Pequenas criações e agricultura familiar são temas intimamente relacionados. A diversidade de produtos oferecida e as funções exercidas pelos pequenos criatórios jogam um papel fundamental no reforço da racionalidade técnico-econômica da agricultura familiar, que se expressa como uma unidade de produção voltada para o mercado e para o consumo doméstico. É justamente essa lógica produtiva bifocada que explica a presença generalizada dos pequenos animais nas propriedades familiares.
A alimentação das próprias famílias agricultoras é, sem dúvida, uma das funções primordiais dos pequenos criatórios. Provenientes de diferentes espécies animais e das mais variadas composições e sabores, produtos como méis, carnes, peixes, mariscos, miúdos, gorduras, ovos e leites possuem alta qualidade nutricional e nutracêutica – presença de substâncias com propriedades terapêuticas e preventivas contra doenças. Sob esse aspecto, são fundamentais para a segurança alimentar das famílias e particularmente importantes para a agricultura urbana que, em geral, dispõe de espaços reduzidos, mas capazes de suportar criações em pequena escala destinadas a fornecer alimentos para as famílias com limitado acesso a produtos de origem animal, cujo custo é relativamente elevado.
As pequenas criações contribuem também com outros produtos, como sebo, peles, penas, fios, fibras, ossos e várias substâncias que são empregadas de forma industrial ou artesanal na fabricação de peças do vestuário, medicamentos e utensílios diversos, com importante contribuição na economia familiar. O esterco, por sua vez, concorre para a continuidade dos ciclos de nutrientes dos solos, cuja reprodução da fertilidade é a base para uma agricultura sustentável. Além disso, os pequenos animais se constituem numa poupança estratégica, que pode ser mobilizada em ocasiões de crise ou de eventos importantes na vida da família.
Os animais são parte essencial da cultura brasileira, especialmente na culinária e nas festas. É nítida sua influência na construção de identidades regionais. O pato ao tucupi e as caldeiradas de peixe, na Amazônia; a carne e a buchada de bode no Nordeste; a galinhada no cerrado; a feijoada e o frango com quiabo no Sudeste; o charque de ovelha no Sul são bons exemplos dessa marcante presença dos pequenos animais na vida rural e nos costumes urbanos.
Portanto, é compreensível que os agricultores valorizem as pequenas criações como componentes importantes em suas estratégias de convivência e de reprodução familiar nos mais diferentes ecossistemas.
Tradicionalmente, essa parceria com a natureza vem sendo feita a partir dos conhecimentos dos agricultores sobre o meio ambiente e da aplicação desse saber na gestão dos recursos locais: espaço, alimentação e adaptação dos animais ao meio, principalmente. A diversidade de espécies criadas e o dimensionamento dos plantéis são definidos com base em critérios que levam em conta a dinâmica do conjunto do sistema produtivo em particular a relação de equilíbrio entre os policultivos e as criações.
Na agricultura moderna, o animal é visto como mera matéria-prima para a produção industrial. E, como tal, o importante é a simplificação do processo e a maximização do lucro, desconsiderando questões éticas, como o bem-estar animal e o respeito a sua natureza e à saúde do consumidor. Toda sorte de práticas antiecológicas e extremamente agressivas ao animal é então difundida em nome da escala de produção e da máxima produtividade. A retirada parcial da cauda nos suínos, do bico nas galinhas, a reversão sexual em algumas espécies de peixes com uso de hormônios, a interferência no fotoperíodo com o emprego de iluminação artificial em aviários, a muda forçada nas aves, o confinamento e o adensamento excessivo de animais são alguns dos inúmeros exemplos dessas práticas.
Suas tecnologias são alicerçadas em rígidos programas sanitários (vacinação, isolamento das instalações e desinfecção do ambiente, principalmente) e no uso sistemático de antibióticos e outras drogas, as principais armas desses sistemas para conter as doenças. Contrariando o esperado, a cada dia, doenças emergentes e outras já conhecidas reaparecem mais patogênicas, ameaçando a saúde dos animais e de toda a população. Um exemplo atual é o da influenza aviária, ou “gripe aviária”. Em vários países, milhões de aves já foram sacrificadas ou morreram dos seus efeitos. Há ainda registros de vítimas na população e a ameaça de uma pandemia de gripe humana.
Com isso, os olhares da avicultura mundial voltam-se para os criatórios extensivos praticados a céu aberto, que, na epidemiologia dessa virose, podem oferecer riscos se tiverem contato com aves migratórias portadoras da doença. No Brasil, as grandes empresas e entidades de setor avícola apontam a criação de base familiar como atividade que coloca em risco o sucesso do plano nacional de contingência da gripe aviária. A atual pressão exercida por esse setor sobre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) repete um antigo procedimento que, em grandes traços, explica a razão pela qual as legislações para registro da produção animal impõem normas e procedimentos em geral inatingíveis para estabelecimentos que produzem em pequenas escalas, como os da agricultura familiar, favorecendo a criação de reservas de mercado para o setor empresarial.
No entanto, as maiores ameaças à avicultura industrial são intrínsecas ao próprio modelo de criação, que artificializa ao máximo as condições ambientais, concentra milhares de aves e as coloca em situação de vulnerabilidade extrema. O conceito de saúde animal na agroecologia está relacionado à saúde de todo o sistema. As causas das doenças, portanto, não se restringem às interações entre o agente etiológico e o animal, mas estão enraizadas no desequilíbrio sistêmico gerado pela extrema artificialização do meio ao qual os animais são submetidos.
Plantéis cada vez maiores inviabilizam o cultivo de alimentos nos próprios sistemas de produção, gerando total dependência de insumos externos e alto custo energético, com graves conseqüências ambientais. Uma delas é a redução dos tipos de alimentos que compõem as dietas animais, com a universalização do emprego de milho e soja na fabricação das rações para as criações industriais. Ainda mais grave é a abertura de fronteiras para a expansão dessas culturas, que ocorre sem levar em conta os riscos da produção e utilização de soja e milho transgênicos e a destruição de ecossistemas frágeis, como o cerrado e as florestas tropicais.
No sul do país, a ação dos complexos agroindustriais de “exploração” de aves e suínos, principalmente dos grandes frigoríficos e das empresas de genética, ilustra exemplarmente as transformações ocorridas nos sistemas tradicionais dessas criações. Os efeitos devastadores sobre a agricultura familiar ocorrem via integração vertical, com a total subordinação do agricultor a uma empresa e ao seu pacote tecnológico.
Esta edição da Revista Agriculturas tem seu foco nas experiências de pequenas criações nos sistemas produtivos familiares, a partir de uma perspectiva agroecológica. Essa abordagem extrapola a ótica produtivista que norteia as políticas de fomento de pequenas criações para a agricultura familiar.
Abelhas sem-ferrão, camarões de água doce, cabritos ecológicos, ovelhas crioulas, suínos e galinhas em diferentes ecossistemas e culturas são uma pequena amostra da diversidade de espécies trabalhadas nos sistemas produtivos familiares.
Diversidade também de biomas, de culturas, de modos de viver e de criar. À frente dessas criações estão meliponicultores do Norte e Nordeste, ribeirinhos, pescadores da Amazônia, sertanejos do São Francisco, mulheres do agreste paraibano, agricultores e agricultoras de Santa Catarina, do Espírito Santo e certamente de todo o Brasil.
Diversidade, sim, mas na unidade. As experiências destacadas mostram que é possível a retomada da lógica de integração e complementaridade vegetal-animal, princípio fundamental dos sistemas produtivos de base ecológica.
Um elemento dessa unidade é o ajuste das experiências ao seu contexto ecogeográfico e sociocultural, revelando a vocação dos agricultores para a criação de animais no meio onde vivem.
Unidade na incorporação das espécies aos diferentes sistemas produtivos, de distintas maneiras, cumprindo as mais importantes funções: segurança alimentar; melhoria da qualidade de vida; elevação da renda; aumento do rendimento das culturas, melhorando o suporte para a produção de mais alimentos; conquista da cidadania por mulheres agricultoras; e preservação ambiental.
Unidade na transição agroecológica que, mesmo apresentando níveis diferenciados, se manifesta não apenas como sinônimo de transformações físicas e biológicas na base dos sistemas produtivos, mas como processo de profundas mudanças sociais e de valores individuais. As experiências mostram a organização dos agricultores, o resgate do seu protagonismo na produção e a utilização de conhecimentos úteis à gestão dos sistemas de criação como elementos-chave dessas transformações. Ao contrário do modelo industrial, que conduz a intensivos processos de erosão genética, os exemplos aqui apresentados se fundamentam na valorização da biodiversidade, por meio do manejo e da extração consciente dos seus produtos (mel, crustáceos), ou contribuindo para o seu resgate e manejo racional. Esse é o caso do melhoramento genético de ovelhas crioulas no Peru, do porco sorocaba no Espírito Santo, das raças locais de galinhas na Paraíba, das forrageiras nativas da caatinga e de outras plantas empregadas na alimentação e prevenção de doenças dos animais. São recursos locais, que formam a base para a autonomia produtiva.
A unidade se expressa também na valorização dos produtos obtida pela qualidade do processo de produção. As experiências mostram como as opções de comercialização e agregação de valor se ampliam quando os alimentos são produzidos ecologicamente, conquistando o consumidor por atributos como autenticidade de sabor, cor e aparência; valor biológico e nutricional; e, sobretudo, maior segurança pela ausência de resíduos de agrotóxicos, medicamentos e organismos geneticamente modificados.
Outro aspecto recorrente nessas experiências está relacionado à metodologia de trabalho, que prioriza o enfoque sistêmico, a ação coletiva e a participação dos agricultores como atores responsáveis pelo desenvolvimento de tecnologias e de soluções locais para os problemas encontrados. Soluções muitas vezes simples, mas com forte eficácia e poder de disseminação. O manejo inovador na captura e estocagem do camarão de água doce pelas populações ribeirinhas no Pará é um exemplo de tecnologia de amplo alcance social, com impactos que se irradiam para além das fronteiras locais. Para a falta de crédito, fator de exclusão de muitos agricultores ao acesso às inovações, o fomento por intermédio de fundos rotativos, empregados para a revitalização dos arredores das casas pelas agricultoras experimentadoras da Paraíba ou para a reprodução do porco sorocaba por famílias capixabas, demonstra a força da união e da solidariedade na construção de novas fórmulas econômicas para o desenvolvimento local.
Por último, ainda que os exemplos não se esgotem, é importante ressaltar o valor das experiências como fonte de inspiração para a inovação nas políticas e nas ações em favor do fortaleci- mento da agricultura familiar. Raramente as pequenas criações são incluídas ou priorizadas como instrumento de promoção dos sistemas produtivos E, quando o são, o foco em geral é colocado exclusivamente sobre a geração de renda monetária, desconsiderando ou deixando num segundo plano as múltiplas funções que elas exercem no sistema. Ainda que atualmente a opção pela produção de “alimentos de origem animal ecologicamente produzidos” seja de fácil apelo entre os formuladores de políticas públicas, é necessário que ela esteja conectada aos demais componentes dos sistemas produtivos e compreendida dentro de um contexto mais amplo de desenvolvimento local sustentável. Portanto, uma conduta desejável é a ênfase no crédito e no incentivo à pesquisa, extensão e educação rural diferenciadas e adaptadas às necessidades da agricultura familiar.
Marcia Neves Guelber Sales:
médica veterinária homeopata, MSc, pesquisadora do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA –Agroecologia)/região sudeste.
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Revista V2N4 – Pequenas criações nos sistemas produtivos familiares: a diversidade na unidade