O QUE SE PASSA COM NOSSAS ÁGUAS?
O sertão nordestino pode ser o de João Grilo, Chicó, surreal como os autos de suassuna ou realista e cruel como os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Pode estar nos quadros de Portinari ou em todos os severinos de João Cabral de Melo Neto. Ou ainda pode ser uma Triste Partida, como no poema de Patativa, cantado por Luiz Gonzaga.
Mas, olhando pelo avesso, talvez o sertão já possa ser aquele que nasce na lógica da convivência com o semiárido, em transição, com suas cisternas para beber e produzir, com sua agroecologia, com suas barragens subterrâneas, com seus animais adaptados, o “ser tão feliz ”. O sertão que deixou para trás os saques, as frentes de emergência, as migrações avassaladoras, tanta fome, sede e miséria. Esse sertão poderá ter milhões de cisternas, gente com água, cheia de vida e plena de cidadania. É o que nos traz o artigo Programa 1 Milhão de Cisternas: a cidadania que chega com as cisternas (pág. 07).
Onde estão as veredas do grande sertão de Guimarães Rosa? Aquelas que corriam livres e belas nas terras de Minas para o são Francisco, para o qual o bispo já oferecia “um gole d’água e sua benção”? Talvez debaixo da pata do boi ou de uma fazenda irrigada do agronegócio. Ali já não viajam mais Diadorim e Riobaldo, mas vaga nas veredas depredadas Moimeichego (moi-me-ich-ego), o supremo egocentrismo que se julga no direito de expropriar e destruir.
Então parece ser necessário re-criar a vereda, suas fontes que nascem do chão, ou cercar as águas em pequenas barragens para matar a sede e produzir comida, porque sem água não é possível viver (ver artigo sobre açudes comunitários no Vale do Jequitinhonha, na pág. 15). Porém, mais do que a realidade objetiva, o difícil talvez seja re-criar o próprio pensamento dos envolvidos, também sujeitos a toda sedução do agro e hidronegócios. O dilema do uso das águas nos gerais sanfranciscanos reflete essa realidade que coloca em polos opostos a conservação e a produção (pág. 18).
Imagine um Pantanal seco, imagine as comunidades rurais dali recolhendo águas em cisternas como seus irmãos do Nordeste, ou do Norte de Minas, ou mesmo do Rio Grande do Sul, onde a captação e o manejo da água de chuva também se fazem necessários, como nos mostra os autores de O abastecimento de água na agricultura ecológica… (pág. 24). Afinal, o que se passa com nossas águas?
O capital avança e muda a paisagem, altera a vida do povo, transforma o regime das águas. Então o povo, assim como que encurralado, reage, pois tem que viver. E vai buscar sua água onde ela é possível de ser encontrada, nem que seja na chuva. Mas pode fazer com que ela re-brote do chão, da fonte que corria risco de sumir, ao cuidá-la, guardá-la, protegê-la, como ocorreu na experiência de gestão social da água no sudoeste do Paraná (pág. 27).
O povo aprende que a abundância da água – ou sua escassez – está diretamente relacionada ao jeito de lidar com a cobertura vegetal e com os solos. O saber acadêmico pode ajudar a sabedoria popular, como vemos no artigo O caso da água que sobe (pág, 30). Então, ela renasce, mostra sua força vital e prova que, efetivamente, a vida é maior que a morte. Nesse sentido, talvez uma das mais ilustrativas buscas seja mesmo a da água.
Mas as pessoas não vão a sós. Elas se unem, se re-unem, se articulam, criam redes e, juntas, re-fazem seu mundo, para melhor. Esse cuidado pode ser visto pelo mundo inteiro, como no Himalaia, assim como nos conta o artigo Novos desafios para a gestão coletiva da água de irrigação no Himalaia (pág, 35). Ali, a água é manejada não por modelos internacionalizados pelo Banco Mundial ou pelo Fundo Monetário internacional (FMI), mas segundo as tradições locais. Os responsáveis pela água têm poder, inspiram respeito e admiração. Aquelas populações sabem que a vida passa por aquele fio de água.
Com os mananciais degradados, privatizados, talvez a sobrevivência do povo vá mesmo depender – e muito – desse cuidado e criatividade locais.
UM POUCO DE HISTÓRIA
No final da década de 1970 e início dos anos 1980, quando estávamos saindo do regime militar e começando a reconstruir a democracia limitada que vivemos, muita gente saiu de sua casa, de seu conforto e foi para as regiões mais pobres do Brasil. Era uma época de refundação dos sindicatos, dos partidos, e do surgimento de muitas ONGs. Uma época de entusiasmos e muita esperança. Também era o auge das Comunidades eclesiais de Base (CeBs), reunindo multidões, mas em pequenos grupos, debatendo a realidade do povo à luz de sua fé. Mas a fé também era diferente, porque chamava o povo para a luta. O que aglutinava pessoas de formação e visão de mundo tão diferentes era o desejo de tornar a democracia efetiva, não só para as formalidades do voto, mas também na vida real: para que todos tivessem casa, comida, água, energia, enfim, vida digna. Queríamos um outro Brasil. a luta era social, com a necessidade de criação de instrumentos que unissem as causas dispersas. Durante uns vinte anos assim sonhamos, assim caminhamos.
No cotidiano de nossas populações, particularmente no semiárido, a necessidade da água era mais visível, juntamente com a comida. Como a mobilização partia das necessidades mais básicas, mais imediatas, então a luta pela água tornou-se uma das mais relevantes na região.
Era chocante ver multidões pelas estradas, particularmente mulheres e crianças, carregando uma lata de lama na cabeça – porque aquilo não era água – para saciar a sede da família. Evidente que a água daquela qualidade era uma fonte de doenças e mortes.
Na chamada seca de 1982 – depois iríamos avaliar melhor se existe mesmo seca ou o que caracteriza mesmo uma seca –, grande parte de nossas populações rurais ficou sem água. As migrações ocorreram em massa, os saques se multiplicaram, o governo socorreu com frentes de emergência, mas a tragédia se espalhou novamente pelo semiárido. Repetia-se a sina da asa branca, esse símbolo de um povo entregue às forças de uma natureza bruta e insanável. Era o momento propício para a indústria da seca, para a demagogia política, para a promessa de mais uma grande obra que iria resolver os problemas do povo.
Àquela época, um grupo de entidades decidiu contabilizar o número de mortos, com seus respectivos nomes. Em poucas semanas foram levantados mais de sete mil nomes, o que mostrava ser impossível mensurar em termos reais a dimensão daquela tragédia. Mesmo assim, foi publicado um livreto chamado Genocídio no Nordeste. Era óbvio que, mais que catalogar o trágico, era necessário buscar outros caminhos, preventivos, que livrassem o povo de tamanha sujeição aos fenômenos naturais e ao mundo político.
Foi então que, vasculhando o mundo científico do semiárido, alguns pesquisadores da luta social descobriram que há muito já se falava da convivência com o semiárido. Assim como os povos do gelo, do deserto, era preciso entender a dinâmica natural da região, das chuvas, do clima e adequar-se a ele. Era inútil fazer obras contra a seca ou querer acabar com a seca. Ao contrário, a solução deveria passar pelo aproveitamento do potencial hídrico da região, assim como da sabedoria popular e os demais recursos do bioma Caatinga de modo a viabilizar a vida na região mais rural do Brasil. Até porque o povo gosta dali, tem uma cultura forte, uma música própria, cultiva o prazer da festa, o que dá a essa população uma unidade cultural rara em um mundo em processo de globalização.
Mas, para materializar a convivência, era preciso re-aprender com a sabedoria do povo, resgatar as tecnologias que por acaso já haviam sido desenvolvidas. Assim se re-descobriu o sistema das cisternas de captação de água de chuva, como também outras formas de captação. Muitos se dedicaram a pesquisar essas tecnologias, a aperfeiçoá-las, a divulgá-las. E dessa maneira elas começaram a se multiplicar pelo sertão, mas sempre em caráter mais experimental e isolado.
A partir da década de 1990, começou um movimento de articulação das várias experiências conduzidas, embrião do que mais tarde seria a proposta de uma política de captação de água de chuva para todo o semiárido, construída e implementada pela sociedade civil organizada. Primeiro em a alguns municípios, depois em algumas dioceses. Finalmente, em 1999, abrangendo todo o semiárido, estabeleceu-se a meta de construir um milhão de cisternas para um milhão de famílias. Pouco depois, a ideia de captar a água de chuva para produção – inspirada no modelo chinês – redundaria na construção do programa Uma Terra e Duas Águas. O semiárido, definitivamente, começava a mudar para melhor.
O fato concreto é que, hoje, a captação e o manejo da água de chuva estão se espalhando por todo o Brasil e outras partes do mundo.
A CRISE MUNDIAL DA ÁGUA
Na década de 1990, ainda que timidamente, começou-se a falar do problema global de abastecimento de água. A partir de então, o que parecia uma mazela local, que para muitos já fazia parte do cotidiano, de repente ganhava dimensões planetárias. No Brasil, a escassez de água deixou de se restringir ao semiárido, passando a atingir todo o território nacional, inclusive lugares antes considerados como verdadeiros planetas água, como o Cerrado, o Pantanal, a Amazônia e até a região Sul.
Ainda no século passado, uma série de conferências, algumas oficiais da ONU, introduziu um novo discurso na agenda mundial, anunciando a crise da água. Termos como escassez, valor econômico, privatizações, assim por diante, integravam o vocabulário desse novo discurso que, ao mesmo tempo em que surpreende, levanta muitas dúvidas. Precisamos lembrar que estávamos no auge do neoliberalismo, com suas políticas de privatização tomando o mundo inteiro, todos os setores, inclusive a água, também aqui no Brasil.
Foi nesse contexto, com esse novo discurso, que o Brasil criou, no ano de 1997, sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, a Lei n 9.433, a chamada Lei das Águas. Essa lei instituiu o sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e a Política Nacional de Recursos Hídricos, que vai ressaltar o valor econômico da água.
Quanto ao sistema, o Brasil adotou o modelo inventado na França – pelas mãos do Banco Mundial e do FMI –, com seus comitês de bacia na base, uma agência de águas formada por um corpo técnico para operacionalizar os comitês, deter- minando o respectivo valor econômico da água, as normas de outorga para poder utilizar um bem público, suas formas de cobrança, o enquadramento dos corpos d’água, etc. Quando os problemas não encontram solução nos comitês, então são levados para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que tem o poder de dirimi-los. Foi o que aconteceu no caso da transposição do Rio são Francisco, quando o Comitê de Ba- cia contrariou os interesses econômicos por trás do projeto do Governo Federal ao autorizar o uso externo das águas do rio somente quando fosse comprovada a necessidade de saciar a sede humana. Vale observar que esse sistema, presente hoje no mundo todo, acabou por soterrar experiências locais milenares de gerenciamento de recursos hídricos. Daí a importância de vários movimentos de resistência ao modelo imposto mundo afora.
Mas, até esse momento, a questão da água estava reduzida aos especialistas em recursos hídricos, não era assunto da população em geral. Nas bases, no seu cotidiano, o povo continuava engajado em suas lutas concretas para poder sobreviver.
OS CAMINHOS DO POVO
O fato que começou a massificar a temática da crise da água no Brasil foi o Fórum social Mundial. Embora nas primeiras edições em Porto alegre, como a de 2001, pouco tenha se falado sobre o tema, já em 2005, grande parte das oficinas tinha a questão da água como assunto principal. Ali, especialistas, políticos, movimentos sociais, pastorais sociais, ONGs e experiências populares do mundo inteiro começaram a socializar a temática no Brasil.
Outra grande contribuição para essa popularização foi a realização da Campanha da Fraternidade da Água, em 2004. Ecumênica, com grande aceitação por parte da sociedade civil, para além das igrejas, o assunto universalizou-se ainda mais. Desde então, o cuidado com a água, o reconhecimento de seu valor universal para além do econômico, a luta para que permaneça como um bem público, um direito humano, mas também como patrimônio de todos os seres vivos, passaram a ser um contraponto à política internacional da chamada Oligarquia Internacional da Água, que enxerga esse recurso apenas como mais uma oportunidade de negócios.
No mundo inteiro, foram travadas lutas hercúleas para evitar a privatização das águas, o que ocasionou um aumento absurdo do preço da água para o consumidor final. Na Bolívia, a chamada Guerra de Cochabamba foi deflagrada quando a multidão foi às ruas para exigir a desprivatização desse bem público. Por incrível que pareça, o povo venceu. Hoje, até em Paris, uma das primeiras cidades a privatizar seus serviços de água, o estado retoma o controle desse serviço essencial.
No Brasil, a luta pela água avança em duas direções opostas. De um lado, a sociedade civil passa a formular programas para o efetivo acesso à água pela população carente, criando estratégias para que a água permaneça como um bem público, para que todos possam obtê-la com segurança e qualidade. Por outro, o estado brasileiro começa a implantar sua política de águas, favorecendo, sobretudo, as grandes obras hídricas, para satisfazer as demandas do agro e hidronegócio. A Transposição do são Francisco, mais uma vez, é exemplar.
Porém, com o processo de desmatamento operado na Amazônia, particularmente no Cerrado, mas também na Caatinga, no Pantanal e nos Pampas – a Mata atlântica já conta com apenas 7% de sua cobertura vegetal original –, rios inteiros começam a desaparecer. Falamos daqueles rios pequenos, que abasteciam as comunidades, com águas perenes. Não é por acaso que no Cerrado mineiro, inclusive no Jequitinhonha, as populações terão que reinventar sua relação com a água, para que ela não desapareça, forçando a migração radical das populações.
As diversas experiências – em muitos lugares hoje já se encontram soluções –, conduzidas no semiárido, no Cerrado, no Pantanal ou no Paraná, são uma resposta à crise da água, causada não por sua escassez – conforme preconiza o discurso das oligarquias internacionais da água –, mas pela degradação dos mananciais, por sua privatização e mercantilização. As comunidades se obrigaram a buscar caminhos, a reinventar a história e, assim, criar novas possibilidades de uma vida digna.
O que surge muitas vezes é emocionante e encantador. A história das famílias do semiárido que conquistaram sua cisterna, o relato das águas que brotam do chão em Minas, a captação racional da água de chuva no Rio Grande do Sul, assim por diante. Todas essas experiências encerram em si muito mais do que exemplos de luta pela água. Elas detêm a solidariedade das famílias, das pessoas que se dedicam ao povo, têm articulação, organização, desenvolvem uma nova educação contextualizada, de cuidado com a natureza, enfim, nutrem e disseminam o amor pelas pessoas, pela água e por toda a criação. Não é só uma luta, é uma mística. Não é só uma razão utilitária, é uma paixão. E só os que se alimentam dessa paixão podem dedicar toda uma vida a essa causa.
O embate pela água está apenas começando. Dados recentes oferecidos pela ONU constatam que um bilhão de pessoas não têm uma fonte segura de água em todo o planeta e que três bilhões não têm acesso à água de qualidade. Portanto, o reconhecimento do acesso à água e ao saneamento ambiental como um direito humano, assumido pela ONU em 28 de julho de 2010, por enquanto é uma conquista simbólica, distante da realidade de bilhões de pessoas.
Mas parece que a água, assim como a terra e o território, terá que ser uma dura conquista do povo. O confronto entre aqueles que nela veem o melhor dos negócios e aqueles que a consideram como um bem de todos só deve aumentar. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha e registra os conflitos no campo, divulgou um dado surpreendente: apenas no primeiro semestre deste ano, houve um crescimento de 32% dos conflitos pela água em todo o território brasileiro. As mudanças climáticas e a voracidade do capital pela água deverão agravar o estado de necessidade de bilhões de pessoas ao redor do mundo.
Entretanto, no mundo atual, como ilustram as experiências desta revista, a criatividade popular, sua organização e luta também são capazes de surpreender e achar solução onde ela não parecia possível.
Esta revista, com seus belíssimos textos, marcados por experiências e paixões, é como um rio subterrâneo, que já aflora em muitos pontos, mas que ainda está longe de produzir todos os seus frutos.
É para ler e meditar, para inspirar-se e ir à luta.
Roberto Malvezzi
Comissão Pastoral da Terra (equipe do são Francisco)
[email protected]
Referências Bibliográficas:
MARINHO, Roberto. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Banco do Nordeste (BNB), 2008. (série Teses e Dissertações).
MALVEZZI, Roberto. Semiárido: uma visão holística. Brasília: Confea, 2007. (série Pensar o Brasil e Construir o Futuro da Nação).
Baixe o artigo completo:
Revista V7N3 – Personagens das Águas