João Dagoberto dos Santos
O propósito deste artigo é refletir sobre alguns dilemas ambientais e produtivos em assentamentos rurais, usando exemplos de projetos técnica e politicamente inovadores. Nas áreas reformadas, é comum que o modo de uso e gestão dos recursos naturais dos assentados entre em confronto com os sistemas convencionais de produção hegemonicamente adotados. As famílias beneficiárias da histórica luta pela terra e pela reforma agrária também enfrentam disputas com órgãos governamentais e não governamentais envolvendo o conhecimento e as práticas de manejo, exploração e preservação desses recursos dentro do contexto do estabelecimento de sistemas de produção. Apesar disso, partimos do pressuposto de que as questões ambientais e produtivas não representam só uma nova arena de conflitos, mas também de grandes possibilidades.
Na literatura dedicada aos estudos do mundo rural brasileiro, temos uma clara divisão entre dois projetos de desenvolvimento que estão filiados a dois paradigmas opostos: o que entende que a reforma agrária é uma condição para a realização de um projeto de desenvolvimento nacional mais justo e sustentável e o que associa a ideia de desenvolvimento unicamente à de crescimento econômico, ignorando o tema da (re)distribuição de terras.
O documento O Novo Rural Brasileiro, de Graziano da Silva (1999), é um exemplo emblemático desse segundo tipo de interpretação. A corrente teórica que norteou a sua construção assume que os problemas relacionados às questões da terra, do campo e da cidade, bem como do capital e do trabalho familiar, serão resolvidos pelo desenvolvimento do capitalismo. Segundo essa visão, a questão agrária não existe, já que ela é insolúvel na sociedade capitalista. Contudo, se é possível negar a questão na teoria, é impossível esquivar-se de seus efeitos práticos, como a desigualdade social e a renda capitalizada da terra, que produzem expropriação, miséria e gigantescos impactos ambientais.
Em números gerais, há no Brasil 8.763 assentamentos criados nos últimos 38 anos, abrigando aproximadamente 924 mil famílias, numa área total de 85,8 milhões de hectares distribuídos em mais de 1.200 municípios, e uma estimativa de pelo menos 180 mil famílias acampadas (Incra, 2011). Grande parte dessa área e dessas famílias pode e deve ser atribuída mais à pressão social e à conquista dos diversos movimentos socioterritoriais espalhados pelo Brasil do que à opção política espontânea do Estado. De acordo com Silva (2011, p. 100), temos hoje no Brasil cerca de 63 movimentos socioterritoriais, ocupando terras e, dessa forma, pressionando o governo a fazer a reforma agrária.
Desde a década de 1990, as pesquisas sobre assentamentos de reforma agrária têm se multiplicado, contribuindo para uma melhor compreensão dessa nova realidade de criação e recriação, resistência e subordinação do campesinato e, ao mesmo tempo, para aprofundar a reflexão sobre teorias, métodos, metodologias e técnicas de pesquisa. A intensa concentração fundiária, a distribuição desigual da terra e as limitações impostas a uma parcela expressiva de famílias agricultoras, em termos de acesso a crédito rural, assistência técnica, canais de comercialização, etc., são apenas alguns dos problemas que as afligem, particularmente aquelas de pequeno porte e descapitalizadas.
Em relação à agricultura, em qual- quer que seja o seu âmbito, já existem numerosas análises sobre o conflito entre o padrão convencional, de larga escala e altamente industrializado e o crescente movimento que recomenda profundas mudanças em direção a uma agricultura ecologicamente sustentável (VEIGA, 2003), o que podemos entender por formas alternativas de agricultura e um lógica distinta de desenvolvimento rural. Esse conflito tende a se acirrar diante da necessidade de aumentar a produção de alimentos para o consumo humano, tanto no caso brasileiro como também em outros países.
A máxima que diz para mudar o presente, é preciso olhar o passado não parece verdadeira no caso do agronegócio brasileiro. Não há reconhecimento dos erros cometidos que ocasionaram inúmeros problemas, entre os quais podemos citar a ruína de produtores rurais; o êxodo rural; a redução da capacidade produtiva por erosão e/ou desertificação; a contaminação sistêmica por agroquímicos e organismos geneticamente modificados; e a perda crescente da biodiversidade. Erros que redundaram em lucros apenas para uma minoria, gerando um abismo social que, no caso brasileiro, tenderá a aumentar, com a aparentemente irreversível opção pelo atual modelo de desenvolvimento rural baseado na lógica agroexportadora. Assim, em vez de querer vencer o jogo do agronegócio e enfrentar a sua ameaça à biodiversidade e à soberania alimentar e à disponibilidade de trabalho, é preferível começar outro jogo. É preciso então requalificar o debate e os embates.
A partir disso, devemos listar possíveis alternativas, assumindo os assentamentos de reforma agrária como exemplos e modelos ideais no campo brasileiro quando se visualiza uma nova lógica agrária e produtiva. Ao considerar a sua viabilidade, devemos percebê-los como investimentos da sociedade.
DESAFIOS DOS ASSENTAMENTOS
Hoje, os milhões de hectares ocupados por assentamentos rurais em todo o país enfrentam um dilema. Além de conquistar a terra, é preciso converter os sistemas de produção, tendo em vista que a replicação das tecnologias convencionais de certa forma condiciona os agricultores e agricultoras a continuarem reféns dos perversos mecanismos de injustiça estrutural existentes no Brasil.
Inúmeras experiências espalhadas por todo o território nacional demonstram que a transição agroecológica é possível e viável, embora não deixe de ser um grande desafio, não só para as famílias assentadas e os movimentos sociais, mas para toda a sociedade, sobretudo porque se faz necessário sair da escala experimental e demonstrativa para escalas comerciais e de mercado. Entretanto, o gigantesco potencial que esses assentamentos representam na produção de alimentos e na prestação de serviços ecos- sistêmicos atualmente ainda está em grande parte sendo subutilizado.
Nessa perspectiva, é preciso reorientar o processo de utilização dos recursos naturais nos assentamentos, tomando como referência as demandas da conservação ambiental, entendendo que os recursos naturais e a biodiversidade são ferramentas que viabilizam a produção com bases agroecológicas. É preciso rearticular as práticas produtivas tradicionais, voltadas para a construção da segurança alimentar e a geração de renda monetária.
É nesse contexto que algumas experiências inovadoras apontam caminhos promissores, podendo contribuir para a reflexão, assim como para a efetivação de processos duradouros e sustentáveis.
PONTAL DO PARANAPANEMA
No Pontal do Paranapanema, extremo oeste do estado de São Paulo, foi conduzido um projeto intitulado Bio energia com Biodiversidade e Segurança Alimentar. Financiado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o projeto foi fruto de uma parceria entre universidades, movimento social, prefeituras, instituições públicas de pesquisa agronômica – Agência Paulista de Tecnologia dos Agroengócios (APTA) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) –, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e o Incra, tendo os seguintes eixos de atuação:
(1) consolidação da produção de oleaginosas no âmbito da agricultura familiar e dos assentamentos rurais, com foco no fortalecimento da cadeia do biodiesel, na produção de alimentos e na conservação da biodiversidade e com bases técnicas e científicas na Agroecologia e nos sistemas agroflorestais (SAFs);
(2) formação teórico-conceitual e prática de agricultores, técnicos e estudantes participantes do projeto;
(3) consolidação de pesquisas sobre a macaúba (Acrocomia aculeata) e outras oleaginosas potenciais para a região (como o amendoim, o gergelim e a mamona);
(4) consolidação da cadeia do biodiesel no contexto da agricultura familiar no Pontal do Paranapanema e integração com políticas públicas de aquisição de alimentos – Pro- grama de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae);
(5) integração e cooperação interinstitucional com parceiros locais e estratégicos; e
(6) geração de subsídios para a construção de propostas inovadoras de uso, ocupação, restauração e conservação de Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e Reservas Legais (RLs).
A base metodológica do projeto consistiu, sobretudo, em trabalhar a construção de sistemas de produção agroecológicos de forma participativa e com foco na produção de oleaginosas para biodiesel, buscando: i) promover a autonomia dos agricultores por meio das atividades de formação ; ii) fortalecer os sistemas agroflorestais (SAFs) como ferra- menta para a produção de oleaginosas, principalmente espécies nativas; iii) contribuir para a consolidação de políticas públicas e ações no sentido de fortalecer os SAFs, fomentar a cadeia do biodiesel e integrar a produção de alimentos; iv) contribuir para o desenvolvimento de novas pesquisas relacionadas aos SAFs.
Na Figura 1, é demonstrado um dos arranjos produtivos desenvolvidos nessa iniciativa, o qual, dentre outras características, apresentou potencial para ser utilizado não só nas áreas dos lotes dos assentados, mas também nas áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente (seguindo a legislação vigente).
A produção de biocombustíveis vem sendo fortemente incentivada como alternativa energética renovável no Brasil e de inclusão de agricultores familiares e assentados em programas governamentais. Uma opção plausível para a diversificação de sistemas de produção de biodiesel é a incorporação da fruticultura. Sonego (2003) credita a essa atividade um importante papel socioeconômico para pequenas propriedades devido ao seu alto rendimento econômico por área. Assim, os SAFs multiestratificados que tenham a produção de oleaginosas e a fruticultura como carros-chefes possuem enorme potencial de inclusão da agricultura familiar na cadeia do biodiesel, com maiores garantias de geração de renda, segurança alimentar e aumento da biodiversidade.
Essas espécies carros-chefes (oleaginosas e fruteiras) proporcionam ao agricultor não só o seu sustento, como também constituem a base do equilíbrio do agroecossistema, sendo responsáveis por referenciar a combinação das multiespécies do desenho agroflorestal. O desenho consiste na distribuição dos componentes no tempo e no espaço. Em outras palavras, ele determina a densidade de plantas e sua disposição horizontal e vertical na área em uma sequência de tempo. Dessa forma, após definidas as espécies-chave, são escolhidas as outras plantas que serão associadas ao seu redor, levando em conta suas diferenças e a complementaridade das relações entre as espécies, atribuindo a elas suas funções no sistema.
VALE DO RIBEIRA
Outro exemplo didático, em outra configuração de paisagem, vem do Vale do Ribeira. O Vale do Ribeira localiza-se no sul do estado de São Paulo e no norte do estado do Paraná, região que se caracteriza tanto pela baixa dinâmica econômica quanto por concentrar grande parte da área remanescente de Mata Atlântica do Brasil. O bairro rural Guapiruvu, no município de Sete Barras (SP), tem como principais atividades econômicas a produção de banana, palmito de pupunha e a exploração predatória de juçara ( Euterpe edulis). A luta pelo uso e ocupação do território por parte dos agricultores familiares tradicionais, residentes ali há mais de 150 anos, culminou na criação do Assentamento Alves, Teixeira e Pereira, em 2005, um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), onde mais de 80% da área é ocupada por florestas primárias.
Com o objetivo de verificar a viabilidade dos SAFs praticados historicamente na região, o bairro Guapiruvu foi escolhido para a realização de um estudo comparativo de avaliação econômica entre um sistema convencional de produção de banana e um sistema agroflorestal (SAF) que tinha como carro-chefe a banana. A metodologia utilizada baseou-se no acompanhamento do fluxo de caixa de um período de um ano. Utilizando-se o valor presente líquido como parâmetro econômico para a análise dos dados, os cálculos foram efetuados com taxas de desconto mensais de 1%, 0,8% e 0,4%.
É notória a discrepância entre os custos dos sistemas, o que se explica pela alta demanda de insumos do sistema convencional, que gasta 45 vezes mais em comparação com o SAF (Gráfico 1). As despesas mais expressivas do sistema convencional que compõem o custo total são: óleo mineral (16%), adubo (35%), veneno (7%) e mão de obra contratada (19%).
O rendimento anual encontrado para a bananeira-prata foi de 30,6 kg/touceira no sistema convencional e 6,8 kg/ touceira no SAF, ou seja, o primeiro é 4,5 vezes superior que o segundo. A variedade de produtos comercializados nos dois sistemas produtivos é baixa: banana e semente de juçara no convencional; banana e pupunha no SAF. Porém, o SAF apresenta 25 espécies de uso potencial para o autoconsumo e comercialmente promissoras, além de conter mais de 10 mil juçaras na propriedade, sendo que aproximadamente 500 delas já atingiram sua fase reprodutiva, ou seja, são potenciais para a comercialização de polpa, semente e/ou palmito. Considerando a taxa de desconto de 0,4% ao mês, o SAF apresentou uma renda líquida anual por hectare 38,7% maior, mesmo o sistema convencional tendo apresentado uma renda bruta anual por hectare 20% superior (Gráfico 2).
Os dois sistemas de produção apresentaram um saldo de renda positivo no final de um ano para as três taxas de desconto adotadas. Porém, em função da alta dependência de insumos externos, os custos de produção do sistema convencional são muito elevados, o que submete o agricultor a gastos demasiados. Além disso, o uso intensivo de adubos sintéticos e venenos impacta de forma significativa o meio ambiente e a saúde da família do agricultor.
O SAF demonstrou ser uma boa atividade agrícola para o pequeno agricultor local, por apresentar um saldo positivo e superior ao do sistema convencional. Além disso, está sendo viabilizado o processo de manejo do imenso potencial da mata nativa, através da coleta de sementes florestais, ornamentais, medicinais, polpa de juçara, etc.
CONCLUSÃO
O potencial adormecido contido nos assentamentos rurais no Brasil é gigantesco e desvalorizado. Está em tempo de revermos os processos históricos de conquista da terra e de produção que tradicionalmente são desenvolvidos nos assentamentos rurais.
Os elementos necessários para uma releitura do ponto de vista da viabilidade desses espaços rurais já estão disponíveis. É preciso então aproveitar as oportunidades representadas pelos novos assentamentos que surgem e redinamizar as áreas já consolidadas.
Ações concebidas e desenvolvidas de forma efetivamente participativa e tecnicamente contextualizadas dão resultados! Os exemplos apresentados aqui demonstram claramente isso. Mostram também que os sistemas produtivos agroecológicos são totalmente viáveis e passíveis de replicação.
Os desafios são muito grandes, embora, em termos tecnológicos/produtivos, já exista bastante acúmulo para o desenvolvimento de tecnologias apropriadas à agricultura familiar. O maior dos desafios reside, portanto, no processo de capa- citação e formação dos agricultores e agricultoras. E é nesse sentido que precisamos ganhar escala e profundidade, exigindo métodos adequados. Esse é o desafio de todos!
João Dagoberto dos Santos
engenheiro florestal, professor ESALQ/USP
[email protected]
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Revista V8N4 – Ocupar, resistir e produzir: velhos e novos paradigmas na configuração de assentamentos rurais como alternativa de sustentabilidade