Bruno Azevedo Prado
Em 2008, pela primeira vez na história, mais da metade da população mundial passou a viver nas cidades. Segundo projeções do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, na sigla em inglês), em 2030, as cidades do chamado mundo em desenvolvimento concentrarão 80% da população urbana (UNFPA, 2007). Números como esses, somados à confluência das crises climática, econômico-política, energética e alimentar, suscitam novas questões acerca das linhas que demarcam o urbano e o rural e dos papéis que representam as alternativas locais baseadas na Agroecologia e na agricultura familiar e camponesa à globalização do sistema agroalimentar.
Em outras palavras, esse cenário aponta para a necessidade de colocar em pauta a reconfiguração dos sistemas agroalimentares. Se os espaços rurais já foram compreendidos como áreas cuja principal função era fornecer alimentos baratos e em grandes quantidades para os consumidores urbanos, atualmente as relações entre campo e cidade ganham novos significados à luz de questões políticas emergentes ligadas aos temas da soberania e da segurança alimentar e nutricional, da Agroecologia e dos modos de produção da agricultura familiar camponesa. O rural – ou, melhor dizendo, os rurais, frente a sua diversidade – expressa valores e modos de ser e fazer que incorporam preocupações urgentes relacionadas a questões ambientais e de sustentabilidade, à valorização de modo de vida próprio da agricultura familiar, ao reconhecimento de grupos que reivindicam demandas específicas e identidades autodeclaradas e a novas formas de combate dos efeitos perversos e duradouros da modernização agrícola. Os questionamentos ao modelo dominante de desenvolvimento levam a outras discussões na arena pública, mobilizando cidadãos tanto nos campos como nas cidades, evidenciando a grande confluência das crises que afligem as sociedades contemporâneas.
A questão da alimentação irrompe nesta discussão a partir de indagações relacionadas às transformações no sistema de produção, distribuição e consumo de alimentos – quem produz e onde, como e quando são produzidos os alimentos? Como chegam às nossas mesas? A inserção desse debate no campo da saúde e do meio ambiente tem levado à revalorização de práticas alimentares mais sintonizadas com as dinâmicas da natureza e orientadas por valores culturais estranhos a visões empresariais da agricultura. Por outro lado, crises alimentares ainda provocam graves situações de fome e desnutrição, assim como há um número crescente de pessoas em situação de obesidade em razão de dietas não saudáveis. Além disso, a degradação dos solos e a perda da biodiversidade aliadas ao quadro das mudanças climáticas, que colocam em risco a produção e o consumo de alimentos saudáveis e culturalmente adequados, reforçam um cenário de crise que tende a se tornar cada vez mais agravado e com efeitos catastróficos para a reprodução das formas de vida atuais.
Os artigos que compõem esta edição da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia refletem essas questões e enfatizam não só que alternativas podem – e devem – ser construídas, mas que um conjunto delas já está em curso. Essas respostas alternativas constituem uma variedade de agenciamentos sociotécnicos e invenções institucionais (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014) que datam de longo período–basta notar como a agricultura familiar e suas racionalidades econômico-ecológicas foram sendo desenvolvidas ao longo de gerações, baseadas no controle dos recursos necessários para a manutenção e a reprodução de seus modos de vida. Aliadas a essas racionalidades, vemos nesta edição novas conexões com consumi- dores dos meios urbanos sendo ativadas através de grupos de compras coletivas, reivindicações políticas pelo reconhecimento de espaços de vida para o cultivo de alimentos na cidade, comunidades de apoio à agricultura, reconhecimento de sabe- res tradicionais e populares pelas universidades, entre outros contextos e iniciativas de aproximação entre o rural e o urbano.
Tratamos aqui, portanto, de um inusitado conjunto de fenômenos que refuta as profecias relacionadas ao inexorável desaparecimento das comunidades rurais, por muito tempo alardeadas por teóricos do desenvolvimento rural. O processo de modernização da agricultura não só não confirmou tais previsões como hoje se veem reafirmados –não sem obstáculos, é importante constatar –os modos de vida do mundo rural e do campesinato em conexões inéditas com as cidades e regiões metropolitanas. Nestas, que por muito tempo foram entendidas como ápice do projeto modernizante, do consumo acelerado e da desconexão com a natureza, assistimos à generalizada emergência de práticas que respondem contrariamente àquele projeto, seja na valorização dos meios alternativos de transporte, na retomada do uso dos espaços públicos ou nos movimentos sociais que reivindicam o direito a uma outra cidade. O recente debate sobre a construção de ciclovias e a diminuição da velocidade dos carros na cidade de São Paulo, a emergência de movimentos e fóruns de favelas, a revisão de diversos Planos Diretores, que passam a reconhecer espaços de uso comum nas cidades a partir de reivindicações de movimentos da sociedade civil, o Movimento Ocupe Estelita, em Recife (PE), que trouxe novos olhares sobre os efeitos da especulação e do lucro imobiliários nas grandes cidades, são exemplos que apontam novos modos de conviviabilidade, ao tempo em que reconhecem que são os primeiros passos para o enfrentamento de outras mazelas comuns presentes e persistentes nos espaços urbanos. Mas essas são também iniciativas que adensam as tramas do rural e do urbano – este par que estávamos acostumados a ver como mais ou menos estanques, dissociados e quase intransponíveis entre si. Exemplos claros disso são a prática da agricultura urbana e periurbana, em suas diferentes escalas dos quintais domésticos, hortas comunitárias e coletivas e espaços periurbanos da agricultura familiar, bem como os novos circuitos de produção e consumo que ativam, em diferentes configurações, as conexões entre campo e cidade. São iniciativas institucionalizadas em políticas públicas, como as compras governamentais de produtos da agricultura familiar por escolas públicas ou equipamentos de distribuição de alimentos a populações em estado de insegurança alimentar, mas são também iniciativas formais e informais, individuais ou coletivas, de grupos de consumidores urbanos, chefs e ativistas que alçam a um novo patamar o consumo de alimentos frescos e saudáveis.
Desse conjunto diversificado de práticas e experiências concretas vão emergindo novas geografias alimentares que apresentam como eixos importantes de funciona- mento a reconfiguração das relações entre mercado e sociedade civil na conformação de circuitos agroalimentares curtos; novas relações entre o setor público, enquanto consumidor, e o mercado; e a reivindicação de marcos legais que reconheçam espaços de produção e novas percepções sobre o rural e o urbano. Um vasto campo de pesquisa e intervenção tem sido aberto, questionando a forma como as redes agroalimentares alternativas são formadas e como se estabelecem ao longo do tempo e do espaço, os tipos de mercados que abrangem e qual o efeito das práticas que delas derivam nos locais em que ocorrem, na medida em que extrapolam o rural.
A experiência da Rede Ecológica, no artigo elaborado por Bibi Cintrão, Denise Gonçalves, Miriam Langenbach e Mónica Chiffoleau (p.8), é um exemplo dessas transformações. Envolvendo aproximadamente 230 famílias de consumidores na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a rede se coloca como um espaço de formação de consumidores-cidadãos por meio de mecanismos autogestionários de compras coletivas. Em interação direta com agricultores e produtores, os grupos de consumi- dores viabilizam o abastecimento de alimentos de qualidade a preços mais acessíveis que aqueles encontrados em grandes cadeias de distribuição. Ao fazer isso, também ampliam para a esfera do consumo o anseio por modelos de produção sustentáveis.
Também na Holanda e na China, os novos papéis assumidos pelos consumi- dores são discutidos. O artigo de Judith Hitchman (p.33) trata das experiências de Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSAs), em que consumidores com- partilham com os agricultores os riscos e benefícios da produção de alimentos, comprando antecipadamente ou com regularidade. As experiências de CSAs, que, segundo a autora, já envolvem na China mais de 100 mil consumidores, são cada vez mais comuns pelo mundo afora.
Esses arranjos sociais e tecnológicos que encurtam a distância entre agricultores e consumidores são tema de outro artigo, de Greet Goverde-Lips, Janneke Bruil e Henk Renting (p.39). Nas experiências dos chamados mercados de proximidade (que incluem as cadeias e circuitos curtos e redes agroalimentares alternativas), os consumidores se posicionam como agentes ativos na construção de circuitos que garantem maior autonomia tanto a si mesmos, no âmbito do poder de escolha e compra, como aos agricultores e produtores de alimentos, que aumentam seus repertórios de comercialização em canais mais justos.
Já o artigo de Morgana Maselli (p.27) aborda o caso da implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) na cidade do Rio de Janeiro para discutir a necessidade de revisões dos marcos legais que regem a ocupação e o uso do solo na segunda maior metrópole do país. Novos instrumentos de política são reivindicados de modo a garantir a comercialização de alimentos produzidos por agricultores familiares localizados no espaço metropolitano, que hoje se encontram expostos a uma série de entraves para vender sua produção por não estarem em áreas legalmente considera- das rurais. Também aqui a mobilização dos consumidores tem sido essencial para alcançar bons resultados.
A criação de ambientes institucionais favoráveis a essas práticas inovadoras é uma condição para que elas se multipliquem e se consolidem. No entanto, os Estados não têm atualizado seus marcos legais e suas políticas públicas em consonância com as dinâmicas emergentes. A entrevista com Antonio Lattuca (p.23), que coordena o Programa de Agricultura Urbana da cidade de Rosário, na Argentina, abre espaço para o tema do reconhecimento e do apoio por parte do Estado a experiências que articulam consumidores, escolas, agricultores e outros atores. A política bem-sucedida de Rosário começou a ser implantada há 13 anos. Hoje, conta com mais de 1.500 agricultores produzindo para o consumo de suas famílias e também para a comercialização, o que tem servido de exemplo a diversas grandes cidades da América Latina.
Conhecimento, educação e cultura também são temas tratados nesta edição sobre as novas conexões entre campo e cidade. A lição aqui vem de Montes Claros, no norte de Minas Gerais, onde um espaço de vivência rural para crianças do meio urbano foi desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao perguntar sobre o que é o rural às populações urbanas, os professores do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG se aliaram à comunidade local para enriquecer o conteúdo das aulas das escolas públicas, valorizar os conhecimentos e as técnicas tradicionais e fomentar novas ocupações entre os agricultores urbanos.
Como evidenciam as experiências aqui relatadas, estamos diante de um conjunto de iniciativas impulsionadas por diferentes agentes, em várias esferas de atuação, que têm contribuído na prática para uma nova configuração das relações entre os espaços urbanos e rurais através da agricultura e da alimentação. A participação ativa de agricultores e consumi- dores é determinante e urgente para que iniciativas similares ganhem escala e possam fortalecer ainda mais as redes agroalimentares sustentáveis.
Bruno Azevedo Prado
assessor técnico da AS-PTA
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Referências Bibliográficas:
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há Mundo por Vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/Instituto Socioambiental, 2014.
UNFPA. State of World Population 2007: Unleashing the potential of urban growth. Nova York, 2007.
Baixe o artigo completo:
Revista V12N2 – Novas conexões entre o rural e o urbano