Pe. João Bosco Schio, Pe. Celso Cicconetto, Luiz Carlos Scapinelli e Ricardo Barreto
A denominada modernização da agricultura se intensificou na região da serra do Rio Grande do Sul, sobretudo a partir dos anos 1970. Embora tenha sido limitada no que se refere à mecanização das operações de manejo agrícola, gerou um crescente emprego de agroquímicos da agricultura, com a ampla adoção de adubos químicos, inseticidas, herbicidas e fungicidas. Esse processo aprofundou as distinções econômicas e sociais existentes entre as unidades produtivas. As famílias que tiveram acesso ao mercado e às políticas públicas conseguiram se manter temporariamente como agricultores familiares. As demais foram excluídas, inclusive da própria terra. Esse processo de exclusão social tornou-se ainda mais visível nos anos 1980, com o agravamento da crise econômica. Foi nesse contexto, e com a preocupação de gerar uma proposta que pudesse viabilizar a agricultura familiar, que começou o trabalho da Pastoral da Terra na região.
Durante a segunda metade dos anos 1970 e primeira parte dos anos 1980, a Pastoral orientou suas ações no sentido de conscientizar agricultores e agricultoras a respeito das causas de sua situação de pobreza e exploração. Incentivou a realização de experiências práticas que abrangiam desde mudanças de hábitos de higiene e de alimentação até a diversificação de culturas e estratégias de comercialização. Apesar do êxito dessas experiências, os agricultores continuavam sentindo a necessidade de avançar em outros assuntos, entre eles o preço pago pelos seus produtos, os processos de degradação dos solos, o aumento de pragas e doenças nas lavouras e, sobretudo, as intoxicações das famílias com os venenos.
Percebeu-se que os jovens eram os que mais tomavam consciência e se sentiam cada vez mais insatisfeitos com a degradação ambiental e com a saúde das famílias.
O INÍCIO DE UMA PARCERIA PARA A PROMOÇÃO DA AGRICULTURA ECOLÓGICA
No ano de 1985, foi criado o Projeto Vacaria no município de Ipê (RS), atualmente denominado Centro Ecológico, com o objetivo de demonstrar a viabilidade técnica e econômica da agricultura ecológica, mediante a adoção de tecnologias alternativas orientadas pela filosofia da preservação ambiental e justiça social. Após três anos de experimentação e prática, em uma propriedade de 70 hectares, os técnicos vinculados ao projeto buscaram uma maior inserção na comunidade. Nesse momento, por volta do ano de 1987, ocorreu a aproximação entre a Pastoral e o Centro Ecológico e se iniciou um trabalho de difusão da proposta da agricultura ecológica junto aos agricultores familiares da região. O interesse em trabalhar esse novo modelo veio majoritariamente dos jovens que participavam da Pastoral.
No entanto, essa primeira fase de engajamento por parte dos jovens passou por alguns obstáculos, entre eles o de convencer os pais a desenvolverem experiências em suas propriedades. Houve casos em que jovens fugiram de casa, condicionando o retorno à permissão de cultivarem uma área de forma agroecológica. É preciso lembrar que ainda não se conheciam referências práticas consolidadas em agricultura ecológica, mas os jovens estavam dispostos a serem também eles experimentadores desse novo caminho para a agricultura.
AS PRIMEIRAS REFLEXÕES
A agricultura ecológica surgiu como uma forma de concretizar os anseios político-ideológicos que a Pastoral vinha trabalhando há tempo. Até esse momento, havia apenas técnicas que atendiam de forma parcial a necessidade dos sistemas de produção da região, formados basicamente pelo cultivo de olerícolas e frutas.
A disposição inicial dessas pessoas por mudanças gerou novas tecnologias de produção e a construção de canais alternativos de comercialização, o que exigiu dos jovens um tanto de perseverança, já que no começo o que se produzia e comercializava em uma feira, em Porto Alegre, não pagava nem o custo da viagem.
O interessante desse processo em relação à comercialização é a construção de uma nova relação com os consumidores. A declaração de um jovem, no início do trabalho com agricultura ecológica, é bastante esclarecedora:
“Antes vendíamos para os atravessa- dores. Mesmo que o produto tivesse qualidade eles só falavam dos defeitos do produto para pagar menos. Na feira ecológica a relação é outra. O consumidor agradece porque estamos cuidando do meio ambiente e levando um alimento saudável para a família dele”.
O processo de criação de canais diretos de comercialização possibilitou o resgate do que significa ser agricultor por parte desses jovens. Em vez de destruir o meio ambiente, agora estavam fazendo um trabalho de preservação e promoção da saúde das pessoas. Esse fato gerou uma transformação na auto-estima deles, criando uma nova forma de se ver como jovem no meio rural.
Assim, a agricultura ecológica constituiu-se, desde aquela época, na principal estratégia de trabalho com a juventude rural na região.
Numa primeira fase, surgiu a Associação dos Agricultores Ecologistas de Ipê e Antônio Prado (AECIA), que serviu de referência para a formação de outras associações. Em Ipê, foram criadas posteriormente mais sete associações, cujas principais lideranças articuladoras da organização e constituição eram membros da Pastoral da Juventude.
Esse processo de expansão da agroecologia ocorreu, também por meio da Pastoral, na região do litoral norte do Rio Grande do Sul, nos municípios de Torres, Três Cachoeiras, Mampituba, Morrinhos do Sul e Dom Pedro de Alcântara – região de agricultura familiar onde os principais cultivos são o arroz, a banana e as olerícolas. Lá também observou-se que a maioria das pessoas que aderiam à agricultura ecológica era composta por jovens filhos de agricultores.
A quantidade de agricultores, sobretudo jovens, que ainda hoje abandona o meio rural continua a ser extremamente alta. O esvaziamento e envelhecimento das comunidades rurais, a falta de mão-de-obra nas unidades produtivas e a desvalorização tanto econômica quanto social do trabalho com a agricultura apresentam-se como limitações, não apenas para os agricultores convencionais, mas também para aqueles empenha- dos na transição rumo a uma agricultura ecológica. Um estudo feito nos municípios de Ipê e Antônio Prado, nos anos de 1999 e 2000, demonstrou que a idade média dos agricultores ecologistas era significativamente menor do que a dos agricultores convencionais. (Schimitt, 2001)
“Constatamos que os jovens buscam alternativas para a permanência no meio rural desde que seja valorizado tanto o retorno econômico quanto o seu papel pelo trabalho que desenvolvem em suas comunidades. É nesse sentido que a agricultura ecológica tem dado a sua contribuição, porque concilia rendimento econômico com preservação ambiental e produção de alimentos saudáveis”.
A agricultura ecológica também tem se mostrado capaz de proporcionar a diminuição dos custos de produção. A mudança da base tecnológica da agricultura no espaço das unidades produtivas, juntamente com sua inserção em canais alternativos de comercialização, particularmente por meio da venda direta nas feiras, tem propiciado, de forma geral, a melhoria da renda das famílias e uma melhor distribuição de ingressos monetários ao longo do ano, ampliando a capacidade de investimento na atividade agrícola.
Vale ressaltar outro aspecto do trabalho com agricultura ecológica e que se configura um retorno importante para os jovens: a inserção destes em uma nova “rede de comunicação”, envolvendo novas relações que se estabelecem nos cursos, nas viagens de intercâmbio, no recebimento de visitas, no contato com diversos públicos na ocasião das feiras. Além de ampliar horizontes por meio do diálogo com potenciais parceiros, essa nova dinâmica cumpre também um papel desmistificador do urbano, já que muitos desses espaços de intercâmbio envolvem relações com a cidade ou com pessoas de origem urbana.
O QUE ESTAMOS PENSANDO HOJE
Atualmente, após 17 anos dessa fase inicial de expansão da proposta da agricultura ecológica, tanto a Pastoral quanto o Centro Ecológico fazem uma avaliação da necessidade de reforçar o trabalho com a juventude rural. Sabemos que a agricultura ecológica é uma opção consistente para a permanência dos jovens no meio rural, proporcionando-lhes qualidade de vida. Mas entendemos que as demandas dos jovens são mais amplas. Faz-se necessário também trabalhar a identidade, promover a auto-estima e viabilizar as condições básicas atualmente requeridas pela juventude rural no que diz respeito à educação, saúde e lazer.
É para dar conta dessas perspectivas mais amplas que desenvolvemos atividades mais coordenadas, em apoio às de formação realizadas pela Pastoral da Juventude, a fim de criar um trabalho com a segunda geração de agricultores ecologistas. A idéia é fazer uma reflexão com esses jovens sobre os limites presentes em relação à agricultura como um todo e à ecológica em particular, visando a construção de alternativas que possam viabilizar a manutenção dos jovens, com qualidade de vida, no meio rural.
A principal estratégia que temos adotado para proporcionar a esses jovens melhores condições para pensar em sua condição atual no meio rural consiste em uma série de atividades de formação, compreendendo cursos, oficinas e retiros. Essas atividades possibilitam a reunião desses jovens, que se encontram bastante dispersos no meio rural, criando momentos ricos para a troca de experiências e a elaboração de propostas coletivas para a juventude, além do fortalecimento individual de cada jovem participante.
Entre as atividades desenvolvidas, está o encontro realizado em setembro de 2004 no Ipê, no qual estiveram presentes cerca de 150 pessoas, entre jovens e agricultores ecologistas. Esse evento significou a unificação de todas as atividades desenvolvidas durante o ano na serra gaúcha. Com o propósito de debater a condição da juventude e as alternativas existentes, o encontro contou com painéis abordando temas mais abrangentes como políticas públicas para a juventude, o contexto da agricultura familiar e desafios atuais para a juventude. Contou também com oficinas para capacitar os jovens para o trabalho em suas comunidades, tendo como principal encaminhamento ações de reforço às suas organizações locais.
Concluindo: pensamos que é necessário fortalecer a organização dos jovens no meio rural para que, com a sua participação, sejam elaboradas as políticas necessárias para viabilizar a sua permanência no local de origem com qualidade de vida, ou seja, com melhores condições de educação, saúde, acesso à terra, renda e lazer.
Pe. João Bosco Schio
Pastoral da Terra
Pe. Celso Cicconetto
Pastoral da Terra
Luiz Carlos Scapinelli
Pastoral da Juventude e membro da Associação de Agricultores Ecologistas
Pereira Lima, Ipê-RS.
Ricardo Barreto
membro da equipe técnica do Centro Ecológico.
[email protected]
Referências
SCHMITT, C.J. Tecendo as redes de uma nova agricultura: um estudo socioambiental da Região Serrana do Rio Grande do Sul. (tese de doutorado). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001.
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Revista V2N1 – Juventude e agricultura ecológica no Rio Grande do Sul