Bernardo Fulcrand Terrisse
Nas regiões semiáridas dos Andes, no Peru, na Bolívia e no norte do Chile, sistemas antigos de manejo pastoril ainda fazem parte do cotidiano das famílias. Na região Inka, situada no leste da cordilheira andina, no Peru, a criação de ovinos faz parte de uma cultura tradicional caracterizada por laços familiares e estruturas comunitárias fortes. A população vive em comunidades camponesas que têm suas próprias organizações. A terra pertence às comunidades, que são responsáveis pelo manejo dos recursos comuns, incluindo o solo e a água. O acesso à terra por parte das famílias se dá sob a forma de usufruto e todas têm acesso aos pastos comunitários. O trabalho coletivo é baseado nos princípios da reciprocidade, da cooperação e da solidariedade.
Sendo uma área montanhosa situada em latitudes tropicais, a região Inka exibe diversas paisagens em diferentes altitudes. Existem duas ecorregiões distintas entre os 3 mil e os 4.500 metros de altitude. A Qheswa caracteriza-se pelo clima temperado, onde se planta milho, batata, feijão e outros grãos. Há também alguma criação de gado. Na área mais alta e fria de Puna, a população sobrevive da pecuária extensiva de ovelhas, alpacas ou lhamas. As raças locais de ovinos são as mais empregadas. Geralmente são as mulheres e as crianças que cuidam dos animais, sempre acompanhando os rebanhos em busca de pastagens. As mulheres são muito apegadas a suas ovelhas: “As ovelhas ajudam em tudo”, dizem. Elas fornecem carne, lã e esterco. A lã é utilizada na produção de peças de artesanato (tecidos, ponchos etc.). As ovelhas rendem dinheiro à família em tempos difíceis, já que podem ser vendidas em qualquer época do ano. A venda de carne, de lã e de artesanato também representa uma importante fonte de renda e ajuda a reduzir os riscos inerentes à agricultura.
UMA COMBINAÇÃO PERFEITA
As raças locais de animais têm grande valor para milhões de agricultores familiares pelo mundo afora. Em geral, apresentam um desempenho produtivo muito superior ao das raças “melhoradas” por se adaptarem bem a ambientes naturais e sociais específicos. Nos Andes, as raças locais de ovinos não fogem a essa regra, pois são muito rústicas e resistentes. Elas são adaptadas a climas extremos porque possuem boa capacidade termorreguladora. Suportam longas e cansativas caminhadas e estão acostumadas a terrenos íngremes e irregulares. Têm a capacidade de sobreviver a períodos de escassez de alimento, pois se valem das reservas acumuladas no corpo durante os períodos de abundância alimentar. Uma vez normalizada a oferta de alimentos, rapidamente recuperam as forças. Seu comportamento de forrageamento é muito eficiente, pois são capazes de encontrar alimento suficiente mesmo em áreas com vegetação escassa, já que seus sistemas digestivos são adaptados a diferentes tipos de vegetação local. Além disso, são resistentes a doenças infecciosas e parasitárias comuns na região, como a Fasciola hepatica, e a problemas intestinais causados pelos vermes.
Raças locais de ovelhas têm boa capacidade reprodutiva, em parte porque as fêmeas entram no cio em qualquer estação do ano. Além disso, têm um instinto maternal bem desenvolvido. Podem ser ordenhadas facilmente e possuem grande longevidade.
Essas extraordinárias características físicas é o que torna essas raças importantes economicamente para os agricultores. Com um mínimo de uso de insumos externos, elas geram riquezas ao se desenvolverem nas extensas áreas que margeiam os altos dos Andes. Aproveitam-se dos restos de cultivo, como o restolho, as palhadas e as folhagens verdes. Nessas condições, a ovinocultura é uma atividade de fácil acesso às famílias, pois não demanda muito investimento.
Algumas tentativas de introdução de raças “melhoradas”de ovinos (Corriedale ou Hampshire Down) foram feitas sem sucesso na região. Era previsível que essas raças não se adaptariam às condições locais, entre as quais as práticas tradicionais de manejo animal. Além disso, a carne dessas raças introduzidas não foi bem aceita por ter um gosto mais forte e por ser mais gordurosa do que a das raças locais.
SUPERANDO A NEGLIGÊNCIA
No Peru, as raças locais das espécies criadas têm sido constantemente negligenciadas pelas políticas públicas e pelos técnicos de campo. Isso também se aplica às ovelhas crioulas, apesar delas responderem pela principal atividade pecuária no país. Essa negligência, expressa na ausência de pesquisas e de programas de extensão orientados para a melhoria das práticas de manejo das raças locais, é responsável pela baixa produtividade dos rebanhos ovinos. Altos níveis de consangüinidade são verifica- dos nos rebanhos em razão da ausência de medidas de manejo voltadas para a seleção e o melhoramento da espécie. Além disso, os agricultores tradicionalmente vêem suas ovelhas como uma forma de poupança e não como animais para fins de produção. Procedendo assim, no momento da venda se desfazem dos animais maiores, gerando, com o tempo, um processo de seleção negativa, o que termina por reduzir a qualidade genética dos rebanhos e, por conseqüência, o seu potencial produtivo.
Esse quadro começou a se alterar quando diferentes atores, entre eles os próprios agricultores, se conscientizaram da situação e iniciaram um trabalho voltado para o melhoramento das raças locais. Uma dessas iniciativas partiu da ONG Asociación Arariwa del Cusco e da Associação de Criadores de Ovinos Crioulos (Acoc). Juntas, as duas instituições identificaram três principais linhas de trabalho: seleção e melhoramento de ovinos crioulos; capacitação de criadores; e acesso a nichos específicos de mercado. A partir daí, desenvolveram um programa para o melhoramento das raças locais nas regiões de Qheswa e de Puna. Além das duas organizações, que as- sumiram a frente do processo, a Universidade Agrícola, o Ministério da Agricultura e outras ONGs também acabaram se envolvendo.
Melhoramento
As raças locais de ovelhas têm um grande potencial genético ainda inexplorado. Esse potencial se manifesta na alta variabilidade observada nos rebanhos no que se refere à capacidade leiteira, à fertilidade e às taxas de ganho de peso. Os membros da Acoc perceberam que era necessário implementar um sistema de trocas entre diferentes rebanhos para o melhoramento das raças. Isso eliminaria o alto nível de consangüinidade nos rebanhos, fator responsável pela redução da produtividade e pela grande incidência de defeitos genéticos. Estabeleceu-se uma série de critérios para orientar o programa de melhoramento e torná-lo efetivo, entre eles:
- Eliminação dos defeitos genéticos mais comuns.
- Seleção de fêmeas nos rebanhos com base na produção de leite, peso vivo, na fertilidade e no peso total dos cordeiros desmamados por matriz.
- Seleção de reprodutores com base no ganho de peso, no desenvolvimento e na conformação corporal.
Nesse processo de seleção, especial cuidado foi tomado no sentido de evitar a perda de traços de rusticidade das raças locais.
Capacitação
O segundo objetivo da associação é promover atividades de educação e capacitação para os criadores, tanto homens quanto mulheres. Eles devem deixar de ser “donos de ovelhas” para se tornarem “criadores de ovelhas”. Essa transformação na percepção não ocorre do dia para noite e exige uma tomada de consciência gradual e incremento de conhecimentos e técnicas por parte dos criadores. Esse processo precisa ser facilitado por técnicos que possam coletar e processar informações, para então repassá-las aos criadores. Estes, por sua vez, precisam aprender a perceber as mudanças e interpretá-las, para assim aprimorar seus conhecimentos. É um processo em que o criador e o animal se desenvolvem de forma conjunta. O técnico também interfere no processo de mudança sociocultural, em que as práticas de manejo se adaptam e a relação com o mercado se estabelece.
Comercialização
Outro objetivo da Acoc é obter melhores condições de venda de seus produtos. Para isso, procura obter melhor qualidade (animais para corte ou reprodução) visando o alcance de melhores preços. O acesso aos mercados tem crescido por meio da participação em feiras locais e regionais, onde os agricultores associados podem oferecer produtos de boa qualidade e mostrar que são bons criadores. Ao mesmo tempo, a Acoc está tentando desenvolver certos nichos de mercado. A carne de ovinos crioulos apresenta diversas vantagens sobre a carne das ovelhas de raças introduzidas produzidas nas fazendas modernizadas: é mais saborosa, é produzida na região e pode ser vendida como “ecologicamente produzida”. A ONG Arariwa permanece apoiando as atividades da Acoc ao colocar um técnico à disposição para monitorar e assessorar o programa de seleção e melhoramento. Atua também na capacitação técnica dos agricultores em temas relacionados à saúde animal, alimentação, e manejo zootécnico em geral. Por fim, a entidade também presta assessoria ao programa de comercialização.
Progressos e planos
A Acoc representa atualmente um total de 132 criadores e utiliza 24 rebanhos para a seleção de animais. Durante os últimos dez anos de reprodução seletiva, a média de peso dos cordeiros que nascem desses rebanhos aumentou de 2,5 kg para 3,9 kg e o peso médio das ovelhas (adultas) aumentou de 29,7 kg para 37,3 kg. Além disso, o ganho diário de peso dos cordeiros passou de 97 g para 123 g.
Dez anos de seleção já resultaram numa melhora de diversas características relacionadas à produção e à fertilidade das raças locais de ovinos. Na prática, isso significou um aumento na produtividade dos rebanhos e o incremento do lucro com a venda de reprodutores ou de animais abatidos. Os membros da Acoc receberam capacitação na área de reprodução e em técnicas avançadas de manejo animal, ligadas à alimentação e à sanidade. Atualmente, dominam os conhecimentos para realizar aperfeiçoamentos no manejo de seus rebanhos, tais como a seleção e a troca apropria- das de animais de reprodução, a eliminação de animais pouco produtivos e os cuidados veterinários elementares (controle de parasitas e dosagem adequada de medicamentos).
O primeiro passo foi dado no sentido de explorar o nicho de mercado relacionado ao fornecimento de carne “ecologicamente produzida” para restaurantes de alta-classe e para a indústria do turismo. Embora ainda exista muito progresso a ser feito nesse campo, a Acoc e a Arariwa acreditam que existe um potencial a ser aproveitado. A carne ovina pode ser incluída no menu dos restaurantes frequentados pelos turistas. Para tanto, um obstáculo a ser superado é a implementação de uma cadeia de produção que atenda às exigências sanitárias desse mercado. Isso requer abatedouros adequadamente projetados e equipados para garantir a higiene; o uso de técnicas apropriadas de abate e corte; a secagem adequada e a conservação em ambientes refrigerados; e a adoção de um sistema de distribuição e venda eficiente para os restaurantes. Alguns avanços já foram alcançados nesse sentido: chefs de restaurantes prestigiados da cidade de Cusco receberam carne de cordeiros de três idades diferentes e a acharam excelente. Com isso, os restaurantes têm demonstrado interesse em apoiar o desenvolvimento de uma cadeia de produção que atenda aos seus critérios de higiene e qualidade.
Bernardo Fulcrand Terrisse:
Associação Arariwa
Av. Los Incas 1606, Cusco, Peru
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Baixe o artigo completo:
Revista V2N4 – Melhorando o desempenho de raças locais de ovelhas