Jorge Pinto
No estuário do rio Amazonas, conhecido como região das ilhas, as comunidades rurais se encontram em elevado grau de isolamento. O trânsito entre uma comunidade e outra é realizado de barco e dura pelo menos três horas. É nessa região, mais particularmente no município de Gurupá (PA), que está localizada a Ilha das Cinzas. A cidade mais próxima, Santana (AP), está a cerca de cinco horas de barco. Uma viagem da ilha até a cidade de Gurupá demanda entre 15 e 18 horas. A população do município é de 26 mil habitantes (em torno de duas mil famílias) e é constituída majoritariamente por ribeirinhos.
Em razão dos fluxos da maré, que na região tem dois ciclos diários, o nível da água pode sofrer uma variação de até quatro metros entre a baixa-mar e a preamar. Por esse motivo, as casas são construídas sobre palafitas e a agricultura não é realizada. As principais atividades econômicas são o extrativismo florestal, principalmente do fruto, da madeira e do palmito do açaí (Euterpe oleraceae Mart.), e o extrativismo aquático, sobretudo a pesca de camarão. Esta atividade contribui com cerca da metade da renda das famílias ribeirinhas.
Estudos socioambientais no município de Gurupá, encomendados em 1997 pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), ressaltaram limitações e oportunidades para o desenvolvi- mento das práticas de pesca pelas comunidades ribeirinhas. O projeto voltado para o aprimoramento dessas práticas, em particular da pesca do camarão de água doce (Macrobrachium amazonicum), foi um desdobra- mento direto desses estudos. Entre outros aspectos, foram identificadas iniciativas inovadoras dos próprios pescadores que poderiam ser desenvolvidas e disseminadas. Dentre elas, destaca-se o “armazenamento” dos camarões em pequenos viveiros flutuantes, com a finalidade de “esperar o comprador ”do produto in natura e minimizar as perdas advindas da excessiva mortandade decorrente do precário acondicionamento nos viveiros tradicionais, da superpopulação e da falta de oxigenação na água.
Durante o seminário de restituição dos resultados dos estudos, foi definido um experimento voltado para a estocagem dos camarões vivos capturados no final da safra (dezembro), visando o alcance de melhores preços na entres- safra (fevereiro a maio). A experiência foi realizada durante o ano de 1998 e envolveu diretamente seis famílias. Por motivos que hoje nos parecem óbvios, o experimento não foi bem-sucedido. Ao invés de aumentar, o peso total dos camarões armazenados nos viveiros se reduziu. Após algum tempo de observações, concluiu-se que o principal motivo foi a autofagia que ocorreu no período da ecdise (troca do exoesqueleto dos crustáceos). Verificou-se também que não ocorreu perdas significativas de peso quando os camarões ficam até oito dias no cativeiro.
Diante disso, e sendo o baixo preço pago um dos principais gargalos da atividade, foi elaborada, junta- mente com a comunidade, uma estratégia que em essência estava voltada para a melhoria da qualidade e da padronização da produção local. Afinal, animais grandes e bem apresentados são mais valorizados nos mercados. Para implementar essa estratégia, a partir de dezembro de 1998 foi realizado um trabalho de ajuste dos instrumentos de captura (matapi) e de estocagem (viveiros). Simultaneamente, deu-se início a um processo sistemático de capa- citação voltado para qualificar as práticas de processamento do camarão, de gestão financeira, de implantação de unidades de beneficiamento mais adequadas, de comercialização conjunta através da cooperativa, entre outras atividades de educação ambiental. Assim nasceu o projeto de manejo de camarão.
PRINCÍPIOS DO MANEJO INOVADOR
O manejo inovador fundamenta-se na idéia de que mais vale capturar um camarão grande do que um punhado de camarões pequenos. Ele consiste nas seguintes etapas:
- Captura com matapis – O matapi é uma armadilha feita de fibras vegetais. É como uma gaiola de formato cilíndrico, com 40 cm de comprimento e 25 cm de diâmetro. Nas extremidades, apresenta uma espécie de funil que facilita a entrada dos camarões e dificulta a saída. Para atrair os camarões, é empregada a “poqueca”, uma isca elaborada com farelo de babaçu ou outro farelo vegetal (milho ou arroz) e “embrulhada” em folhas de cupuçurana (Matisia paraensis Huber) ou plástico (Fig. 1). Pelo sistema tradicional de captura, os espaços entre as “talas” do matapi são bastante estreitos, impedindo que os camarões de menores dimensões passem por eles. Já nos matapis adapta- dos, os espaços são alargados de forma a reter apenas os camarões maiores. Esse trabalho de adaptação é realizado pelas mulheres das comunidades (Fig. 2).
- Estocagem em viveiros flutuantes – Após a captura, os camarões são colocados em viveiros, onde permanecem por até oito dias (Fig. 3). Em seguida, são beneficiados ou comercializados in natura. Esse tempo de enviveiramento é o prazo ideal para que seja feita a “apuração” do tamanho e da aparência da produção. Os camarões menores têm tempo suficiente para escapar. Já os maiores, que permanecem no viveiro, têm seus estômagos esvaziados, fato esse que confere ao produto melhor aparência depois de processado. Durante esses oito dias, o pescador tem a possibilidade de reunir bons volumes de produção antes do processamento e/ou da comercialização, o que racionaliza seus esforços nessas atividades, uma vez que não necessita mais realizá-las diariamente.
- Beneficiamento – Consiste no cozimento, durante 20 minutos, em uma mistura de água e sal (utiliza-se a relação 10 kg de camarão/1 kg de sal). Há outras formas de processamento, mas não são aplicadas pelas comunidades locais.
- Comercialização – Pode ser feita na própria comunidade ou mesmo nos centros urbanos mais próximos, para comerciantes intermediários (Fig. 5).
UMA PROPOSTA DE MUITOS IMPACTOS E QUE SE IRRADIA PELA REGIÃO
Os benefícios desse manejo para o meio ambiente e para a população envolvida são evidentes. Do ponto de vista ambiental, verificou-se a redução do número de armadilhas utilizadas por família e a diminuição da produção total por família por safra, mas sem comprometer os ganhos econômicos. O aumento do tamanho do camarão comercializado é indicativo de que os camarões pequenos não foram capturados, favorecendo, portanto, a manutenção dos estoques naturais. Outra contribuição foi a preservação da vegetação ciliar, que protege as margens dos “furos”, cursos d’água que separam as ilhas locais que servem de abrigo para peixes e camarões.
No que se refere ao impacto econômico, identificou-se um preço maior por quilo de camarão vendido. Apesar da diminuição significativa do número de animais capturados entre 1997 e 2004, o incremento no valor do produto tem resultado no aumento sistemático da renda provinda da pesca de camarões por parte das famílias envolvidas (Quadro 1).
Contudo, os benefícios sociais vão além da elevação da renda. Inserido em um trabalho mais abrangente de desenvolvimento comunitário, o projeto proporcionou melhorias mais amplas na qualidade de vida da população. Dentre elas, destacam-se o fortalecimento dos processos organizativos, a participação em sindicatos e na colônia de pescadores, o acesso a serviços públicos, ao transporte, à comunicação, à educação etc.
Inicialmente, o projeto foi desenvolvido em parceria com a Associação dos Trabalhadores Agro- extrativistas da Ilha das Cinzas (Ataic) e com o Grupo de Mulheres em Ação da Ilha das Cinzas, envolvendo diretamente 40 famílias. Posteriormente, o manejo foi adotado por outras oito comunidades e, espontaneamente, está sendo difundido. Atualmente, envolve cerca de 200 famílias pescadoras só no município de Gurupá.
O sistema já vem sendo implantado em outros três municípios da região do baixo Tocantins (Abaetetuba, Igarapé Mirim e Cametá), no baixo Amazonas (Santarém) e no estado do Amazonas (Parintins). A produção de uma cartilha e de um documentário em vídeo (em fase de edição) sobre a iniciativa contribuirá para a ampla divulgação dessa experiência.
O governo do estado do Pará tem reconhecido a importância desse trabalho e pretende transformá-lo em política de governo, inserindo-o no programa Pará Rural, financiado pelo Banco Mundial. A iniciativa concorreu com 658 experiências e ganhou o Prêmio Tecnologia Social 2005, categoria Região Norte, promovido pela Fundação Banco do Brasil.
O DESAFIO DA COMERCIALIZAÇÃO
De forma geral, a etapa da comercialização apresenta-se como um dos principais desafios para a sustentabilidade econômica das populações amazônicas, que baseiam seus meios de vida em sistemas extrativistas. A presença de forte cultura do aviamento, na qual o “patrão” financia o extrator, desvalorizando seu produto, é um dos principais obstáculos a serem superados.
Mesmo com os resultados já demonstrados pelo projeto, algumas pessoas se mantêm desconfiadas com relação aos potenciais benefícios financeiros do manejo inovador e continuam vendendo sua produção a atravessadores, que pagam o mesmo preço pelos camarões, independentemente do tamanho. Já aquelas que vêm participando das dinâmicas locais de inovação estão tranqüilas, despreocupadas, aproveitando as vantagens que o sistema oferece, inclusive o ganho nas horas trabalhadas.
Há pessoas nas comunidades que recebem melhor por suas produções porque desenvolveram a prática de barganha com os atravessadores, mas a comercialização em conjunto é ainda um grande desafio. Além de exigir capital de giro para o pagamento à vista, envolve a necessidade de alterações de práticas já bastante enraizadas na cultura regional.
Jorge Pinto:
engenheiro agrônomo da Fase
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Revista V2N4 – Manejo comunitário de camarões de água doce por ribeirinhos na Amazônia