Emmanuel de Almeida Farias Júnior
A criação e a implementação do Parque Nacional do Jaú, no município de Novo Airão (AM), por meio do Decreto n. 85.200, de 24 de setembro de 1980, representaram uma verdadeira intrusão nas terras tradicionalmente ocupadas por populações ribeirinhas e quilombolas, gerando uma série de conflitos. O histórico dessa unidade de conservação de proteção integral reproduz o padrão autoritário das políticas ambientais implantadas no Brasil desde o regime militar, fundamentadas em mecanismos legais que visam doutrinar o espaço por meio da aplicação de normas estabelecidas em manuais, planos, instruções normativas e portarias.
Num primeiro momento, os gestores do parque restringiram todas as atividades econômicas, com a intenção de pressionar as famílias a deixarem a área. Ao longo dos anos, contudo, diante da resistência das famílias que insistiam em permanecer no território, houve uma alteração nessa postura e algumas atividades econômicas passaram a ser permitidas, dentre as quais: a extração de castanha, do cipó titica e ambé açu, como também as roças para a produção de farinha para o consumo e venda.
Apesar dessa relativa flexibilização dos gestores, o fato é que, desde a implantação do parque, as famílias têm sido obrigadas a sobreviver em condições mínimas, ou seja, com roças diminutas, com a redução das atividades extrativistas, com a proibição de melhorias nas casas em que vivem e nas casas de farinha e com o impedimento de implantação de postos de saúde, telefones públicos e outras infraestruturas públicas. Este texto tem como foco analisar as formas pelas quais a comunidade quilombola do Tambor vem resistindo e procurando afirmar seus direitos territoriais.
A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS SOBRE O TERRITÓRIO
A Associação dos Moradores Remanescentes de Quilombo da Comunidade do Tambor foi fundada em junho de 2005, mas a comunidade se autodefine como quilombo do Tambor, ou mesmo, quilombolas do Tambor. Juntamente com o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STR) de Novo Airão, a associação solicitou ao Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) a realização de uma oficina de mapas com ribeirinhos e quilombolas que haviam sido deslocados compulsoriamente das terras que tradicionalmente ocupavam. Essas oficinas consistem em reuniões organizadas pelos próprios agentes sociais com a finalidade de elaborar seus croquis e registrar depoimentos. A partir dessa atividade, em 2007, uma nova oficina foi realizada com a comunidade quilombola do Tambor a fim de dar visibilidade à grave situação de exclusão social e de cercamento de suas terras.
Duas características marcantes puderam ser identifica- das nos depoimentos registrados nos trabalhos de campo e nas oficinas. A primeira foi que, embora o deslocamento compulsório de parte das famílias quilombolas do Tambor e do Rio dos Pretos tenha forçado novas configurações nas relações de parentesco e afinidade, tanto as famílias que permanecem no rio Jaú quanto aquelas que residem na cidade ainda se autodefinem como quilombolas. Isso porque, mesmo na cidade, os quilombolas mantêm seus sistemas agrícolas tradicionais e práticas extrativistas nos arredores do centro urbano. A segunda se refere à rápida alteração dos modos de vida das unidades familiares cercadas pelo Parque Nacional do Jaú em função do controle rígido imposto pelo gestor do parque sobre as atividades econômicas praticadas, tanto as agrícolas como as extrativistas. As famílias passaram então a depender da regulamentação externa de suas práticas tradicionais que estabelece inclusive infrações com punições previstas em lei.
AS ROÇAS DO QUILOMBO
As roças constituem a principal unidade produtiva dos quilombolas do Tambor, sendo a atividade econômica prioritária ao lado da coleta da castanha e da extração do cipó titica e timbó açu. Elas relacionam-se diretamente com os modos de vida, pois se baseiam em um padrão cultural que abrange um amplo repertório de práticas tradicionais. As roças são uma referência essencial que sedimenta as relações intrafamiliares e entre diferentes grupos familiares, além de assegurar um caráter sistêmico à interligação entre os povoados (ALMEIDA, 2006). Tais designações compreendem
“[…] uma representação particular do tempo […] traduzida por intrincados calendários agrícolas e extrativos e uma noção de espaço muito peculiar orientando o uso simultâneo, para uma unidade familiar, de diversas áreas de cultivo não necessariamente contínuas”. (ALMEIDA, 2006, p. 51)
As terras de uso comum abrangem uma constelação de situações de apropriação de recursos naturais (solos, hídricos, florestais) utilizados segundo uma diversidade de formas e com inúmeras combinações diferenciadas entre uso e propriedade e entre caráter privado e comum, perpassadas por fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-organizativos e econômicos (ALMEIDA, 2002, p.45). Embora as áreas de roça sejam estabelecidas em terras de uso comum, seus produtos pertencem às unidades familiares. Com a implantação do Parque Nacional do Jaú, essas práticas foram drasticamente alteradas, como atesta dona Bibi:
“Morava lá mesmo, em qualquer canto, eu morava no Miriti, às vezes morava no Tambor, às vezes morava no Paunini, o Paunini é afluente do Jaú… naquele tempo não tinha nada de medida de terra, se saísse, o outro vinha e colocava do mesmo jeito, quem chegasse, achasse aquele lugar vazio, roçava, fazia tapiri e trabalhava, no verão, no inverno que fosse” (Dona Maria Benedita, a dona Bibi, 84 anos, Novo Airão, 20/10/2006).
O plano de organização do espaço imposto pela política que criou o Parque Nacional do Jaú fundou-se em uma oposição fictícia entre for- mas tradicionais de utilização dos recursos naturais e a conservação da natureza. As áreas destinadas às atividades agrícolas passaram a ser reguladas por normas estabeleci- das por técnicos ecólogos, biólogos, geógrafos e botânicos. Dessa forma, foram descartadas as regras locais de manejo dos sistemas agrícolas. A consequência imediata dessa concepção foi a criminalização dos sistemas tradicionais, com agricultores, coletores e extrativistas familiares sendo punidos e levados a alterar seus modos de vida. A partir de então, as áreas de roça passaram a ser estabelecidas mais próximas às residências, formando os sítios.
Quando comparados com as roças, os sítios são espaços que apresentam maior diversidade de espécies vegetais. Manejadas por meio de práticas agroflorestais, essas espécies são essenciais para a vida das pessoas da comunidade, pois, além de fornecerem frutas, são fontes de cascas e folhas utilizadas para preparar remédios caseiros, produzir resinas para calafetar embarcações e alimentar pequenos animais, como galinhas e patos. Levantamentos realizados nos sítios da comunidade identificaram 27 espécies frutíferas e arbóreas nativas.
Algumas famílias cultivam diferentes variedades de maniva nos roçados. Cada variedade possui um ciclo deter- minado, permitindo demarcar os tempos cronológicos das diferentes roças. O domínio de conhecimento sobre essas características é essencial na estratégia de organização econômica e social do trabalho da comunidade. No entanto, com o excesso de controle sobre as atividades agrícolas por parte do ICMBio (antes Ibama, IBDF …), as famílias têm optado por roças com resultados mais imediatos, fazendo com que essas estratégias tradicionais responsáveis pela conservação da agrobiodiversidade se jam abandonadas.
Situação idêntica vem sendo observada na cidade, onde as famílias quilombolas tiveram que se adequar à nova realidade e reconstruir suas bases e referências sociais e econômicas. No espaço urbano, as roças são mantidas em áreas periféricas e, em muitos casos, o forno de farinha é construído nos fundos dos quintais. É frequente também que as variedades tradicionais deixem de ser empregados nas roças feitas nas cidades, que passam a ser cultivadas com sementes distribuídas pelas agências oficiais de extensão rural.
FORMAS DE RESISTÊNCIA
Diante de toda a repressão e autoritarismo da política ambiental, as famílias desenvolveram mecanismos de resistência para dar sequência às suas práticas agrícolas a despeito da redução das roças e das atividades extrativistas. Os mecanismos de solidariedade são essenciais para isso. As relações entre as famílias que permaneceram no campo e aquelas que foram para a cidade são muito estreitas e extrapolam os
vínculos de parentesco. Muitos são compadres de fogueira, ou então filhos de pegação. Por meio dessas relações, são estabelecidas redes de troca, com os produtos das roças sendo enviados para complementar a alimentação das famílias que se deslocaram (os produtos mais enviados são farinha, abacaxi, macaxeira, beiju, ananás, banana, farinha de tapioca e cará).
Embora a economia da comunidade conte com o importante papel da venda das produções dos sistemas agrícolas tradicionais, ela não depende exclusivamente do mercado, já que muitas trocas são realizadas por meio de relações sociais. Além disso, os mercados em que são escoados os produtos são formados a partir de circuitos localizados que dependem da circulação de pessoas, condição que também vem sendo dificultada pela política ambiental. As fiscalizações realizadas no posto do ICMBio frequentemente deterioram a produção de farinha e de outros produtos, já que os sacos são perfurados durante a inspeção, inviabilizando o meio utilizado para transportar a produção. Além disso, as embarcações utilizadas para o transporte das mercadorias são reviradas, sendo os produtos abandonados de qualquer forma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sistemas agrícolas tradicionais dos quilombolas do Tambor não são responsáveis pela destruição da natureza. Se a argumentação utilizada no final da década de 1970 para a criação do Parque Nacional do Jaú foi a necessidade de preservar a extensa cobertura vegetal então existente, desconsiderou-se o fato de que o estado de conservação então existente se devia em grande parte à ocupação antiga por agricultores familiares e extrativistas praticantes de métodos produtivos que coexistem com a natureza.
Além de serem conservacionistas, os modos e meios de vida locais nada têm haver com atraso, exotismo ou primitividade. Quando comparados com as monoculturas que oscilam de acordo com as variações dos mercados, tampouco podem ser considerados formas econômicas fadadas à falência ou à decadência.
Para assegurar seus direitos, a comunidade passou a se organizar e encaminhar suas reivindicações ao Estado. Fez isso por fora dos marcos tradicionais de organização, em geral atrelados ao movimento sindical de trabalhadores rurais, de forma a ressaltar suas especificidades étnicas. Essa estratégia criou uma nova frente de conflito com a gestão do parque, que alegou que a comunidade do Tambor não deveria ser considerada quilombola e, portanto, não poderia ser contemplada com os benefícios do artigo constitucional 68 que determina a titulação do território tradicional em favor desses grupos específicos. Essa disputa encontra-se atualmente tramitando na Câmara de Conciliação da Advocacia Geral da União.
Emmanuel de Almeida Farias Júnior
doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/Ufam; mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/PPGSCA-UFAM; pesquisador do Instituto Nova Cartografia Social (PNCSA/PPGAS/Ufam).
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Revista N8V4 – Práticas agrícolas e territorialidades dos quilombolas do Tambor