Willer Araújo Barbosa, Fabrício Vassalli Zanelli, Leandro de Souza Lopes, Nina Abigail Caligiorne Cruz, Guilherme Menezes Conte, Fábio de Oliveira Moreira e Irene Maria Cardoso
A ABERTURA DA CLAREIRA UNIVERSITÁRIA
A geração de saberes agroecológicos na Universidade Federal de Viçosa (UFV) tem sido um grande desafio; afinal, a instituição guarda uma longa trajetória conservadora e monocultural de ensino, pesquisa e extensão, em especial no âmbito das ciências agrárias. Uma trajetória que, ao compreender a Universidade como locus único de produção e reprodução do conhecimento válido e legítimo, contribuindo para invisibilizar a diversidade de experiências do campo brasileiro, inclusive da região da Zona da Mata mineira, onde a universidade está inserida.
No entanto, desde a década de 1980, organizações sociais universitárias, não governamentais e populares sensíveis e engajadas em tecer um outro modelo de desenvolvimento (SEN, 2000), atuam na contracorrente do padrão produtivista propondo alternativas de criação de novos patamares dos conhecimentos. Essas ações aos poucos vêm ganhando corpo e convergindo para o adensamento na direção da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e na busca de processos e formações sociais comunicativas e dialógicas.
A partir de 2005, o acúmulo dessas ações estão convergindo para a articulação de projetos e programas de extensão da UFV em parceria com os movimentos e organizações sociais, entre eles o Programa Teia de Extensão Universitária. O Teia reúne um conjunto de ações integrativas inspiradas no legado da comunicação freireana. Os objetivos gerais do programa consistiam inicialmente em consolidar e articular nove projetos de extensão por meio de uma concepção metodológica de extensão universitária baseada na construção coletiva do conhecimento, na atuação interdisciplinar e na relação com as comunidades e/ou movimentos sociais; objetivava-se também propiciar maior visibilidade a essas propostas, concepções e práticas metodológicas, assim como possibilitar a troca de experiências entre os atores e promover a reflexão conjunta sobre os diversos temas dos projetos. Dessa articulação, cunharam-se novas dinâmicas e processos metodológicos de diálogos de saberes que proporcionam também uma formação diferenciada para os estudantes envolvidos, que se depararam com a complexidade e a potencialidade das experiências da região.
A cada ano, o Programa Teia de Extensão Universitária incorpora novos atores e projetos (atualmente são mais de 30), ao mesmo tempo em que outros se emancipam e ganham autonomia, o que nos obriga a exercitar constante- mente o processo criativo de reinventar a organicidade do programa, conferindo mais sentido e corpo às suas ações através do aprofundamento em temas como: Agroecologia, Economia Popular Solidária, Tecnologias Sociais, Educação e Cultura populares, Saúde Integral e Gênero.
Desse exercício contínuo de auto -organização, que inclui a desorganização e a reorganização como processo formativo, também chamado autopoiético (MATURANA e VARELA, 1995), nas- cem estratégias teórico-metodológicas de ações coletivas, como o Terreiro Cultural, a Troca de Saberes, as Mesas Redondas, os Encontros “Cenários da Agricultura Familiar e Camponesa” e o “Nós pelo Campus”; assim como as Excursões Pedagógicas, que potencializam a alternância educativa entre os espaços comunitários e a universidade.
Dentre essas estratégias, o presente artigo prioriza em sua análise a Troca de Saberes, buscando destacar os instrumentos e dispositivos pedagógicos (re)criados ao longo dos anos no propósito de consolidar a (Agro)ecologia de Saberes na Zona da Mata mineira. É importante ressaltar que entendemos as metodologias como princípio formativo, em que saberes e fazeres cotidianamente vivenciados podem ser reinventados à luz das ações experimentadas, lidas e debatidas coletivamente (FERRARI et al., 2007).
TROCAR A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS
A UFV realiza há 85 anos a Semana do Fazendeiro, evento de extensão que proporciona a transmissão e a difusão de conhecimentos relacionados predominantemente ao pacote da Revolução Verde entre profissionais, técnicos(as) e agricultores(as) do Brasil, com o predomínio histórico do viés do produtivista. Para cravar uma cunha agroecológica e materializar as experiências comprometidas com a agricultura familiar camponesa da região acumuladas junto ao Programa Teia, realiza-se anualmente, desde 2009, durante o mesmo período, o evento denominado Troca de Saberes.
A Troca de Saberes é realizada a partir de estreito diálogo entre o Programa Teia, a Assessoria de Movimentos Sociais da UFV, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as Escolas Famílias Agrícolas e os Sindicatos de Trabalhadores(as) Rurais (STRs), entre outros movimentos sociais e culturais da região, sendo apoiada pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura. A preparação e a realização do evento buscam consolidar uma ecologia de saberes (SANTOS, 2005), por meio da ressignificação e reelaboração das inter-relações da universidade e da dimensão popular da sociedade. Especificamente, a iniciativa identifica e fortalece as dimensões culturais no debate da transição agroecológica; amplia espaços na universidade, em uma espécie de extensão às avessas, para debates com e sobre a agricultura familiar camponesa e agroecológica; e, assim, dá visibilidade e inteligibilidade às experiências agroecológicas, culturais e etc.
A Troca de Saberes procura também socializar pesquisas realizadas na universidade e no meio popular e pautar futuras ações e pesquisas; criar ambientes para aprendizagens da transdisciplinaridade; ampliar a concepção de interdisciplinaridade; possibilitar à comunidade acadêmica conhecer os(as) agricultores(as) e suas práticas, abrindo o diálogo entre os grupos e núcleos de pesquisa junto às comunidades. Além disso, possibilita a apropriação do espaço acadêmico pelas comunidades e, por fim, amplia a geração de saberes agroecológicos para além dos sujeitos envolvidos com o movimento agroecológico da região.
Em cinco anos, a Troca de Saberes propiciou um rico intercâmbio entre conhecimentos populares e acadêmicos e a constante reelaboração da concepção de extensão da UFV, por meio da recriação de uma série de dispositivos e instrumentos pedagógicos com vistas a fortalecer e dinamizar a ecologia de saberes. A seguir, destacamos os principais dispositivos e instrumentos utilizados.
INSTALAÇÕES ARTÍSTICO PEDAGÓGICAS
Desde 2010, as Instalações Artístico Pedagógicas constituem o principal dispositivo de efetivação do diálogo entre a sabedoria popular e o saber universitário. A sua experimentação advém dos programas de formação que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e suas Escolas Sindicais inauguraram nos anos 1980 e 1990. Tendo como referência óbvia o conceito de Instalações Artísticas, que rompe com os formatos tradicionais de exibição da arte, esse dispositivo busca criar uma ambiência composta por elementos da realidade em sua dimensão estética. Com isso, propõe-se a suscitar problematizações e reflexões acerca do tema que se pretende trabalhar. Em primeiro lugar, passamos a entender todos os espaços da universidade como passíveis de se tornarem Instalações Artístico Pedagógicas, sejam laboratórios, estábulos, gramados e, até mesmo, a Semana do Fazendeiro.
Essa concepção ampliou a nossa capacidade de intervenção interna à própria universidade. Afinal, nosso olhar considera o saber científico primordialmente enquanto uma prática social e, como tal, pode ser analisada em múltiplas dimensões, e não apenas como instância produtora de verdade. Ou seja, passamos a observar o fazer científico tanto em seu aspecto da técnica e da tecnologia que transformam a realidade quanto em seu vigor ético em relação ao público para quem é direcionado esse saber. Além disso, é fundamental considerar sua dimensão estética, uma vez que o fazer humano não pode ser despossuído de seu caráter de beleza e harmonia.
CÍRCULO DE CULTURAS
Os Círculos de Culturas são legados deixados por Paulo Freire e se caracterizam por reunir pressupostos filosóficos, teóricos e metodológicos para mobilizar os participantes do grupo a pensar sobre sua realidade dentro de uma concepção de reflexão-ação. Em 2010, o Círculo constituiu um momento de confraternização de diferentes manifestações culturais que foram mapeadas em nossa região: a Folia, o Congado, a Capoeira, contadores(as) de histórias, escritores(as) e musicistas.
Em 2012 e 2013, os Círculos de Culturas foram incorporados à dinâmica das Instalações Artístico-Pedagógicas e, desde então, abordaram temas variados, como piscicultura, educação do campo, bovinocultura, solos, cultura afro-brasileira, Agroecologia, etc. Em círculo, cada participante citava uma palavra sobre o tema. A palavra e o nome da pessoa que a citou eram escritos no quadro negro ou em uma tarjeta. Depois que todos citaram uma palavra, cada um era convidado a explicitar por que escolheu aquela palavra. Um mediador conduzia o debate. Após a manifestação de todos os participantes, era feita a interação com a Instalação Artístico-Pedagógica.
Com os Círculos de Cultura, procuramos fomentar o diálogo em círculos que se espraiam para além do evento, tornando-se uma concepção de comunicação universidade-sociedade. Para tanto, a valorização e a inserção dos Mestres Griôs em cada Círculo de Culturas foi essencial. Na Troca de Saberes, o termo Mestres Griôs teve como inspiração as atividades dos Pontos de Cultura, projetos vinculados ao Ministério da Cultura, dando visibilidade a agricultores(as) portadores(as) de grande sabedoria popular e memória local que puderam compartilhar saberes entre si, e também com os processos universitários de geração de saber.
MESAS REDONDAS E AUTO DO BOI ENVENENADO
Ao longo de suas cinco edições, a Troca de Saberes também realizou Mesas Redondas para debater e aprofundar os temas importantes do contexto de cada ano. A preocupação em dar voz aos movimentos e organizações sociais sempre garantiu sua presença nas Mesas, ao lado de professores(as) e pesquisadores(as). No ano de 2012, a apresentação artística Auto do Boi Envenenado foi incorporada à dinâmica da Mesa Redonda. Nascido da interlocução com as comunidades rurais da região, da escuta sensível e da transcriação, o Auto narra a história de uma família camponesa que utiliza agrotóxicos. O pai em seguida morre contaminado, mas, incorporando a figura folclórica do bumba-meu-boi, renasce a partir da cura de elementos da natureza e das matrizes culturais indígenas e africanas. O despertar para a Agroecologia e para a mobilização social põe em destaque o papel da mulher. O Auto fez parte da Metodologia da Mesa Redonda sobre Agroecologia e Agrotóxicos e, valendo-se do método do Teatro do Oprimido, estimulou falas e depoimentos emocionantes dos(as) agricultores(as) presentes.
EMPÓRIO DAS MATAS
Em 2011, também incorporou-se à metodologia da Troca de Saberes o Empório das Matas. Por definição, empório representa um centro de comércio, porém, na Troca de Saberes, configurou-se como o corpo vivo do evento; lugar de encontro das pessoas antes e depois das instalações, buscando potencializar espaços não só de vendas (onde se organizou um ponto de comercialização dos produtos agroecológicos trazidos pelos(as) agricultores(as) participantes), mas de socialização e trocas de experiências entre agricultores(as), estudantes, professores(as), pesquisadores(as) e técnicos(as), constituindo, ainda, um lócus de expressões culturais.
Desde seu início, procuramos inserir a dimensão cultural na Troca de Saberes como componente importante da Agroecologia. Para tanto, contamos com a participação do companheiro e artista popular da região, nosso dileto Sebastião Farinhada, sempre presente nos Congados, Folias de Reis e rodas de Capoeira, bem como nas cenas teatrais e musicais compostas a partir de nossas temáticas.
NOSSOS APRENDIZADOS
Participam das Trocas de Saberes professores(as) e/ou estudantes de diversos departamentos, pertencentes a todos os centros de ciências da UFV: Solos, Fitotecnia, Arquitetura e Urbanismo, Zootecnia, Veterinária, Medicina, Engenharia Civil, Engenharia Agrícola e Ambiental, Informática, Dança, Educação, Geografia, Educação Física, Biologia, Entomologia, Economia Doméstica, Ciências Sociais, Informática, Biologia Animal, Biologia Vegetal, Extensão Rural e Letras. Pesquisadores(as) da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) também participam. Esse leque de atores participantes propicia um diálogo tenso e ao mesmo tempo negociado de sabe- res, assim como a reelaboração em constante tradutibilidade da concepção de extensão da UFV.
Precisamos ressaltar, entretanto, que a realização da Troca de Saberes só é possível graças a um conjunto de ações que impulsionam a dinâmica da construção do conhecimento agroecológico na região, sendo promovidas pelo CTA-ZM, pelas organizações agricultoras (STRs, associações e cooperativas), pelos movimentos sociais, pelo movimento estudantil e pelo o Programa Teia de Extensão Universitária. Entre essas ações, destacamos os Intercâmbios de Experiências Agroecológicas, os Terreiros Culturais, a Caravana Agroecológica, os Estágios Interdisciplinares de Vivência, as Romarias e as Festas Populares.
Toda essa dinâmica demonstra que a complexidade atual enfrentada pela agricultura familiar camponesa da região, em termos de ameaças e potencialidades, nos coloca diante da exigência de um processo contínuo de (re)criação de instrumentos e dispositivos pedagógicos e metodológicos que permitam emergir os saberes agroecológicos por meio do diálogo constante entre universidade e sociedade.
Willer Araújo Barbosa
Prof. Departamento de Educação – UFV
[email protected]
Fabrício Vassalli Zanelli
Mestrando em Educação – UFV
[email protected]
Leandro de Souza Lopes
Graduando em Ciências Sociais – UFV
[email protected]
Nina Abigail Caligiorne Cruz
Engenheira agrônoma – CTA-ZM
[email protected]
Guilherme Menezes Conte
Bacharel em Pedagogia – UFV
[email protected]
Fábio de Oliveira Moreira
Graduando em Agronomia – UFV
[email protected]
Irene Maria Cardoso
Profª Departamento de Solos – UFV
[email protected]
Referências Bibliográficas:
FERRARI, E. A.; RIBEIRO, S; MELLO, B.; MONTEIRO, F. O Programa de Formação de Agricultores(as): uma estratégia para a construção coletiva de Participativa conhecimentos em Agroecologia. Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia, 2007.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Editorial Psy, 1995.
SANTOS, Boaventura de S. A Universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. Educação Sociedade & Cultura, n. 23, p. 137- 202, 2005.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Baixe o artigo completo:
Revista V10N3 – Programa Teia Trocando saberes e reinventando a universidade