Janneke Bruil
Quando 2014 foi proclamado o Ano internacional da Agricultura familiar, a Organização das Nações unidas (ONU) trouxe à tona as contribuições essenciais da agricultura familiar para a segurança alimentar e nutricional, para o bem-estar das sociedades contemporâneas, para a economia, para a conservação ambiental e da biodiversidade, para o uso sustentável dos recursos naturais e para a resiliência frente às mudanças climáticas.
No entanto, a tendência dos governos nas últimas décadas tem sido a priorização da produção de commodities agrícolas e a liberalização do mercado. Enquanto isso, a maioria dos 500 milhões de famílias camponesas de todo o mundo não tem acesso aos investimentos e políticas necessárias para que possam se manter e se desenvolver. Os agricultores familiares e suas organizações são frequentemente excluídos dos processos decisórios e estão enfrentando dificuldades cada vez maiores para acessar os recursos, não só à terra de vida e de produção, mas também às variedades e raças locais de plantas e animais. Tal contexto, aliado às mudanças climáticas, é responsável pelo aumento da pobreza rural, da fome crônica, da degradação dos recursos e por um ritmo sem precedentes de migração para as áreas urbanas, especialmente de jovens.
Ao longo de 2014, foram realizados diálogos e conferências regionais com a participação de representantes de organizações de agricultores, governos, universidades, instituições internacionais, ONGs, entre outros setores. Muitos desses eventos foram co-organizados pela FAO, a agência da ONU que liderou as atividades do Ano Internacional da Agricultura Familiar. A partir de vozes vindas de todas as regiões do planeta, surgiram inúmeras propostas para o fortalecimento da agricultura familiar. Uma síntese dessas recomendações é apresentada neste texto e está organizada nos seguintes nove grandes campos de atenção:
1. ABORDAGENS INTERSETORIAIS
As estratégias voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar devem abranger aspectos como os processos de urbanização, a infraestrutura rural, a revalorização dos conhecimentos e das culturas tradicionais e indígenas, os serviços de educação e de base e a criação de condições de vida adequadas para a juventude rural. Para tanto, as manifestações dos encontros regionais enfatizaram a necessidade do emprego de abordagens intersetoriais referenciadas a territórios no desenho de programas de desenvolvimento rural integrado. Os encontros ressaltaram a necessidade da promoção de estratégias agroecológicas que valorizem conhecimentos locais como a base para o desenvolvimento de agriculturas resilientes aos efeitos das mudanças climáticas. Destacaram também a importância da ampliação das oportunidades de geração de renda em áreas rurais, incluindo atividades econômicas não agrícolas, como o turismo rural.
2. REFORMA AGRÁRIA
Reiteradas cobranças foram feitas para a efetivação de reformas agrárias e a garantia dos direitos territoriais de populações tradicionais nos campos, nas águas e nas florestas. Essas demandas apontam também a necessidade de eximir a agricultura familiar dos encargos atrelados a políticas destinadas a setores agrícolas industriais de grande porte. Foi solicitado à Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) que assegure que os Princípios para o Investimento Responsável em Sistemas Agrícolas e Alimentares protejam os direitos dos pequenos produtores em função de seu papel central na produção de alimentos e também pelo fato de que, juntos, eles investem mais recursos no desenvolvimento agrícola do que qualquer multinacional. A promoção da soberania alimentar foi aponta- da como um meio de fortalecer a agricultura familiar e erradicar a fome e a pobreza, sendo a FAO convocada a conduzir uma análise abrangente, inclusiva e dinâmica do conceito de soberania alimentar.
3. ACESSO AOS RECURSOS NATURAIS E À IMPLEMENTAÇÃO DAS DIRETRIZES VOLUNTÁRIAS
Melhorar o acesso à terra e à água deve ser uma meta prioritária na elaboração de programas de uso do solo e de gestão dos recursos hídricos. O direito dos agricultores de produzir, reproduzir, trocar e vender suas sementes também deve ser assegurado, porque sem terra, água e sementes, a agricultura familiar camponesa e indígena não é viável. A prática da grilagem foi firmemente condenada. Além disso, o apelo para a instauração de uma moratória sobre a produção de agrocombustíveis industriais foi recorrente nos debates. Em todo o mundo, houve uma extraordinária manifestação de apoio para que os governos implementem as Diretrizes Voluntárias Sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, da Pesca e das Florestas, consideradas como a melhor maneira de garantir o acesso aos recursos naturais para a agricultura familiar, especialmente para as mulheres, os jovens e os povos indígenas.
4. APRIMORAR OS MECANISMOS DE COMÉRCIO E APOIAR A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS
Os acordos e políticas ligados ao comércio devem ser revistos ou reconsiderados, a fim de melhor atender os interesses da agricultura familiar. Os governos e outros atores devem garantir os direitos humanos, econômicos, sociais e culturais da agricultura familiar e dos trabalhadores rurais, bem como ampliar seu acesso aos mercados e assegurar preços justos, por exemplo, através da promoção de merca- dos locais, de compras públicas da agricultura familiar e da melhoria das estruturas de armazenamento e transporte.
Além disso, os alimentos produzidos pela agricultura familiar podem ser valorizados por intermédio do estabeleci- mento de regras que remetam à sua origem, da criação de selos específicos da agricultura familiar e do fornecimento de informações sobre o seu valor nutricional e sobre seus benefícios à saúde.
5. ACESSO A CRÉDITO E A FINANCIAMENTO
Todos os encontros regionais convergiram para a necessidade de melhoria do acesso dos agricultores familiares a meios de financiamento confiáveis e estáveis, com procedimentos de empréstimo simplificados, modalidades de seguro para reduzir os riscos e o desenvolvimento de instituições financeiras adequadas à realidade dos agricultores.
6. EQUIDADE DE GÊNERO
Programas específicos são necessários para fomentar o empoderamento das mulheres agricultoras, facilitando a sua participação na tomada de decisões e sua inclusão equitativa em mercados de trabalho rurais flexíveis. Medidas de discriminação positiva são essenciais, sobretudo as que envolvem o acesso aos recursos naturais e às políticas públicas.
7. FORTALECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES DA AGRICULTURA FAMILIAR
A importância das organizações da agricultura familiar foi um aspecto enfatizado para que haja um reequilíbrio de poder econômico e político frente a outros atores interessados nos processos de formulação e execução de políticas e programas públicos. Entre as principais demandas apontadas, destaca-se a necessidade de os governos incluírem as organizações agricultoras em diálogos e tomadas de decisões, programas de formação que sejam adequados, apropriados e orientados pelas famílias, estratégias de adaptação às mudanças climáticas e de agregação de valor aos produtos. As atividades propostas incluíram a criação de programas de educação e formação e de intercâmbio de experiências entre as organizações agricultoras.
8. PESQUISA E EXTENSÃO ORIENTADAS PARA AS FAMÍLIAS AGRICULTORAS
Sistemas inovadores de pesquisa e extensão devem ser orientados para valorizar os (as) próprios (as) agricultores (as) como atores da produção e socialização de conhecimentos. Nesse sentido, devem identificar e valorizar os esforços de inovação local, sobretudo para a construção de estratégias para adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.
9. ESTRATÉGIAS PARA ATRAIR A JUVENTUDE
A participação da juventude na agricultura deve ser incentivada de todas as formas possíveis, uma vez que as rupturas entre gerações e gênero são as maiores ameaças à agricultura familiar. É preciso direcionar melhor os processos de formação profissional para atender adequadamente às demandas da atividade agrícola e às necessidades da juventude rural. Será igualmente importante que as políticas apoiem o acesso dos jovens aos recursos produtivos, especialmente à terra e ao crédito. Dessa forma, torna-se premente ter uma visão holística sobre as necessidades da juventude para que ela possa ter assegurado o direito de tocar a vida em seus próprios territórios de origem.
… E DEPOIS DO ANO INTERNACIONAL DA AGRICULTURA FAMILIAR (AIAF)?
Está claro que a agricultura familiar adquiriu grande visibilidade e reconhecimento em 2014. Em vários países podemos identificar sinais de um maior compromisso político para com a agricultura familiar. Os próprios agricultores – mulheres, homens e jovens – têm se mobilizado para articular e defender seus pontos de vista e aspirações. Mas continua a haver grandes lacunas nos debates e campos de preocupação para com o futuro da agricultura familiar. Por essa razão, os processos de empoderamento estimulados no AIAF devem ter continuidade.
Só poderemos celebrar o poder dos agricultores familiares quando seus direitos po- líticos, econômicos e culturais estejam assegurados para que eles mesmos definam e coloquem em prática projetos de desenvolvimento coerentes com suas aspirações e potencialidades. Como afirmado em uma declaração internacional da sociedade civil, o AIAF deve ser o início de um processo que fortaleça a agricultura familiar camponesa, indígena e não patriarcal. E nós somos parte da solução.
Janneke bruil
Programa de Educação e Políticas Públicas do Ileia
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Revista V11N4 – Pelo fortalecimento da agricultura familiar, camponesa e indígena: recomendações do ano internacional da agricultura familiar