O problema: “A pobreza não se restringe à dimensão econômica e à privação dos bens materiais que constituem sua manifestação mais explícita. Ela envolve também uma dimensão política e cultural”, nos alertam Almeida, Petersen, Freire e Silveira no artigo na página 18 desta edição.
A construção de soluções: “Os pequenos projetos direcionam para o aprendizado conjunto e a prática solidária e, dessa forma, permitem que muitos grupos excluídos se apropriem de recursos materiais e simbólicos para organizar sua atuação no mundo, para consolidar seus caminhos e para construir novas causas, próprias e independentes ”, apontam por sua vez Melo, Ribeiro e Galizoni no texto reproduzido na página 13.
É justamente o diálogo entre a complexidade do problema e a busca de soluções visando recolocar os pobres e os excluídos como sujeitos do seu destino a marca do conjunto dos artigos de Superando a pobreza rural, a nova edição da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia.
Ainda que a pobreza tenha diminuído de forma contínua e significativa nos últimos anos, se adotados os critérios convencionais de medição que levam em conta apenas o volume de renda, a sua dimensão é inaceitável para um país que se apresenta como um ator democrático chave na nova geopolítica multipolar. Assim, tanto o problema da pobreza como a construção de soluções para sua superação são dois temas complexos e de grande relevância na atualidade.
POBREZA COMO SITUAÇÃO DE NEGAÇÃO DE DIREITOS, CAPACIDADES E OPORTUNIDADES
Os direitos humanos definem as condições básicas para resguardar a vida das pessoas em qualquer lugar do planeta. As capacidades de um indivíduo consistem na sua liberdade para fazer ou deixar de fazer ações, ou seja, são o poder que permite às pessoas escolherem genuinamente os seus destinos. As oportunidades, por sua vez, não se restringem às disponibilidades de recursos, mas também estão relacionadas à autoestima, ao acesso aos processos decisórios, ao poder de iniciativa e ao reconhecimento de cada voz na comunidade num determinado contexto histórico.
Em situações de pobreza, há indivíduos que têm acesso aos recursos mínimos para sua subsistência, mas não conseguem garantir um padrão de vida digno, quando confrotado com a realidade sociocultural da comunidade e/ou sociedade em que vive (pobreza relativa). Há também aqueles indivíduos que não têm acesso nem mesmo aos alimentos e recursos necessários para sua sobrevivência física (pobreza absoluta).
Assim, sob uma perspectiva mais abrangente, a pobreza seria basicamente um estado de negação de direitos humanos, de desempoderamento e de restrição das capacidades e das oportunidades reais de pessoas e grupos.
PROCESSOS QUE GERAM DESIGUALDADES E ACENTUAM O EMPOBRECIMENTO
No Brasil, a concentração de poder, riqueza, renda e dos outros diferentes capitais – social, cultural, ambiental, etc. – é fruto de um processo histórico de controle econômico e político
exercido pelas elites nacionais e locais sobre o Estado, o mercado e a sociedade. Elas têm utilizado as políticas e os recursos públicos em benefício próprio. Tais práticas vêm sendo adotadas há séculos e têm se intensificado com o neoliberalismo, sob a égide dos grandes grupos financeiros e das corporações internacionais. Como resultado, temos 75% da riqueza nacional nas mãos de apenas 10% da população, enquanto 90% do povo brasileiro fica somente com 25%. Dentro desses 10% da população rica, cinco mil clãs de famílias controlam 40% do total da riqueza nacional. Outros exemplos: R$ 120 bilhões no pagamento dos títulos da dívida pública são repassados para 20 mil clãs de famílias (cerca de R$ 6 milhões por família ao ano), enquanto a previdência social utiliza R$ 140 bilhões no atendi- mento de 21 milhões de famílias de aposentados (cerca de R$ 6 mil por família ao ano). Já o tão propalado programa Bolsa Família gasta R$ 8 bilhões na assistência de 8 milhões de famílias (cerca de R$ 72,00 por mês para cada família).
A partir desses dados, percebemos que os processos que geram desigualdades econômicas, políticas e sociais entre os indivíduos, grupos, regiões e/ou países no acesso a recursos, tais como poder, renda e prestígio, se constituem nas principais causas de produção e reprodução das situações de pobreza e de exclusão social, agindo, portanto, como processos que acentuam o empobrecimento. São justamente esses processos e situações – que têm se potencializado com o modelo neoliberal – que não respeitam os direitos humanos nem permitem a igualdade das capacidades básicas e das oportunidades reais de todas as pessoas. A importância dos processos que geram desigualdades para a reprodução e agravamento do empobrecimento fica muito evidente em países que apresentam um nível de desenvolvimento econômico intermediário, porém com marcadas diferenças na distribuição de renda e riqueza. É o caso do Brasil, onde a proporção de indivíduos em situação de pobreza é três vezes maior do que a de países com renda per capita similar. Assim, no Brasil, os processos que geram desigualdade social –e não a falta de recursos – são a principal causa da pobreza e da exclusão social.
A POBREZA NO MEIO RURAL
Os habitantes da zona rural estão entre os mais empobrecidos do país. Apesar de os índices de pobreza rural estarem diminuindo de forma generalizada, a sua incidência continua sendo o dobro da urbana. A situação de pobreza rural é mais aguda nas regiões Nordeste e Norte, onde milhões de pessoas veem denegados seus direitos a uma vida digna.
Esse quadro também é resultado de relações de poder que beneficiam velhas e novas elites agrárias e agroindustriais. O modelo do agronegócio, que tem nas grandes corporações um dos seus atores e beneficiários principais, é fortemente valorizado no país que busca garantir superávit primário por meio de exportações agrícolas. Esse modelo tem influenciado as posições oficiais do governo nas negociações dos acordos internacionais de comércio, seguindo a lógica de sujeição à liberalização do mercado neoliberal. Seus interesses também têm orientado a introdução de novas tecnologias, como a de sementes geneticamente modificadas, que contribuem para a perda de autonomia dos agricultores e para a restrição de seus direitos, intensificando assim os processos de empobrecimento nas áreas rurais. Essas posições têm prejudicado a agricultura familiar que responde por 70% dos empregos no campo e por 40% da produção agropecuária nacional.
A falta de democratização no acesso a recursos naturais e produtivos pelas pessoas pobres e excluídas se mantém, uma vez que a reforma agrária e as políticas públicas para a agricultura familiar ficam relegadas ao segundo plano. Os movimentos sociais do campo – como o Movimento Sem Terra (MST), o sindicalismo de trabalhadores rurais congregado na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e dos trabalhadores rurais da agricultura familiar reunidos nas Federações dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetrafs) –, assim como outras organizações não- governamentais e da sociedade civil, como a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), têm se mobilizado a fim de viabilizar a efetivação de ações que visem à democratização das relações de poder e o desenvolvimento de um modelo centrado na agricultura familiar e na Agroecologia.
Diante desse cenário, vem se desenvolvendo, no espaço rural brasileiro, um grande número de iniciativas com intensa participação das populações empobrecidas, de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, buscando enfrentar as múltiplas faces da pobreza.
AS MÚLTIPLAS FACES DA POBREZA
O fenômeno da pobreza é multidimensional. Ele pode ser considerado uma situação, uma condição, um estado ou uma vivência.
Quando falamos de situação de pobreza, estamos ressaltando os processos sociais que criam e reproduzem a pobreza. Aqui, a questão fundamental que se coloca é: “Quais são os fatores que produzem e reproduzem a pobreza?”
Quando falamos de condição de pobreza, estamos procurando identificar os elementos de privação, em geral materiais e sociais, que caracterizam a pobreza. Nesse sentido, a questão é: “Quais são os sinais da pobreza?
Quando falamos de estado de pobreza, estamos ressaltando a temporalidade da pobreza. Pessoas ou grupos mais vulneráveis podem em momentos particulares da sua trajetória social entrar ou sair da pobreza. A questão então seria: “Quais são os momentos de maior risco de entrar na pobreza ou com mais potencialidades de sair dela?”
Quando falamos de vivência da pobreza, estamos recuperando a dimensão vivida, existencial da pobreza. Lutar pela superação da pobreza é lutar também contra a visão tecnocrata que reduz as pessoas pobres a números abstratos ou segmentos estatísticos. A pobreza é uma experiência terrivelmente real e indivisível para aqueles que a vivenciam. Ao mesmo tempo, cada grupo tem uma concepção do que é a pobreza, fundada em valores próprios. As questões que se colocam aqui são: “Como se compreende a pobreza? Como ela é vivenciada?”
Nesse sentido, querer dar conta das múltiplas faces da pobreza implica reconhecer não só a diversidade de questões que ela coloca, mas também a complexidade das respostas. Esse reconhecimento se torna particularmente importante quando se tenta construir as complementaridades necessárias – as tão faladas sinergias – entre as práticas das pessoas pobres, as ações dos movimentos sociais, as iniciativas das diferentes organizações da sociedade civil e as políticas públicas que visam a sua superação. O desafio é tanto reconhecer as diferenças e limites quanto criar sinergias que visem atenuar os sofrimentos criados pela vivência da pobreza, propostas que procurem diminuir os riscos de entrar na pobreza, assim como implementar ações que almejem reduzir os sinais da pobreza e políticas que pretendam mudar os processos estruturais que geram empobrecimento e desigualdade.
A CONSTRUÇÃO DE SOLUÇÕES
Nos artigos que compõem esta edição encontramos exemplos dessas práticas, ações, iniciativas e políticas. No artigo A conquista de terras em conjunto, a partir da experiência dos agriculto- res e agricultoras familiares de Araponga (MG), Campos e Ferrari colocam no debate o acesso à terra como fruto da auto-organização das famílias e da articulação com o sindicato de trabalhadores rurais. Os autores abordam também o sentido de liberdade e autonomia que a conquista da terra proporciona, assim como o impacto da práticas agroecológicas no aumento da segurança alimentar e na redução da vulnerabilidade das famílias.
Por sua vez, Melo, Ribeiro e Galizoni nos trazem a construção de soluções a partir de pequenos projetos associativos de geração de renda de diferentes regiões de Minas Gerais. Ao longo do artigo, nos defrontamos com questões fundamentais, como o reconhecimento das demandas, a importância das metodologias participativas, os desafios da articulação com mediadores e grupos locais, a recorrência de problemas econômicos nas iniciativas e a necessidade de olhar para elas também como projetos formativos, políticos, sociais, celebrativos, experimentais e distributivos.
Em Caminhos da inclusão social no Agreste da Paraíba, Almeida, Petersen, Freire e Silveira chamam a atenção para a importância, na construção de soluções, de problematizar a conceituação da pobreza, contextualizando-a e identificando as suas formas de expressão a partir da visão dos atores locais. Eles também destacam o desafio de reorientação das propostas e metodologias das iniciativas das organizações da sociedade civil que trabalham para a superação do círculo vicioso da pobreza a partir do reconhecimento tanto das estratégias “de sobrevivência” dos grupos mais pobres quanto da capacidade que esses grupos possuem – e/ou necessitam – para construir os seus próprios projetos de inserção social.
Sidersky, Jalfim e Rufino, em sua análise sobre a experiência do projeto Dom Helder Camara no Rio Grande do Norte, apontam para a importância do enfoque agroecológico, com ênfase na valorização do saber popular, na troca de saberes e nas metodologias participativas na construção de soluções para superação da pobreza. O artigo traz exemplos dos desafios enfrentados nos agroecossistemas de gestão familiar, assim como ressalta a importância da organização dos agricultores e do acesso a terra, crédito e assessoria técnica.
A experiência da Cooperativa Grande Sertão no Norte de Minas Gerais que Carvalho nos traz é uma oportunidade ímpar para discutir questões centrais na construção de soluções para superação da pobreza, como cooperativismo, geração de renda, diversificação de produção, acesso a mercados, sustentabilidade ambiental e valorização das riquezas nativas.
A questão da promoção dos direitos das mulheres na construção de soluções se apresenta com força em dois outros artigos que compõem esta edição. Firmo recupera a experiência do fundo solidário na região semiárida da Bahia como uma alternativa de construção de autonomia e empoderamento das mulheres rurais. Por sua vez, Wanvoeke, Dacko,Yattara e Van Mele nos levam a Mali, no continente africano, para olhar como as mulheres, por meio da construção de sua própria organização de produtoras de arroz e com a utilização de metodologias participativas, rompem barreiras de gênero e casta que as mantinham em estado de pobreza. Acesso à terra, à água, a sementes nativas e a outros recursos naturais. Promoção da segurança alimentar. Incremento da produção garantindo a sustentabilidade ambiental. Acesso a crédito, à assistência técnica e a mercados institucionais. Maior valor agregado na produção e melhor comercialização dos produtos. Promoção da organização social e fortalecimento das comunidades. Construção de alianças e articulações em redes. Participação nos processos de tomada de decisões coletivas. Fortalecimento da solidariedade, da autoestima e da dignidade. Valorização da cultura local e de seus recursos simbólicos. Promoção dos direitos das mulheres. Novos aprendizados, identificação de alternativas e caminhos próprios. Essas são as construções de soluções para a superação da pobreza que o conjunto de artigos desta edição da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia nos traz. Essas construções apontam para os processos de empoderamento das populações em situação de pobreza, para a promoção de direitos e para as lutas pela democratização do acesso aos recursos do Estado, do mercado e da sociedade.
O DESAFIO PERMANECE: A SUPERAÇÃO DOS PROCESSOS DE EMPOBRECIMENTO COMO QUESTÃO POLÍTICA
Porém, os êxitos dessa diversidade de práticas, ações, iniciativas e políticas que são exemplificados nesta edição não podem fazer esquecer uma questão central na luta contra a pobreza. Em última instância, a superação dos processos de empobrecimento é uma questão política, que diz respeito à manutenção ou a transformações das relações de poder na sociedade. A redistribuição da renda gerada no mercado – quando ocorre – é fruto de um processo de conquista política dos setores empobrecidos e excluídos. Ou seja: a completa superação das situações de pobreza implica a mudança das relações de poder existentes que produzem e reproduzem os processos de geração de desigualdades econômicas, políticas e sociais. Dessa forma, as políticas de superação da pobreza têm que enfrentar a questão redistributiva no acesso aos recursos.
Ao mesmo tempo, essa superação só se realizará plenamente com a promoção e defesa dos direitos das pessoas pobres e excluídas, tanto no âmbito do Estado quanto do mercado e da sociedade civil. Num país como o Brasil, o último da América a abolir a escravidão e um dos mais desiguais do mundo, a luta pelos direitos dessas pessoas assume diferentes frentes. Desde a luta pelo respeito, cumprimento e real universalização dos direitos civis, políticos e laborais (que reconheçam as populações pobres e excluídas enquanto indivíduos, cidadãos e trabalhadores) até a luta pela garantia legal e prática dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Mas para que tanto a questão redistributiva quanto a real universalização dos direitos aconteça é necessário haver na sociedade uma forte vontade política que oriente o Estado na busca da justiça social e que promova a construção de um modelo de desenvolvimento humano, democrático, justo e sustentável.
Jorge O. Romano
antropólogo, doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ
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Revista V5N4 – Pobreza: o problema e a construção de soluções