneira muito similar, o Centro de Tecnologias Alternativas e Populares (Cetap), com sede em Passo Fundo, atua nas regiões Norte e Nordeste do estado. Desde sua fundação, em 1986, o Cetap tem pautado a busca por alternativas apropriadas para a promoção de uma agricultura ecológica no âmbito da agricultura familiar. A partir de 2000, a organização começou a implementar de forma gradativa e com metas de longo prazo, ações voltadas à promoção de Sistemas Agroflorestais (SAF). Dessa maneira, vem criando referências demonstrativas das possibilidades concretas de conciliar produção com conservação e cuidado ambiental. Ao mesmo tempo, melhora a base alimentar das comunidades (rurais e urbanas) por meio da valorização desses produtos a partir da construção de cadeias produtivas solidárias e agroecológicas. Indissociáveis dessa proposição são as frutas nativas, que constituem um forte elo entre a promoção da soberania alimentar e o consórcio de produção rural, conservação ambiental e geração de renda.
A Ação Nascente Maquiné (Anama), com atuação específica em Maquiné e regiões vizinhas, exerce destacada liderança na promoção de estratégias de desenvolvimento socioambiental saudável e sustentável no bioma Mata Atlântica do estado. Assim, possui enorme relevância no apoio e na articulação de famílias envolvidas com as frutas nativas, com destaque para a juçara e demais produtos da Mata Atlântica.
Soma-se às ações das ONGs o respaldo de outras instituições. Na área de pesquisa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), por exemplo, têm várias iniciativas de interação com esses atores não governamentais. Da mesma maneira, universidades federais, por meio de ações de pesquisa e extensão, proporcionam importantes subsídios para o fortalecimento e a promoção da temática das frutas nativas no âmbito da agricultura familiar de base ecológica.
E, por último, embora sejam um elo fundamental no arranjo de uma cadeia, por fazerem com que os produtos circulem, estão os empreendimentos urbanos e rurais que atuam no processamento, beneficiamento e comercialização das frutas. Além das feiras livres e de produtores, restaurantes, casas de sucos, sorveterias, entrepostos e mercearias são algumas das iniciativas comerciais que têm surgido em algumas cidades gaúchas, dando maior visibilidade às frutas nativas para o grande público.
EXPERIÊNCIA PIONEIRA E DESDOBRAMENTOS
A família de Nélio e Aldaci Bellé foi uma das primeiras a desenvolver atividades econômicas com frutas nativas. Ocupando uma propriedade rural na Região Serrana do Rio Grande do Sul, no município de Antônio Prado, a família atua desde 1991 na produção de alimentos ecológicos e na comercialização de excedentes. A partir das atividades de sensibilização e capacitação realizadas pelo CE, a família engajou-se na atividade de processamento da produção na forma de doces, conservas, compotas e sucos, uma iniciativa econômica que foi posteriormente formalizada na Agroindústria Bellé.
Mas foi apenas entre o fim do ano 2000 e o início de 2001 que passaram a aproveitar as frutas nativas nas atividades da agroindústria. Em janeiro de 2001, após desenvolver técnicas para o processamento dessas frutas, a família participou do 1º Fórum Social Mundial (FSM), realizado em Porto Alegre.
Trouxeram dezenas de quilos de polpas de frutas nativas congeladas e também na forma de bebidas engarrafadas prontas para o consumo. As frutas levadas eram as mais abundantes na região da propriedade, como pitanga (Eugenia uniflora L.), uvaia (Eugenia pyriformis Cambess.), cerejeira (Eugenia involucrata DC.), guabiroba (Campomanesia xanthocarpa O. Berg), sete-capotes (Campomanesia guazumifolia (Cambess.) O. Berg) e butiá (Butia eriospatha (Mart. ex Drude) Becc.).
O resultado da iniciativa foi excepcional. Toda a produção foi vendida e a família recebeu diversos elogios e aprovações por parte do público local, nacional e internacional do FSM. Muitos consumidores degustaram pela primeira vez aqueles sabores e outros tantos resgataram memórias da infância. Mas todos ficaram surpresos ao encontrar aquelas possibilidades de aproveitamento de frutos que nunca tinham sido encontrados para comercialização.
Desde então, o trabalho da família com as frutas nativas não cessou. Na verdade, foi avançando e se deparando com novos desafios. Uma das primeiras questões que surgiram foi referente ao registro das bebidas no órgão competente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), para a comercialização legalizada dos produtos. Foram diversos anos estudando maneiras de enquadrar os produtos na legislação vigente (como suco tropical, néctar ou polpa). Nesse período, a família teve produtos apreendidos pela fiscalização, até que, somente em 2011, os registros em forma de bebidas e sucos foram concedidos.
Para a maioria de nossas frutas nativas, não há um Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) publicado por Instrução Normativa do Mapa, o que é exigido pela Lei de Padronização e Registro de Bebidas (Lei nº 8.918/1994) e pelo seu decreto de regulamentação (Decreto nº 6.871/2009). Esse fato gerava diferentes interpretações e deliberações acerca das solicitações feitas pela família, mas, com base na própria lei e no decreto, mesmo sem PIQ, o registro pode ser concedido dependendo de apreciação do órgão, deliberação obtida após muito esforço. Atualmente, diversos outros produtos de frutas nativas têm sido registrados.
Outro desafio enfrentado relaciona-se ao manejo das espécies nativas – frutíferas ou não – nas propriedades, ou seja: podas, raleios, conduções, adensamentos, etc. Conforme o Código Florestal Estadual do RS (Lei nº 9.519/1992) e decretos relacionados (Decreto nº 38.355/1998, por exemplo), para cada tipo de intervenção pretendida (descapoeiramento, exploração de florestas nativas plantadas, abertura de trilhas, coleta de subprodutos florestais não madeireiros, plano de manejo florestal em regime sustentado), um processo de licenciamento diferente deveria ser solicitado.
Para esclarecer a questão relativa aos procedimentos adequados, agricultores familiares procuraram inicialmente o Subgrupo Manejo da Câmara Técnica de Agroecologia, do Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável, da Secretaria de Desenvolvimento Rural e Cooperativismo do estado (SDR). Importante constatar que essa não foi uma demanda exclusiva dos interessados no aproveitamento das frutíferas, mas, sim, de todas as famílias agricultoras que visavam a implantação de sistemas agroflorestais em suas propriedades. A partir de então, um grupo de trabalho formado por técnicos da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), que já estava se organizando internamente para dar tratamento a essa problemática, passou a estudar as possibilidades de se criar um procedimento de licenciamento unificador. Assim, surgiu a Certificação de Sistemas Agroflorestais de Base Ecológica, um instrumento que deu segurança para as famílias realizarem os manejos necessários com fins de aproveitamento sustentável dos recursos naturais da propriedade.
ESPÉCIES DESTACADAS
Nesse contexto de desafios e avanços na valorização e no uso das frutas nativas do Rio Grande do Sul, tem-se percebido que duas frutas possuem destaque quanto ao número de atores envolvidos em seu uso, beneficiamento e comercialização. São frutas que já despontam nos processos de valorização e aceitação por parte da sociedade, tanto entre produtores rurais quanto entre consumidores, os quais passaram a ter novas perspectivas e formas de se relacionar com os produtos da socioagrobiodiversidade. Dessa maneira, podem ser consideradas espécies guarda-chuvas e carros-chefes tanto por ajudarem a proteger de forma indireta outras espécies do mesmo habitat quanto por facilitarem a inserção e aceitação de outras frutas ainda não tão comercializadas nos mercados e menos conhecidas, caso da uvaia, sete-capotes, guabiroba, dentre outras.
JUÇARA
A juçara (Euterpe edulis Mart.) é uma palmeira típica da Mata Atlântica, ocorrendo nesse bioma desde o Sul da Bahia até o Litoral Norte e a Depressão Central do Rio Grande do Sul. É uma espécie tipicamente florestal que desempenha um importante papel ecológico, principalmente devido à grande produção de frutos, servindo de alimento para mais de 70 espécies de animais silvestres.
A palmeira produz um palmito de alta qualidade, muito apreciado e consumido em centros urbanos. Contudo, para a extração do palmito, que faz parte do meristema apical da planta, é necessário cortar e matar a palmeira, visto que a espécie não é capaz de rebrotar. Sendo assim, ainda que abundante nas florestas, a juçara sofreu um decréscimo populacional muito grande nas décadas de 1950 e 1960 devido a cortes indiscriminados, fato que a levou a integrar a lista de espécies ameaçadas de extinção.
Embora ainda hoje haja cortes e extrações clandestinas para a obtenção de palmito, diversas ações e projetos têm sido disseminados entre as comunidades rurais com o intuito de fazer o manejo sustentável dos recursos florestais, incluindo a juçara, iniciando uma mudança no quadro de risco da espécie. A principal estratégia tem sido a produção de polpa dos frutos da juçara, o que contribui para a sua manutenção nas florestas, uma vez que para essa atividade não é necessário matar as plantas. A produção de polpa gera grande quantidade de sementes que são utilizadas para repovoar as florestas. Soma-se a isso o alto valor nutricional dos alimentos que são produzidos com a polpa dos frutos. A bebida, explorada comercialmente como açaí de juçara ou açaí da Mata Atlântica, iguala-se ao açaí da Amazônia em termos de textura, cor e sabor mas pode superá-lo no que se refere ao teor de ferro, potássio e antocianinas.
Atualmente, diversos grupos, em âmbito estadual e nacional (Rede Juçara), estão se organizando e articulando para avançar no estabelecimento de uma Cadeia de Valor de Produtos da Sociobiodiversidade, agregando várias outras demandas específicas para a consolidação desse importante campo de ação. Estima-se que mais de 50 famílias agricultoras já estão de alguma maneira envolvidas com a colheita de frutos em agroflorestas no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. A produção anual de polpa tem crescido, sendo que em 2013-2014 foram produzidas em torno de dez toneladas.
A comercialização tem sido diversificada. A polpa é vendida congelada em feiras de agricultores e casas de produtos ecológicos, além de alguns restaurantes e casas de sucos já fornecerem bebidas à base de juçara prontas para consumo. Também, de forma muito bem-vista e aceita, já são mais de 30 escolas no estado que inseriram a polpa de juçara em seus cardápios e merendas por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Esse canal de comercialização, bem como o das Compras Institucionais têm fortalecido e motivado muito as famílias agricultoras a continuarem investindo na exploração desses e outros produtos da sociobiodiversidade.
BUTIÁ
O butiá é uma das frutas nativas mais populares no Rio Grande do Sul, presente até mesmo em expressões e gírias locais. Botanicamente, é o nome popular dado ao fruto de várias espécies de palmeiras do gênero Butia, sendo que no estado são reconhecidas em torno de oito espécies. Os frutos, que podem ser de vários tons de amarelo, do alaranjado ao rosado, são amplamente degustados e apreciados pela população e pela fauna em geral.
Tradicionalmente, o butiá, o butiazeiro e os butiazais (áreas de grande extensão com predominância de butiazeiros) possuem importância ligada às populações humanas.
Registros históricos e arqueológicos evidenciam que os frutos e as sementes faziam parte da alimentação indígena há oito mil anos, enquanto as folhas eram utilizadas para a obtenção de fibras para a produção de cestas e coberturas de cabanas. Mais recentemente, durante a primeira metade do século XX, os butiazeiros também foram importante recurso vegetal para a obtenção de fibras para preenchimento de colchões e móveis estofados. Contudo, após a propagação de colchões de espuma e outras questões socioeconômicas, os butiazeiros perderam importância e começaram a ser suprimidos de seus ambientes naturais, substituídos por lavouras ou outras atividades.
Ainda que sempre ligados ao uso tradicional das comunidades que vivem próximo a butiazais, os frutos eram subutilizados, sendo raramente processados e comercializados. Somente a partir dos anos 2000 é que as proposições de aproveitamento comercial dos frutos foram crescendo e sendo aprimoradas. Atualmente, diversos grupos estão organizados para o aproveitamento e o beneficiamento dos frutos de butiá em diferentes regiões do estado.
No Litoral Norte, além da tradicional venda de frutas nas rodovias em período de safra, uma cooperativa local está beneficiando os frutos do butiá-da-praia (Butia catarinensis Noblick & Lorenzi) e produzindo polpas congeladas e sorvetes. A produção é crescente e já abastece duas lojas locais. Nas regiões Central e Litoral Sul, Butia odorata (Barb.Rodr.) Noblick & Lorenzi é a espécie que tem sido explorada, sendo que alguns grupos realizam o processamento dos frutos, comercializando polpas congeladas informalmente. Na região da Serra e Norte, muitas famílias já atuam com a coleta e o processamento dos frutos. Merece destaque a família de Nenzo e Neusa, de Pinhal da Serra, que tem colhido de quatro a seis toneladas de frutos de Butia eriospatha (Mart. ex Drude) Becc. por safra, fomentando diversas iniciativas para processamento e beneficiamento em comércios locais e regionais. Por fim, na região Noroeste, os frutos de Butia yatay (Mart.) Becc. são amplamente utilizados no preparo de vários produtos, tendo destaque anual na Festa do Butiá, no município de Giruá, que já está em sua décima edição.
ESTRATÉGIAS E PERSPECTIVAS
As frutas nativas são parte significativa da nossa rica flora alimentícia e possuem enorme potencial para diversos aproveitamentos no âmbito da agricultura familiar de base ecológica. Seu reconhecimento como parte significativa também de nossa cultura é fundamental para superar barreiras de subutilização e desmerecimento.
Sua valorização nos mercados é extremamente atual e está em franca ascensão, tendo em vista as diversas tendências por parte de diferentes públicos em busca de alimentos mais saudáveis. Nesse aspecto, as frutas nativas apresentam peculiar potencial em função de suas especificidades, com destaque para as características nutricionais, sendo ricas em vitaminas, antocianinas, antioxidantes, minerais e tantos outros compostos bioativos que têm sido estudados.
Também merece destaque como ponto estratégico a articulação entre atores do meio rural com os do meio urbano. As frutas, seja in natura ou processadas, quando circulam do campo para a cidade, de maneira equilibrada e justa, potencializam diversos empreendimentos que trabalham no seu beneficiamento gerando produtos diferenciados como picolés, sorvetes, licores, tortas, doces e tantas outras possibilidades. Sem dúvida, essas iniciativas contribuem para incrementar as dietas das populações com alimentos funcionais e frutos da socioagrobiodiversidade.
Por fim, a organização e a articulação entre os atores e agentes presentes nos vários elos das cadeias de valor das frutas nativas no Rio Grande do Sul é um assunto que merece ser aprofundado. Nesse sentido, a recente proposta para a consolidação de uma Cadeia Solidária das Frutas Nativas no estado, fruto do trabalho do Cetap com a extinta Secretaria de Apoio a Microempresas e Economia Solidária (Sesampe), a Fundação de Educação para o Associativismo e demais atores já citados, é extremamente pertinente e deve ser um marco norteador das futuras proposições em torno do tema. Soma-se a isso a publicação do Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica regulamentando a lei que institui a política de mesmo nome, um importante instrumento que dá subsídios para diversas e iniciativas favoráveis à valorização das frutas nativas. Estamos torcendo, acompanhando e colaborando para que cada vez mais essa temática ganhe força e significado em nossa sociedade.
Matias köhler
Biólogo, Mestrando em Botânica (UFRGS)
vice-coordenador do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais –InGá
[email protected]
Paulo Brack
Biólogo, MSc., Dr.
professor do Departamento de Botânica, Instituto de Biociências (UFRGS)
[email protected]
Referências Bibliográficas:
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Baixe o artigo completo:
Agriculturas V13,N2 – Frutas nativas no Rio Grande do Sul: cultivando e valorizando a diversidade