Rosana Fernandes
No projeto pedagógico adotado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra há uma preocupação essencial com o processo de formação humana. Para o MST, educar é criar condições para que as pessoas reflitam e teorizem sobre sua prática no cotidiano do trabalho, do relacionamento social, da vida em família, no assentamento ou acampamento. É a educação que possibilita que as pessoas conheçam sua realidade para poder transformá-la. Esse processo é, necessariamente, uma prática coletiva, como nos orienta Paulo Freire: Ninguém educa ninguém; ninguém se educa sozinho; as pessoas se educam entre si, mediatizadas pelo mundo. Nesse sentido, o processo educativo ocorre em todas as ações desenvolvidas na luta dos trabalhadores(as), ou seja, nas marchas, nas mobilizações, nos encontros, nos cursos técnicos, enfim, em toda e qualquer atividade organizada pelos sem-terra.
Nesse contexto, podemos entender que a escola é um importante espaço de aglutinação desses sujeitos. Portanto, é necessário questionar aspectos inerentes à função social da escola. O que dizer, então, da escola do campo? Em se tratando de escolas de nível médio, há pouco o que se investigar, haja vista a reduzida quantidade delas lá existente. No projeto de modernização que vigora no país, os camponeses são totalmente desconsiderados, predominando a idéia de que as pessoas que vivem no campo constituem uma parcela insignificante. “Nos documentos oficiais sobre educação no Brasil, a população camponesa aparece apenas como dado”, ou seja, a população que vive no campo, principalmente os oriundos das áreas de reforma agrária, são vistos como números para pesquisas e não como sujeitos de ações que produzem mudanças sociais.
O setor de educação do MST foi criado no processo histórico de constituição do movimento para discutir, com a comunidade acampada e assentada, estratégias para garantir escolas nas áreas de reforma agrária para as crianças e jovens que estão com suas famílias na luta pela terra. A partir do entendimento de que educação é mais do que ensino, as escolas de ensino fundamental e médio compartilham orientações gerais que os educadores(as) buscam ajustar de acordo com a realidade de cada comunidade. Essas orientações encontram-se registradas em materiais pedagógicos produzidos pelo próprio movimento, o que explicita a atenção dispensada aos educandos(as), meninas e meninos que construíram sua própria identidade, sendo conhecidos como sem-terrinha. Esse conceito surgiu durante um encontro com crianças no estado de São Paulo, quando uma delas refletia que se o meu pai é um sem-terra porque ele é adulto, eu que sou criança devo ser chamado de sem-terrinha.
Em seu sentido amplo, a educação deve ser compreendida e respeitada tendo em vista os espaços vividos como formadores da consciência e possibilitadores de novas experiências. Dessa maneira, a identidade sem-terrinha deve ser reconhecida como o resultado de um aprendizado da luta social, cuja relevância no trabalho educativo com crianças e adolescentes sempre foi priorizada.
Esse processo educativo está presente prioritariamente nas escolas das áreas de reforma agrária, possibilitando construir o respeito à vida, ao planeta e ao ser humano, contrapondo-se ao modelo hegemônico de sub- missão do trabalho ao capital e, principalmente, despertando a compreensão de que é necessário e possível, não somente o estar na terra, como também o permanecer na terra conquistada.
Exemplo concreto desse processo é a Escola Agrícola 25 de Maio, situada no Assentamento Vitória da Conquista, município de Fraiburgo (SC). Desde o início do seu funcionamento, em 1989, o enfoque agroecológico foi adotado como referência e o princípio empregado é o de que alunos e alunas devam ser capazes de construir sua própria organização, favorecendo processos de auto-organização dos jovens, de valorização de sua cultura, místicas, gestos, símbolos e ações como sujeitos atuantes, contrariamente à idéia de “preparar jovens para serem o futuro da humanidade”. A construção desse pensamento se dá pela importância de os jovens camponeses internalizarem conceitos no sentido de promover uma formação integral como ser humano.
É nessa perspectiva que o Movimento vem desenvolvendo diversificadas experiências que se transformaram em marcos de seu processo educacional. Como exemplo, citamos as cirandas infantis para atendimento de crianças de 0 a 6 anos, proporcionando um ambiente onde elas possam receber acompanhamento didático-pedagógico enquanto seus pais participam das atividades dos adultos. Outras atividades são a realização de encontros infanto-juvenis e dos sem-terrinha, que acontecem tradicionalmente na Semana da Criança no mês de outubro, enfocando temas sobre o direito da criança e do adolescente, especialmente no que se refere à busca por escolas nas comunidades onde residem. Acontecem também concursos anuais de arte-educação, que tratam sobre assuntos específicos da luta da classe trabalhadora por meio das diversas linguagens artísticas. A última edição do concurso, em 2004, teve como tema “Sementes: patrimônio da Humanidade”.
Além dessas iniciativas, a escola continua sendo o grande espaço de aglutinação e problematização de questões referentes às crianças e adolescentes, justamente por possibilitar a educação desses sujeitos. Por esse motivo, é compreendida como local de troca e construção de conhecimento entre os envolvidos, visando a qualificação e melhores condições para a permanência no campo, e não como um espaço estanque ou pré-formatado.
Outra importante questão refere-se à necessidade de incentivar os adolescentes a se prepararem para atuar tecnicamente na terra, bem como para poderem discernir entre o que serve e o que não serve para as famílias que dependem do campo para a sua sobrevivência. Isso está vinculado diretamente ao processo de formação cultural que vem sendo construído no campo ao qual os adolescentes estão inseridos. Por isso, uma questão nos preocupa: quais são os processos culturais que estão formando os adolescentes camponeses? Vale a pena ressaltar que o que existe no campo é apenas uma reprodução do que o mundo urbano carrega: formação dos valores do individualismo, do consumismo, enfim, valores que colocam o “ter” acima do “ser”. Nesse sentido, o campo deve ser visto como possibilidade de construção de novos valores como o companheirismo, o respeito ao meio ambiente, a solidariedade, especialmente entre as crianças e adolescentes.
Assim, o MST pretende, a partir desse projeto educacional, demonstrar como o desenvolvimento de conhecimentos e tecnologias voltados ao bem comum, especificamente à vida dos camponeses, ocorre pela compreensão de que a conquista da terra é muito mais que libertação individual. Significando, de maneira mais abrangente, respeito à cultura dos antepassados, ao ciclo natural da vida e às gerações futuras.
O setor de educação do MST trabalha por uma identidade própria das escolas do campo, com um projeto pedagógico que fortaleça novas formas de desenvolvimento no meio rural, baseada na justiça social, na cooperação agrícola, no respeito ao meio ambiente e na valorização da cultura camponesa. Esse projeto continuará cumprindo com a tarefa histórica de educar pessoas, formando seres humanos com dignidade, identidade e projeto de futuro.
Finalmente, a criança e o adolescente devem estar no centro do projeto da classe trabalhadora, pois são sujeitos dessa classe social e merecem uma intencionalidade pedagógica específica no conjunto das ações políticas. Eles serão a nova geração de trabalhadores e trabalhadoras rurais se, neste momento, formos capazes de tratá-los como pessoas com potencialidades de construção de uma nova relação com a humanidade e com a terra.
Rosana Fernandes
coordenadora do setor de educação do MST
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Revista V2N1 – Projeto educacional para crianças e adolescentes do campo: a experiência do MST