Fábio Dal Soglio, Eduardo Nascimento Abib e Derli Paulo Bonine
O Brasil é importante produtor de frutas cítricas. No Rio Grande do Sul, a produção anual é de, aproximadamente, 750 mil toneladas e se baseia principalmente em pomares de exploração familiar que possuem, em média, dois a três hectares. Embora o estado apresente condições favoráveis para a produção de frutas para consumo in natura, a maioria dos citricultores gaúchos adota pacotes tecnológicos que consistem no uso de insumos químicos e na simplificação do ambiente – práticas questionáveis, considerando os prejuízos à saúde de agricultores e consumidores e ao meio ambiente, além dos elevados custos de produção
Há experiências de citricultores ecológicos dessa região que demonstram ser possível produzir citros com o emprego de métodos de manejo que dispensam agro- tóxicos ou fertilizantes químicos. Entretanto, existem dificuldades para que essas práticas sejam aprimoradas, em razão da grande desarticulação entre o segmento produtivo e os setores da pesquisa agropecuária.
Métodos convencionais de pesquisa não têm conseguido responder às necessidades de desenvolvimento tecnológico para o manejo ecológico dos pomares. Esses sistemas produtivos são complexos e multidimensionais e, portanto, não podem ser compreendidos apenas pelos focos de atenção priorizados nos processos de investigação clássicos, ou seja, as dimensões tecnológica e econômica. Já as metodologias participativas de pesquisa, conduzidas em conjunto por agricultores, pesquisadores e extensionistas, têm demonstrado grande potencial para apreender a complexidade inerente a esses sistemas. Isso porque integram conhecimentos das famílias e comunidades nas dinâmicas de inovação agroecológica, permitindo que as influências sociais, ecológicas e culturais sobre as práticas de manejo também sejam consideradas.
Neste artigo, apresentamos como os desafios para a inovação tecnológica vêm sendo enfrentados por meio da iniciativa de pesquisa participativa conduzida nos vales dos rios Caí e Taquari por uma articulação de instituições que compõem o Grupo de Citricultura Ecológica (GCE).
A ORIGEM DA INICIATIVA
A Cooperativa dos Citricultores Ecológicos do Vale do Caí (Ecocitrus) foi formada em 1994 por quinze agricultores familiares descontentes com a agricultura convencional e que defendiam um modelo de desenvolvimento regional fundamentado na produção de base familiar e ecológica. Sua criação foi estimulada pelo Programa de Viabilização de Espaços Econômicos das Populações de Baixa Renda (Prorenda), coordenado pela Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/RS). A cooperativa tem por princípio o protagonismo dos agricultores em toda a cadeia produtiva de citros e, para tanto, organiza-se em diferentes setores: usina de compostagem; produção ecológica; formação e pesquisa em agroecologia; comercialização; agroindústria; e certificação participativa.
Suas ações no campo da pesquisa participativa se iniciaram em 2000, com recursos do projeto Pesquisa por Demanda, do programa RS Rural da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado do Rio Grande do Sul, articulando técnicos da Emater/RS, professores e estudantes do Programa de Pós-Graduação em Fitotecnia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O processo foi motivado inicialmente pela demanda dos agricultores associados à Ecocitrus, que desejavam vali- dar cientificamente as tecnologias ecológicas que vinham adotando. Os participantes desse projeto autodenominaram-se Grupo de Citricultura Ecológica (GCE), que atualmente reúne mais cooperativas e associações de citricultores, inclusive de produção convencional, além da Embrapa Clima Temperado. O leque de parcerias que configura o grupo permite que ele, além dos citricultores e extensionistas, conte com pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, como horticultura, fitopatologia, entomologia, ciência do solo e desenvolvimento rural.
A DEFINIÇÃO DOS OBJETOS DE PESQUISA
Desde a formação do GCE, diversos trabalhos de pesquisa têm sido realizados, começando pela caracterização das comunidades e agroecossistemas envolvidos, por meio de levantamentos junto às famílias e reuniões com as comunidades. As prioridades de pesquisa também foram definidas com os agricultores, a partir de um processo de diagnóstico que reconhecia as práticas adotadas por eles e consistia em reuniões e seminários para discutir problemas e possíveis soluções. Nesses encontros, ficou estabelecido que os problemas que mereceriam atenção imediata seriam de natureza tecnológica, em especial a dificuldade de controle do cancro cítrico (causado pela bactéria Xhantomonas axonopodis pv. citri), do ataque dos pomares pelo minador da folha (Phyllocnistis citrella) – pequena borboleta cujas lagartas atacam as folhas e aumentam a incidência de cancro cítrico – e pela mosca-das-frutas (Anastrepha fraterculus).
As ações de diagnóstico e definição de prioridades têm sido contínuas de forma a captar as mudanças de conjuntura típicas de uma região dinâmica e com grandes inter-relações com outros setores da sociedade como o Vale do Cauí. Esse processo de constante leitura da realidade tem propiciado que novas demandas de pesquisa surjam ao longo do tempo (ver quadro).
A CONDUÇÃO DAS PESQUISAS
Definidas as prioridades, as diferentes ações de pesquisa foram iniciadas com a mobilização ativa dos agricultores, pesquisadores e extensionistas para estabelecer objetivos e metodologias a serem adotadas. Todos os procedimentos são elaborados de forma a respeitar as práticas tradicionais utilizadas pelos agricultores, cabendo aos pesquisadores sugerirem os métodos de amostragem e de análise.
Essas ações são conduzidas principalmente em áreas de agricultores voluntários, que participam da condução dos ensaios, determinações e discussões sobre os resultados. Inicialmente, o número de agricultores envolvidos variou de um, no caso do controle do cancro cítrico, a dez, no caso do manejo da mosca-das-frutas, cujo monitoramento na região também contou com o auxílio de extensionistas. Esse trabalho favoreceu o aprendizado sobre critérios de identificação de diferentes espécies de mosca-das-frutas e outros insetos por parte dos agricultores e técnicos de campo.
Ensaios que não puderam ser conduzidos nas áreas dos agricultores devido a problemas técnicos ou epidemiológicos, tais como a inoculação de viveiros com X. axonopodis pv. citri, foram realizados no Centro de Formação da Emater/RS em Montenegro. Nesse caso, os pesquisadores, extensionistas e agricultores participantes do projeto visitaram periodicamente a área experimental para observar e refletir conjuntamente sobre os resultados obtidos. Algumas fases dos projetos também foram desenvolvidas nos laboratórios da UFRGS.
A GESTÃO DO PROCESSO DE PESQUISA
Todo o processo é coordenado por uma comissão, composta por um representante da Ecocitrus, um professor da UFRGS e um extensionista da Emater/RS, que se comunicam entre si e com o grupo pela internet. Também são realizados dias de campo com a presença de agricultores, quando os trabalhos são apresentados, aproveitando-se para fazer a confraternização entre os participantes. Os projetos de pesquisa são discutidos em reuniões do grupo e também nos espaços de debate próprios de cada uma das organizações envolvidas. As cooperativas e associações avaliam o andamento dos projetos em suas assembléias periódicas e os órgãos de pesquisa e extensão, em suas reuniões mensais.
Nos encontros regionais e nos seminários de discussão dos projetos, os resultados, em geral, são apresentados pelos pesquisadores responsáveis por cada projeto e discutidos por todos (agricultores, extensionistas e pesquisadores). No início, havia uma certa dificuldade de interação, mas, após alguns anos de convivência, os debates se tornaram mais abertos e os agricultores presentes nos encontros se mostram cada vez mais confortáveis para analisar os resultados e expressar suas opiniões.
A VALORIZAÇÃO ACADÊMICA DAS PESQUISAS
Cada projeto foi acompanhado por um ou mais estudantes de pós-graduação, além de graduandos em agronomia e bolsistas de iniciação científica. Ao assistirem à evolução do processo, os estudantes adquiriram rica experiência em pesquisa participativa e, ao final, os estudos foram sistematizados na forma de monografias, dissertações ou teses apresentadas na UFRGS. Cabe ressaltar que tem sido uma experiência gratificante contar com a presença ao menos de alguns dos agricultores envolvidos nos projetos nas defesas de mestrado e de doutorado, anteriormente reservadas quase que exclusivamente ao ambiente acadêmico.
Outro componente interessante tem sido a metodologia de análise de trabalhos realizados em ambientes não-controlados, como os experimentos implantados nas propriedades, nos quais são utilizadas ferramentas de análise empregadas na Ecologia. Uma delas é a análise multivariada de análise estatística, que permite estudar conjuntamente diversos fatores e variáveis e comparar resulta- dos obtidos em diferentes ambientes. Também são usados, como ferramentas de estudo, os índices de diversidade e de dominância de espécies e a análise da suficiência amostral, que auxiliam o monitoramento das mais diversas populações de organismos encontradas nos pomares, desde os não-desejáveis como aqueles benéficos e que podem ser valorizados no controle biológico natural de pragas.
Essas ferramentas são fundamentais, pelo fato de as pesquisas serem realizadas em condições não-controladas, diferentemente do que ocorre em trabalhos convencionais, onde os tratamentos são comparados lado a lado, em parcelas experimentais diminutas e não-representativas. No entanto, muitas dessas metodologias são desconhecidas dos cientistas convencionais de Agronomia, o que tem causado uma certa dificuldade para publicação dos resultados em revistas científicas ligadas a essa área. Mesmo assim, os resultados alcançados têm sido divulgados em revistas científicas de Ecologia, fato esse importante para os pesquisadores, já que a avaliação do desempenho profissional deles é realizada considerando principalmente a quantidade de publicações (e nem sempre a qualidade das mesmas).
PERSPECTIVAS DE CONTINUIDADE
Diversos projetos estão em andamento, dando continuidade aos trabalhos já executados e buscando inclusive a ampliação do leque temático abrangido pelas ações de pesquisa. Eles têm sido financiados com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de outros órgãos de fomento à pesquisa. No entanto, costumam encontrar dificuldades de operacionalização em função do desconhecimento, por parte desses órgãos, das especificidades metodológicas e organizativas de processos de caráter participativo. Diante disso, para assegurar a aprovação, os projetos são elaborados e encaminhados atendendo às prescrições dos editais, que são formulados segundo as concepções da pesquisa convencional.
Atualmente, estão sendo conduzidos dois projetos, aprovados em 2005, que contam com recursos do CNPq, sendo um para geração de tecnologias para a domesticação de frutíferas nativas e outro para o manejo de poda em citros. Os recursos são divididos entre a execução dos projetos em si e o apoio para a implementação de outros projetos, o que é possível por ocuparem parcialmente os mesmos espaços e infra-estrutura. No entanto, vários projetos encaminhados ao CNPq não obtiveram aprovação, especialmente os com base em metodologias participativas, por não terem descrição detalhada de objetivos e de métodos a serem empregados.
Além das pesquisas tecnológicas, estão sendo executadas ações voltadas para o desenvolvimento de instrumentos de avaliação, monitoramento e sistematização, assim como para a capacitação dos membros do grupo e a disseminação dos resultados. Em 2005, decidiu-se estabelecer um Programa de Desenvolvimento da Citricultura Ecológica, visando integrar melhor os projetos, facilitar o acesso a recursos e expandir as atividades de pesquisa para além da questão tecnológica. O programa, construído de maneira participativa por meio de encontros, assembléias nas associações e cooperativas e reuniões com pesquisa- dores e extensionistas, definiu outras prioridades de pesquisa, além das já mencionadas. São elas: o estudo de sistemas ecológicos de produção, inclusive de Sistemas Agroflorestais (SAFs), que já vinham sendo estudados pela Ecocitrus; o desenvolvimento de culturas alternativas, como frutíferas nativas do RS; o estudo sobre a cadeia produtiva; e estudos sobre a organização social e representações culturais das comunidades da região. Esses novos temas deverão ampliar as parcerias com outros grupos de pesquisa ligados à Embrapa/CT ou à UFRGS, que passam a se interessar pela experiência.
Contudo, é importante salientar que, embora os agricultores sejam chamados a participar de todas as fases do programa, em muitos momentos a presença deles não é ampla como se espera. São centenas de agricultores envolvidos no programa, mas em geral eles têm pouco tempo para participar de todas as reuniões. Assim, eles passam a delegar as decisões sobre a execução e a avaliação dos projetos a agricultores mais assíduos ou a técnicos ligados às associações e cooperativas. Mesmo sendo informados sobre o andamento dos projetos, nos seminários e dias de campo, não se tem conseguido participação mais efetiva de todas as comunidades da região. Para encontrar alternativas, o GCE planeja promover, no início de 2007, um curso de formação para facilitadores em pesquisa participativa, destinado a agricultores, técnicos e pesquisadores, de maneira a ampliar a abrangência do programa.
Fábio Dal Soglio
professor do Departamento de Fitossanidade, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) e Programa de Pós-Graduação em Fitotecnia (PPGFitotecnia) da UFRGS
[email protected]
Eduardo Nascimento Abib
engenheiro agrônomo da Ecocitrus
Derli Paulo Bonine
engenheiro agrônomo da Emater/RS e Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural (Ascar)
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Revista V3N4 – O Grupo de Citricultura Ecológica: aprendendo com a participação