Os problemas de comercialização, política, consumo, produção e acesso à terra sempre fizeram parte do cotidiano de agricultores familiares. Pragas e secas, “arrendos ” elevados e grilagens, fazendeiros agressivos e comerciantes espertos sempre os atormentaram, de uma forma ou de outra. Nada disso, porém, inibiu a persistência de viver no campo e, na maior parte das vezes, até com certa prosperidade.
Há quase 200 anos, um autor francês, Jules Michelet, impressionado com a resistência do campesinato, escreveu que essa capacidade de superar crises, pragas e guerras era resultado da sua tenacidade. Ele escrevia que, num país destruído, debaixo das cinzas da choupana queimada pelo inimigo, o camponês tirava a moeda de ouro que poupara durante a guerra e a fome. Essa moeda era então somada ao trabalho dedicado e ao consumo moderado e dela saía a base para refazer um patrimônio que não seria somente daquela família: seria também a riqueza do lugar, do país e da humanidade. Michelet louvava a inventividade do lavrador que sabia reconstruir com diligência o patrimônio destruído. Ele acreditava no futuro dessa cultura baseada no trabalho para si, mas que se convertia em benefício para todos, e que era fundada, sobre- tudo, na liberdade de decidir o quê, quando e como produzir.
Entretanto, essa liberdade de gerir a unidade de produção e seus recursos, tão cara a agricultores familiares de todos os lugares, culturas e épocas, encerra também certa dose de relatividade. Ela consiste em princípio básico por fundamentar a própria condição do ser agricultor, por delimitar o campo das escolhas entre trabalho para os outros e trabalho para a própria família, por definir o direito de escolher um certo futuro para os filhos – pelo menos para alguns deles.
Por outro lado, torna-se relativa porque as opções dos agricultores estão sujeitas a determinados parâmetros e possibilidades que quase sempre lhes são impostas. Dessa forma, a eles só cabe escolher entre certos mercados, técnicas e até demandas de autoconsumo que são pré-definidas pelo jogo das forças que os prendem à terra e, até mesmo, à condição de lavradores.
Mas é nesse campo mais ou menos restrito, nessa liberdade quase sempre apenas relativa, que esses agricultores constroem as alternativas que encantavam Michelet. Essa liberdade, mesmo constrangida, de gerir trabalho e produção serve para ajustar a unidade familiar a um plano estratégico de longo prazo elaborado com grande sofisticação. Esse plano avalia os melhores caminhos em meio a mercados difíceis, serpenteia entre as malhas finas das redes de integração e quase sempre alcança sucesso porque sai da cabeça de gestores há- beis, que buscam no longo prazo metas aparentemente muito modestas, como um maior conforto para os filhos, um lote de terra pouquinha coisa maior, um arrimo para a velhice.
Agora, no Terceiro Milênio, quando os limites para se fazer agricultor(a) se mostram tão expressivos, essa capacidade de gerir se revela não só desejável, como também indispensável. Preços arrochados de produtos, valores explosivos de insumos, o gigantismo das corporações integradoras, o cerco da qualidade e as barreiras à entrada em mercados são, certamente, mais terríveis que as guerras e pragas que assombravam o camponês descrito por Michelet.
Nesses tempos de agricultura mundializada – e, portanto, tão sensível aos abalos do humor dos mercados – a reconstrução do lugar fica às vezes muito difícil. E, assim, diante da batalha diária pela sobrevivência, os companheiros de trincheira dos agricultores, seus mediadores, pesquisadores, técnicos e agentes de desenvolvimento, costumam ver muitos recuos nos combates por posições nas guerras por mercados. Mas é então que, novamente, os agricultores familiares, surpreendentemente, reconstro em.
Boaventura de Castro, agricultor e técnico de comercialização lá de Turmalina, no Vale do Jequitinhonha, gosta de dizer que quando a gente descobre que está fazendo papel de bobo, é sinal de que está começando a ficar esperto. É assim, diz ele, que agricultores se animam a inventar novas formas para solucionar velhos problemas.
E esse é o tema que a Revista Agriculturas: experiências em agroecologia aborda neste número: as estratégias criadas por agricultores para driblar situações adversas, que aparentemente estão consolidadas.
Daniela Oliveira analisa a experiência de conversão agro- ecológica e pluriativa de produtores do Sul do Brasil, revelando como essa trajetória serviu para abrir caminhos de aprendizado e experimentação que qualificam esses agricultores.
Miguel Perondi traz o caso curioso de agricultores do Paraná que, escravizados pela armadilha da tesoura de preços das grandes corporações do agronegócio, descobrem na diversificação produtiva uma estratégia para elevar suas rendas. E não fazem isso apenas diversificando o número de produtos agrícolas, mas também criando formas de agregar valor a essas mercadorias. Dessa maneira, além de incrementarem suas próprias rendas, conseguem estabilizar as rendas de toda a região.
Raquel Lunardi e Marcelino de Souza apresentam o caso das mulheres da Serra Gaúcha que tiveram a iniciativa de trabalhar com turismo na região. Entre outros avanços, a nova atividade promoveu a recriação do lugar da mulher na unidade familiar, no trabalho e na relação com os homens. Já Stephen Taranto e Stefano Padulosi narram a experiência de lavradores bolivianos que associam turismo e conservação da biodiversidade ao transformarem a beleza do lugar em atrativo para visitantes, que conhecem ao mesmo tempo as paisagens e os costumes do local.
Nos dois casos, a ideia inicial deu origem a novas demandas que apontaram outros rumos, outros ajustes e outros propósitos. Então, as atividades acabam se desdobrando e os próprios atores – ou atrizes – precisam usar suas habilidades para se reajustar ao novo cenário. Mas, apesar de lugares e grupos tão diversos, os artigos mostram como é possível um grupo se descobrir em contato com o outro, uma vez que tratar com o visitante implica sempre revelar-se a si mesmo e aprender a se rever.
No artigo de Anders Pedersen narra a aventura do sr. Ramadhani para vender frutas desidratadas em um local isolado no interior da Tanzânia. O agricultor cria na adversidade as condições de produção, construindo seus locais de venda, remediando as perdas e literalmente desbravando seus mercados. Nessa aventura seus processos tradicionais são revistos e, por fim, ele próprio, enquanto produtor, tem que se transformar para se adequar ao padrão legal e comercial exigido.
O artigo de Flávia Charão Marques, que fecha a edição, destrincha os caminhos de famílias agricultoras que vão desde a descoberta da alienação do trabalho e das penas da integração até o desenvolvimento de atividades de nicho que acomodam na mesma ocupação o sustento, os princípios camponeses e as novas possibilidades de relacionamento entre pessoas, bens e natureza.
Todos esses casos surpreendem pela quantidade e qualidade de estratégias que os agricultores conseguem criar. Apesar das condições, regiões e culturas diversas, essas experiências revelam uma mesma gramática, uma ordem comum para arrumar situações diferentes. São exemplos do esforço da agricultura familiar para inventar caminhos e inaugurar perspectivas. Nesses processos, assim como em tantas outras experiências de inovação, há riscos, perdas e recompensa. Eles mostram em conjunto a força que essas iniciativas têm para se desenvolver e confirmam de forma luminosa, clara e evidente o profetismo de Michelet – partilhado com tantos outros que acreditam na força criadora do campesinato – quando viu nesses agricultores a capacidade de construir seu próprio futuro.
Eduardo Magalhães Ribeiro
professor da UFMG, pesquisador do CNPq
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Revista V6N3 – Inventando futuros