Adriana Galvão Freire, Marilene Nascimento Melo, Fabiana dos Santos Silva e Elenice da Silva
O arredor de casa é um espaço múltiplo de grande importância para todos os membros das famílias agricultoras do agreste da Paraíba. É lá que se fazem as experiências de plantio após as primeiras chuvas e onde novas tecnologias são testadas. É também o lugar dedicado ao cultivo de plantas medicinais, da horta, de frutíferas, e à criação de animais de terreiro. Nele, gera-se renda, recebem-se os vizinhos e educam-se os filhos e as filhas. É, enfim, um grande laboratório da vida para a agricultura familiar.
Foi valendo-se desse laboratório, resgatando e valorizando as práticas de manejo culturalmente empregadas pelas famílias, que a Comissão de Saúde e Alimentação do Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema se estruturou para experimentar e disseminar conhecimentos inovadores voltados para a promoção da segurança alimentar e hídrica na região.
Em Lagoa Seca, um dos municípios integrantes do Pólo da Borborema, os arredores das casas não se distinguem em essência dos de outros municípios da região. Entretanto, ao lançar um olhar mais atento à evolução desses espaços, percebeu-se o crescente comprometimento da criação de aves, atividade fundamental para a dinâmica produtiva e econômica das famílias agricultoras.
Para entender melhor as limitações e as potencialidades dessa atividade para a família e, principalmente, seus significados para o trabalho das mulheres, uma pesquisa sobre o manejo da criação de galinhas foi realizada, no início de 2003. O estudo, conduzido pela AS-PTA, partiu de uma demanda específica da Comissão de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lagoa Seca e serviu para orientar suas estratégias de ação no sentido da revalorização dos animais de terreiro no arredor de casa.
A CRIAÇÃO DE GALINHAS NO ARREDOR DE CASA
O dia começa muito cedo para a família agricultora de Lagoa Seca. Logo ao alvorecer, o galinheiro é varrido, os vasilhames são limpos e a água é renovada. Como prática corriqueira, coloca-se na água nova um pedaço de casca de aroeira, um dente de alho ou sumo de limão para prevenir doenças.
Durante o período do “verão”– estação mais seca –, só as galinhas com pintos novos é que ficam presas no galinheiro. As outras são soltas de dia e aos poucos vão ocupando todo o terreno da família em busca de alimentos: do terreiro chegam até o roçado. Nessa época, praticamente não se tem despesa com ração e o trabalho diminui consideravelmente. À noite, as aves são presas e é também o momento em que são observadas para saber se estão doentes, se já se alimentaram ou se estão entrando no choco.
Já no “inverno” – o período das chuvas –, é preciso que a família diminua o número de animais. No galinheiro, deixam algumas poucas para “semente ”. Aquelas mais bonitas, maiores, boas poedeiras e cuidadosas com seus pintinhos é que darão origem aos novos plantéis ao final da última colhei- ta. Em geral, essas “sementes” são colocadas em um pequeno espaço cercado por varas cruzadas, obrigando os animais a ficar quase sem ar e luz. É uma época de trabalho redobrado. As agricultoras somam a busca de alimentação para as galinhas à rotina de suas atividades. Saem para pegar algumas plantas nativas, como olho-de-santa-luzia (Zebrina pendula Schum), erva- moura (Solanum nigrum L.), bredo (Amarantus hypocondriacus L.), major gomes (Talinum paniculatum) e outras tantas. Mais recentemente, algumas famílias também passaram a comprar milho em grão ou em farelo para alimentar os seus plantéis.
LIMITAÇÕES DA CRIAÇÃO DE GALINHAS
Os estabelecimentos familiares em Lagoa Seca são em geral bastante reduzidos. As terras das famílias entrevistadas encontram-se na faixa entre 0,5 a 1 hectare e, sob essas condições, o roçado e o terreiro quase que se confundem, comprometendo a estruturação e a organização das atividades do arredor da casa. Embora o terreiro não desapareça por completo, suas potencialidades são extremamente limitadas por essa “disputa” por espaço com os roçados.
Diante desse quadro, as aves são as primeiras espécies a serem eliminadas do sistema produtivo. O roçado, sendo percebido como principal atividade produtiva, sobretudo pelos homens, acaba por se sobrepor nessa disputa implícita. Quando o roçado chega até a porta de casa, as galinhas deixam de ser reconhecidas como atividade produtiva e econômica e passam a ser consideradas um estorvo. No “brejo”, região mais úmida do município, não é raro encontrarmos famílias que criam somente uma ou duas galinhas amarradas pelos pés no terreiro de casa. Existem inclusive aquelas que já há alguns anos abandonaram por definitivo essa criação.
Embora seja um espaço no qual as agricultoras fazem o “dinheiro pequeno” ou de onde obtêm rendas não-monetárias que asseguram maiores níveis de autonomia alimentar para a família, o arredor de casa raramente é percebido e valorizado por sua importância econômica, tornando-se, por isso, vulnerável em face da pressão exercida pela necessidade de terras para o plantio dos roçados.
Com a redução do espaço disponível para o criatório das aves e para o plantio de culturas para alimentação das galinhas, aumentam as dificuldades de manejo. Torna-se dispendioso comprar complementação ou, às vezes, a totalidade da alimentação, e agravam-se os problemas de saúde das aves devido às precárias condições das instalações ou à inexistência delas.
A mudança nos padrões alimentares das famílias é outro fator agravante desse quadro. A crescente facilidade de consumir o frango de granja tem influenciado negativamente no valor do criatório doméstico, na dinâmica produtiva familiar e, sobretudo, colocado em risco os conhecimentos associados ao manejo das galinhas nos terreiros. Na medida em que se torna mais fácil a compra dos galetos, considerados inclusive mais saborosos por alguns, as novas gerações têm se desinteressado de uma atividade que antes permitia, sobretudo às mulheres, a compra de objetos de desejo, de vaidade e, até, o financiamento de estudos e viagens.
As bolsas distribuídas pelo Governo Federal, bem como os vencimentos provenientes da aposentadoria, têm substituído o papel econômico antes desempenhado pela criação de galinhas. Os ovos, os frangos e as galinhas produzidas geravam um dinheiro líquido e certo, que atendia às demandas emergenciais e de consumo da família, agora concedido pelos benefícios sociais. Eliminar essa atividade significa também contribuir para reduzir a autonomia da mulher, submetendo-a à incerteza e, sobretudo, à lógica de uso do recurso familiar agora administrado pelo homem.
O ARREDOR DE CASA: UM LABORATÓRIO DA VIDA
A partir da análise coletiva dos resultados da pesquisa, as integrantes da Comissão de Mulheres foram capazes de propor e promover transformações nas condições de produção e reprodução da vida material e social das famílias agricultoras de Lagoa Seca.
Na medida em que os roçados avançaram sobre os terreiros, foi preciso reorganizar e otimizar esse espaço. Nesse sentido, a Comissão de Mulheres do STR de Lagoa Seca passou a estimular ações estruturadoras como o Fundo Rotativo de Telas. Reunidos em grupos, agricultores e agricultoras aprenderam a confeccionar telas de arame galvanizado e se organizaram para gerir coletivamente os recursos financeiros captados para a construção dos cercados. A restituição gradual dos recursos aos fundos se faz de acordo com as regras estabelecidas por cada um dos grupos.
As telas de arame atendem às necessidades das famílias de forma diferenciada. Algumas utilizam as cercas para organizarem uma horta de plantas medicinais, outras para isolar o plantio de verduras, outras para separar áreas de pasto. Entretanto, a melhoria das instalações para o criatório das aves foi a destinação preferencial dada aos cercados financiados por esses fundos rotativos solidários. Com um espaço isolado, as agricultoras puderam refazer e aumentar seus plantéis e melhorar a qualidade de seus animais, minimizando muitas das dificuldades de manejo sanitário e reprodutivo.
O resgate e a revalorização das raças locais, mais adaptadas às condições ambientais da região, foi outro tema incorporado aos debates da Comissão. Com o tempo, os fundos rotativos passaram a incentivar o fomento dessas raças mediante o repasse às famílias que se compro- metessem a devolver animais jovens para serem distribuí- dos a outras famílias.
A preocupação com a alimentação dos plantéis também foi um assunto discutido. Além do resgate e da valorização do uso das plantas nativas, o grupo passou a estimular o plantio do guandu (Cajanus cajan, L.), do sorgo (Sorghum vulgare, L.) do girassol (Helianthus annuus L.), e de outras espécies com potencial para suprir as demandas alimentares e eliminar as eventuais compras de ração nos períodos secos do ano.
Um fundo rotativo de gansos foi também instituído com o objetivo de viabilizar a posse desses animais, aumentando a segurança de seus plantéis. Repetindo o procedimento antes colocado em prática com sucesso, para a disseminação das raças locais de galinhas, cada família contemplada por um casal de gansos assumiu o compromisso de repor ao fundo outro casal jovem.
Para tratar dos temas relacionados à sanidade das aves, o grupo de agricultoras promove reuniões e encontros para o resgate e troca de plantas medicinais e de receitas de remédios caseiros de uso veterinário, como hortelã (Mentha sativa) ou alho (Allium sativum L.) para vermes, limão (Citrus limonum), urucum (Bixa orellana) ou aroeira (Myracroduon urundeuva, Allemão) para gogo, mastruz (Chenopodium ambrosioides) para cicatrização e as folhas de melão-de-são-caetano (Momordica charantia L.) ou fumo (Nicotiana tabacum L.), postas no ninho para evitar o piolho.
A Comissão de Mulheres foi, assim, estruturando um conjunto de ações visando à melhoria das condições de criação. O resultado mais visível foi o aumento da produção de ovos e de carne de mais de 60 famílias do município.
DO ARREDOR DE CASA PARA OUTROS ESPAÇOS
Todo esse trabalho orientado para a valorização do arredor de casa favoreceu a intensificação das relações das mulheres, seja em suas famílias ou nos espaços públicos. Ao assumirem o papel de agentes ativas nos processos de geração e disseminação de conhecimentos, elas foram se afirmando como experimentadoras e tendo suas capacidades enquanto agentes de desenvolvimento local reconhecidas pela família, por suas comunidades e organizações.
Pouco a pouco o quintal foi saindo da invisibilidade e passando a ser reconhecido como elemento importante no sistema de produção. Não são raros os relatos de maridos que passaram a ajudar a tomar conta desse espaço: cuidam da tela e dos animais, buscam água, molham as plantas medicinais, ajudam a viabilizar novos experimentos etc. Observa-se assim um rearranjo do trabalho familiar e o estabelecimento de relações mais solidárias entre os membros da família.
A melhoria dos criatórios permitiu que algumas agricultoras orientassem sua produção para a comercialização de ovos e carnes na Feira Agroecológica Municipal e, mais tarde, na Feira Agroecológica Regional. Tendo o domínio da produção, assumem também a responsabilidade pela venda e asseguram sua autonomia no que se refere à decisão sobre o destino do dinheiro resultante do fruto de seu trabalho.
Os resultados da pesquisa e, sobretudo, as propostas inovadoras desencadeadas em Lagoa Seca foram também debatidas e construídas nas reuniões realizadas pela Comissão de Saúde e Alimentação do Pólo da Borborema. Ao lado de cada conquista individual, foram percebidas conquistas coletivas. Multiplicaram-se não só as práticas de manejo e melhoria dos arredores da casa, mas também experiências organizativas semelhantes nos outros municípios da região, fortalecendo um movimento crescente do reconhecimento público do papel estratégico da agricultora-experimentadora na agricultura familiar.
Adriana Galvão Freire:
assessora técnica da AS-PTA
[email protected]
Marilene Nascimento Melo:
assessora técnica da AS-PTA
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Fabiana dos Santos Silva e Elenice da Silva:
estagiárias da AS-PTA, estudantes do curso de Zootecnia da Universidade Federal da Paraíba, Campus Areia, e do curso técnico da Universidade Federal da Paraíba, Campus Bananeiras
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Revista V2N4 – No arredor de casa, os animais de terreiro