Oscar José Rover e Felipe Martins Lampa
Os mercados provocaram alterações significativas na maneira de produzir e consumir alimentos e nos modos de vida dos agricultores. Todavia, esse processo não significou a eliminação total das bases sobre as quais se assenta o campesinato, uma vez que é possível identificar não só pontos de ruptura, mas também elementos de continuidade em sua organização sóciocultural (WANDERLEY, 2009). Sabourin (2009) utiliza a noção de relações de reciprocidade para explicar a capacidade do campesinato de se reproduzir na sociedade contemporânea, entendendo-as como trocas de responsabilidades mútuas, promovidas a prestações e geradoras de vínculos sociais mais amplos do que aqueles gerados pelas trocas mercantis. Essas relações, que têm origem no patrimônio sociocultural do campesinato, tiveram sua lógica profundamente transformada com o advento da modernização da agricultura. Contudo, para Sabourin (2009), esse processo não seria uniforme e unilinear, e as sociedades camponesas se caracterizariam pela capacidade de articular relações de reciprocidade com relações mercantis. Nesse sentido, o autor afirma que se estabeleceu uma coexistência dialética entre essas duas lógicas, sendo que a permanência de relações de reciprocidade seria um elemento chave para entender a resistência da cultura camponesa no interior das relações e trocas mercantis.
No que tange à comercialização de alimentos da agricultura familiar de base ecológica, é fundamental analisar as suas estratégias para se posicionar nos mercados. A produção em unidades familiares diversificadas e a comercialização em cooperativas, visando gerar ganhos de escala por cooperação, representam continuidades históricas com a cultura camponesa.
De um ponto de vista mais amplo, na esfera do mercado agroalimentar, verificamos profundas mudanças no ambiente concorrencial nas últimas décadas, elevando os níveis de eficiência, pressionando os custos e acelerando o ritmo de inovações e modernizações tecnológicas. O resultado imediato dessas novas condições seria a fragilização da agricultura de base familiar, bem como de suas organizações econômicas. Essa tendência acabou por transformar radicalmente os padrões de coordenação entre os atores ao longo das cadeias agroalimentares. Além da maior exigência de escala para suprir e custear logísticas de forma planejada e contínua, há a imposição de padrões de qualidade e aparência (WILKINSON, 2008). Contudo, esses movimentos dominantes não avançam sem resistências. A abertura de mercados por meio da articulação de atores sociais que compartilham visões comuns de desenvolvimento e buscam fortalecer as economias locais tem representado uma contratendência de construção social de mercado.
A REDE ECOVIDA COMO UMA INOVAÇÃO SOCIAL
A Rede Ecovida de Agroecologia foi criada em 1998, como resultado de um processo de articulação de organizações e movimentos sociais, visando construir uma alternativa ao modelo de agricultura dominante no país. A rede é organizada em núcleos regionais espalhados pela região Sul do Brasil. Cada núcleo reúne membros de uma microrregião com características semelhantes (um território rural). Em sua página na internet, consta: Atualmente, a Rede Ecovida conta com 23 núcleos regionais, abrangendo em torno de 170 municípios. Seu trabalho congrega, aproximadamente, 200 grupos de agricultores, 20 ONGs e 10 cooperativas de consumidores.
Desde a sua origem, a Rede Ecovida tem como pressuposto estabelecer formas de comercialização que priorizem a venda direta e/ou que reduzam ao máximo as intermediações (SANTOS; MAYER, 2007). É sob essa ótica, aproximando produtores e consumidores, que foram construídas as mais de 100 feiras e lojas de varejo. Porém, com o passar do tempo e o aumento de número de produtores (abrangendo cerca de 2,5 mil famílias) e do volume de produtos, as opções de mercados locais e regionais se tornaram restritivas. Mesmo assim, a Ecovida mantém uma resistência à entrada em grandes mercados de atacado e varejo, o que configurou um gargalo para a expansão e o escoamento da produção dos agricultores ligados a ela (ROVER, 2011). Foi diante desse desafio que um conjunto de organizações vinculadas à rede criou o Circuito Sul de Circulação de Alimentos da Ecovida, iniciativa que vem desde 2006 integrando comercialmente alguns núcleos regionais.
O circuito funciona com base em seis estações-núcleos, cada qual equivalendo a um núcleo da Ecovida. As estações são pontos de reunião e distribuição dos produtos para a comercialização. Para cumprirem essas funções, existem alguns princípios que orientam suas organizações e que diferem significativamente dos mecanismos convencionais de acesso aos mercados (ROVER, 2011): a) para integrar o circuito, os produtos devem ser necessariamente oriundos da agricultura familiar e ser produzidos em sistemas diversificados que priorizem o autoabastecimento alimentar, tanto das famílias produtoras como dos mercados locais; b) as organizações que vendem devem também comprar produtos no circuito, para garantir o intercâmbio de produtos entre as regiões e a ampliação da diversidade de mercadorias ofertadas em cada região; c) há redefinições coletivas periódicas sobre os critérios para a formação dos preços, buscando assegurar que o trabalho das famílias agricultoras seja justamente remunerado e, ao mesmo tempo, que os produtos sejam acessíveis aos consumidores.
Além das mais de 100 feiras, das lojas de venda direta e do Circuito Sul de Circulação de Alimentos, novas iniciativas surgem para qualificar as dinâmicas comerciais da Ecovida. Um exemplo recente é a criação, em janeiro de 2013, do Box de Produtos Orgânicos, junto à Ceasa/SC, na Grande Florianópolis. Esse Box articula várias organizações e alguns núcleos regionais da Ecovida e, assim como as estações do Circuito Sul, constitui um ponto de reunião e distribuição de produtos agroecológicos na Grande Florianópolis. Como um espaço de atacado, integrado por organizações de agricultores familiares, sua proposta é otimizar a logística de comercialização, ampliar os ganhos de escala por cooperação das famílias do núcleo regional que o sedia e facilitar as trocas de produtos entre diferentes núcleos.
Todas essas iniciativas demonstram o esforço da Ecovida em criar mecanismos comerciais que promovam a diversidade produtiva, a proximidade entre os agricultores e os consumidores, a valorização local/regional dos territórios onde é feita a produção agroalimentar e a construção de relações comerciais que visam gerar vínculos sociais mais amplos que os mercantis, fortalecendo relações de reciprocidade.
PERSPECTIVAS E DESAFIOS
A experiência da Ecovida representa um caso concreto de reinserção de agricultores familiares nos mercados alimentares com base em inovações organizacionais e tecnológicas que levam à abertura de um nicho não convencional para a produção agroecológica. Isso pode ser verificado nas feiras, no Circuito Sul de Circulação, nas lojas de venda direta e no Box de Produtos Orgânicos.
Contudo, maior inserção e reconhecimento comercial induzem ao aprofundamento de contradições, como a possibilidade de atingir mercados distantes, algumas vezes por meio de atacadistas e varejistas convencionais, afastando-se de seus objetivos e princípios. E com a experiência da Rede Ecovida não seria diferente. O fato de ser uma organização descentralizada, que garante significativa autonomia aos núcleos regionais quanto à adoção de estratégias comerciais, pode mesmo acentuar essa contradição entre reciprocidade e troca mercantil. Assim, o acesso a mercados mais distantes, bem como processos de centralização comercial no interior da organização, não deixam de existir na Rede Ecovida. Exemplo disso são infraestruturas comerciais de seleção, classificação e embalagem que em alguns núcleos regionais são centralizadas, restringindo a participação dos agricultores na coordenação dos processos comerciais. Há também casos em que algum agente comercial, apesar de ligado à Ecovida, promove dinâmicas que pouco diferem das convencionais, com baixo grau de controle de preços e ganhos por parte dos agricultores e suas organizações. Nesse sentido, a necessidade de responder às demandas do mercado, condição para se manter no mesmo, pressiona a organização na medida em que exige níveis cada vez mais altos de eficiência e coordenação da cadeia.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) em quatro capitais do Brasil, foram levantados os preços de sete alimentos orgânicos, em três canais de distribuição: grandes supermercados, feiras de orgânicos e entregas em domicílio. Constatou-se que os preços podem variar em até 463%, dependendo do canal de venda. Outro dado significativo é o fato de que, em 100% dos casos, os preços mais baixos foram os praticados pelos feirantes que, em geral, correspondem aos próprios produtores (IDEC, 2010). Os resultados da pesquisa reforçam a importância do fortalecimento dos circuitos curtos de comercialização, sobretudo no que se refere à sua capacidade de oferecer alimentos a um preço mais barato e garantir ao produtor uma maior apropriação do valor final de seu produto.
Outra pesquisa, realizada por Rover, Lampa e Pacheco Luiz (2012) a partir de entrevistas a 55 produtores agroecológicos, demonstrou que a abertura de espaços de comercialização é um dos principais entraves para a ampliação da produção de base ecológica. Dessa forma, a construção social de mercados, tal como a promovida pela Ecovida, com conteúdos políticos que fundamentam a sua organização, corresponde a uma disputa no interior de cadeias de produção, pois traz consigo a bandeira de outro paradigma de organização (da produção e do comércio).
Uma das características destacadas por Ploeg (2006) relativas ao modo de produção camponês é justamente o permanente empenho no sentido de distanciar o processo de produção do sufocante circuito mercantil, sem deixar de ter interfaces com ele, ao ingressar e criar processos específicos e diferenciados de comercialização. Nas continuidades e rupturas com sua cultura camponesa, os produtores ligados à Ecovida constroem conjuntamente mercados locais, integrando grupos que pertencem a uma mesma região, o que não impede que alguns membros acessem canais mais distantes, como redes de varejo e lojas especializadas longe da região de origem dos produtos. Assim, as estratégias de comercialização adotadas pelos membros dos diferentes núcleos, apesar de assumirem princípios comuns que as orientam, mostram-se bastante heterogêneas. Ainda no que diz respeito ao posicionamento nos mercados, e considerando a escassez recorrente de recursos entre os agricultores, iniciativas de compartilhamento de veículos e infraestrutura sugerem a imprescindibilidade de ampliar estratégias coletivas para enfrentar os desafios dos mercados.
UMA REDE FUNDADA NO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
A organização social da Ecovida procura privilegiar relações de reciprocidade, tais como a troca de produtos, sementes e experiências, assim como incentiva outras formas de cooperação no interior da rede. Além disso, a construção de feiras, a reunião de grupos e a participação em encontros regionais de articulação são fundamentais para a construção da identidade comum e de seu projeto de autonomia. Suas estratégias cooperativas para a construção de mercados caminham no mesmo sentido. Assim, a rede desenvolve dispositivos comerciais que se fundamentam em princípios da economia solidária, buscando uma justa distribuição de resultados, a melhoria das condições de trabalho e o compromisso com o meio ambiente e o bem-estar dos envolvidos no processo, inclusive consumidores. Isso não impede, entretanto, que na sua relação com agentes econômicos externos, assim como diante da falta de coordenação interna, alguns de seus agentes se posicionem de maneira competitiva.
A lógica camponesa e a experiência da Ecovida apresentam um grande diferencial em relação a outros setores socioprodutivos da agricultura: a valorização de princípios de reciprocidade, conjugando-os com práticas da troca mercantil. Essa é uma marca histórica desde a criação da rede, reconstruindo a autonomia dos agricultores e de suas organizações, buscando convertê-la em dinâmicas alternativas de desenvolvimento rural. Mas, como em todo processo histórico, a relação que a rede estabelecerá com os mercados dependerá também das escolhas feitas, que podem tender mais para o domínio das transações mercantis ou para a ampliação da relevância de princípios de reciprocidade. Nesse sentido, concordamos com Sabourin quanto à necessidade de desenhar políticas públicas que fomentem práticas de reciprocidade, para evitar que experiências como a da Rede Ecovida permaneçam marginais ou simplesmente sejam totalmente dominadas pelas regras dos mercados.
Oscar José Rover
agrônomo, Mestre em Sociologia Política, Doutor em Desenvolvimento Rural e professor da UFSC
[email protected] r
Felipe Martins Lampa
cientista social e Mestrando em Agroecossistemas da UFSC
[email protected]
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Baixe o artigo completo:
Revista V10N2 – Rede Ecovida de Agroecologia: articulando trocas mercantis com mecanismos de reciprocidade